Toda fruta tem um tempo, todo tempo se consagra
Quando a gente não tem tempo, ter um tempo é muito massa
Um segundo no planeta vai da fome à mais valia
No direito adquirido, meu querido, estamos fritos
Bem na nossa residência não tem pão nem empatia
Tem o resto de uma vida que eu jurava que era minha
Nossos amigos vão voltar pra nos dizer o que já sabemos
Não sei se eles vão falar mas vão dizer porque nós morremos
Gui Amabis
Letra de Para Mujica
Música do álbum Miopia
(grifo nosso)
Introdução
O objetivo do presente artigo é apresentarmos, em linhas gerais, um comentário ao instituto do Direito Adquirido, tendo como referência as reflexões de Caio Mário da Silva Pereira (2018) e Carlos José de Souza Guimarães (2016). A partir dos referidos autores, buscaremos apresentar o que é o Direito Adquirido, objetivando uma sucinta apresentação do tema.
I.
Um possível ponto de partida para nosso comentário sobre o Direito Adquirido é a obra clássica de Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, em cujo primeiro volume se apresenta uma introdução ao Direito Civil e a Teoria Geral do Direito Civil.
Ao tratar do conflito de leis no tempo, Pereira (2018) diz que a Lei de Introdução ao Código Civil de 2016 tomou rumo francamente subjetivista, ao prescrever, no art. 3º, que a lei não prejudicará em caso algum o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (PEREIRA, 2018: 134), tendo sido substituída, porém, pelo Decreto nº 4.657/42, lei que hoje se chama, após a Lei nº 12.376/10, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Com isso, segundo Pereira
Abandonou o legislador, então, a doutrina clássica do Direito Adquirido, para encarar, em profissão de fé objetivista, a situação jurídica, tal como vimos na teoria de Roubier. Acontece, entretanto, que a jurisprudência não conseguiu desvencilhar-se dos princípios assentados, e, não obstante o direito positivo ter adotado fundamento diferente, permaneceu fiel aos velhos conceitos, procurando dar solução aos conflitos intertemporais de leis com aplicação de norma de cunho objetivista, porém jogando com as noções subjetivistas de direito adquirido e expectativa de direito. Tendo formado o seu espírito sob a inspiração das teorias tradicionais, os juízes não conseguiram desvencilha-se de seus cânones, e não puderam afeiçoar-se às concepções modernas. (PEREIRA, 2018: 135)
Diante disso, conforme Caio Mário da Silva Pereira, o legislador, com a Lei nº 3.238/57, alterou o art. 6º da LINDB e, de acordo com a norma que ainda é vigente, ficou estatuído o seguinte:
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238 de 1957)
(LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. Decreto-Lei nº 4.657 de 1942 com redação dada pela Lei nº 12.376 de 2010)
Logo, de acordo com Pereira, toda a construção legislativa atual está assentada no respeito ao Direito Adquirido, sob os seus vários aspectos (PEREIRA, 2018: 135), sendo estes aspectos (i) o ato jurídico perfeito, (ii) o direito adquirido, in genere e (iii) a coisa julgada, correspondendo ao ato jurídico perfeito o que já está consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou; ao direito adquirido, in genere, os direitos que seu titular ou alguém que os possa exercer por ele, que tenham sido definitivamente incorporados ao patrimônio de seu titular sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, sejam ainda os subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem. A lei nova não pode atingi-los, sem retroatividade (id. ibid.: 135) e, finalmente, à coisa julgada a decisão judiciária a que não caiba recurso.
Por fim, Pereira ainda ressalva que a ideia do Direito Adquirido tem aplicação tanto no direito público quanto no direito privado: onde quer que exista um direito subjetivo, de ordem pública ou de ordem privada, oriundo de um fato idôneo a produzi-lo segundo os preceitos da lei vigente ao tempo em que ocorreu, e incorporado ao patrimônio individual, a lei nova não pode ofender (PEREIRA, 2018: 136).
Diante dessa breve, mas importante, apresentação sobre o instituto do Direito Adquirido que podemos encontrar em Instituições de Direito Civil de Silva Pereira, veremos a seguir outras reflexões em torno deste mesmo instituto trazidas em artigo de Guimarães (2016).
II.
Em Direito Adquirido, artigo de Carlos José de Souza Guimarães (2016), o autor sistematiza sua abordagem sobre o instituto do Direito Adquirido, apresentando este conceito e sua fonte legal, além de buscar discuti-lo como princípio constitucional e diante da jurisprudência, compreendendo tal instituto como uma das garantias do Estado Democrático de Direito. Trabalho recente, sucinto, mas muito abrangente, será a referência que teremos como aporte para esta segunda parte de nosso comentário sobre o Direito Adquirido.
Guimarães discute a tutela constitucional dos Direitos Adquiridos e os desafios na presevação desses direitos sem recorrer ao referido Caio Mário da Silva Pereira, que não trata de tais aspectos, a quem recorremos acima, mas dialogando com um conjunto de outros importantes juristas, como Clovis Bevilaqua, Pontes de Miranda e Serpa Lopes, entre outros. Por isso julgamos que, após tratarmos das reflexões de Pereira (2018) sobre o Direito Adquirido, é deveras interessante recorrermos também ao trabalho de Guimarães.
Logo no início de seu ensaio, Guimarães destaca o quanto o instituto do Direito Adquirido é não apenas fascinante, mas também polêmico, tendo sua finalidade na proteção de direitos diante da retroatividade das leis, o que coloca a salvo de casuísmos e arbitrariedades a ordem jurídica, diante de tantas vicissitudes políticas, restando a segurança jurídica. Além disso, conceitua o autor
Consideram-se adquiridos, portanto, os direitos conquistados sob a égide de uma determinada lei, eficaz à época, que poderiam ser exercidos pelo seu titular naquela ocasião e que já foram incorporados ao seu patrimônio naquela oportunidade ou que possam ser efetivamente exercidos na vigência de lei posterior, tendo já sido constituídos sob a lei antiga. (GUIMARÃES, 2016: 261)
Em seguida, após indicar a influência de dois juristas sobre a jurisprudência brasileira, Carlo Francesco Gabba e Paul Roubier, em relação à irretroatividade da lei, relativizada por Gabba, mas preconizada por Roubier crítico da noção de direitos adquiridos em relação às situações jurídicas constituídas sob a lei anterior, em face da lei nova (id. ibid. 262), Guimarães indica que a legislação brasileira adotou uma simbiose entre as teorias desses dois juristas. Daí preceituar no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, do mesmo modo como estabelece o art. 6º da LINDB, a que nos referimos acima.
Apesar de a jurisprudência ter sido, nas palavras de Guimarães, vacilante ao aplicar tais dispositivos, diz o autor que
Não obstante tais oscilações, pronunciou-se historicamente o Egrégio Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo eminente Min. PHILADELPHO DE AZEVEDO, reconhecendo que a fórmula da irretroatividade prevista na lei brasileira é a mais ampla que se conhece, abrangendo o caso de condição inalterável a arbítrio de outrem, entendido este como sendo o próprio legislador, a quem seria vedado alterar a condição pendente. (GUIMARÃES, 2016: 262)
Guimarães ainda recorre a Pontes de Miranda, para tratar da tutela constitucional dos Direitos Adquiridos, pois o eminente jurista alagoano, ao comentar a proteção ao direito adquirido prevista na Constituição de 1967 dissera que sempre que a lei vincula alguém e a favor de outrem surge direito, pretensão ou ação, mesmo se é direito, pretensão ou ação de que há de resultar direito, pretensão ou ação, o titular está protegido (PONTES DE MIRANDA apud GUIMARÃES, 2016: 262), tendo sido o Direito Adquirido definido por Clóvis Bevilaqua como um bem jurídico, criado por um fato capaz de produzi-lo, segundo as prescrições da lei então vigente e que, de acordo com os preceitos da mesma lei, entrou para o patrimônio do titular (BEVILAQUA apud GUIMARÃES, 2016: 263).
Mas o autor propõe que não se caminhe para a conclusão genérica e simplista de que todo direito se trata de um direito adquirido, pois isto distorceria a finalidade do Direito Adquirido, que corresponde à garantia dos direitos, incorporados ao patrimônio do titular, diante de abusos do legislador, quando este confere à lei uma invasiva e prejudicial retroatividade, que alcança fatos passados ou pendentes, violando os aludidos direitos e causando prejuízo ao respectivo patrimônio (GUIMARÃES, 2016: 264). Afinal, ainda que exista a possibilidade jurídica de retroatividade benéfica da lei no Direito Penal e no Direito Tributário, o autor destaca que não se descaracteriza a regra geral da irretroatividade legal, menos ainda em relação ao desrespeito a direitos adquiridos, que correspondem a um princípio constitucional (CF-88, art. 5º, XXXVI), com superioridade hierárquica sobre todas as leis, sendo a noção da existência de direitos adquiridos importante para coibir abusos por parte do Poder Público, e garantir a segurança jurídica, ainda mais por sua constitucionalidade, como apontou também Serpa Lopes, citado por Guimarães.
Por isso, podemos dizer que hoje existe um status constitucional do princípio do direito adquirido, conforme aponta Guimarães, não sendo compatível a influência de juristas como Gabba e outros autores estrangeiros sobre a nossa jurisprudência, aliás, não havendo distinção entre lei de ordem pública ou lei relativa a interesse privado no que diz respeito aos Direitos Adquiridos:
É o que ensina uma ancestral regra de hermenêutica, prestigiada no julgamento da ADI n° 493 pelo Excelso Pretório, que, fazendo a necessária distinção entre retroatividade mínima, média e máxima, concluiu explicitamente pela possibilidade de existir direito adquirido em face de lei de ordem pública, mesma conclusão presente no acórdão proferido no julgamento do RE 188.366-9, relatado com maestria pelo ilustre Min. MOREIRA ALVES, também relator da citada ADI n° 493. Não obstante tais julgados, registre-se, por oportuno, que o assunto ainda é controverso e não é raro haver entendimento diverso no próprio STF, que parece longe de pacificar a questão. (GUIMARÃES, 2016: 265)
Em relação a esta discussão, e antes de ainda se referir a um estudo de Raul Machado Horta, com reflexões sobre a questão, Guimarães também destaca que
Deixar as leis de ordem pública fora do alcance dos direitos adquiridos, dando liberdade para desrespeitá-los, implica em derrogar o dispositivo constitucional, reduzindo-lhe a abrangência e, na prática, tornando-o ineficiente. Portanto, sinteticamente, é legítimo reconhecer o direito adquirido como um antídoto contra o abuso do Poder Legislativo (quando implicar em retroatividade da norma editada), inclusive nas hipóteses de desvio de finalidade por parte do próprio legislador, embora o direito adquirido não seja a única forma de coibir tal abuso, nem tenha apenas esta utilidade. (GUIMARÃES, 2016: 266)
Finalmente, julgamos que a abordagem de Guimarães tenha enriquecido este nosso comentário ao Direito Adquirido. Como diz o autor, sua aplicação como princípio constitucional não é tarefa simples, mas é importante que seja preservada a irretroatividade como princício, sem que se sobreponha a outros princípios, mas que com eles possa conviver no ordenamento jurídico, na constituição de um Estado Democrático de Direito, inexistindo direito adquirido proveniente de ato ilícito, e sendo objeto de discussão a existência de direitos adquiridos oriundos de medida provisória rejeitada pelo Congresso Nacional, restando certo, porém, que uma vez que as relações jurídicas anseiam por estabilidade e segurança tais aspirações são atendidas pelo autêntico princípio geral de Direito que é o Direito Adquirido, com a autoridade de preceito constitucional irrevogável, princípio que se funda diretamente na busca pela justiça, compromisso que deve orientar a sua aplicação (GUIMARÃES, 2016: 268).
Conclusão
Neste nosso breve comentário sobre o Direito Adquirido, buscamos tratar deste instituto alicerçados em obras que nos auxiliam a compreender melhor o tema: Instituições de Direito Civil de Caio Mário da Silva Pereira (2018) e Direito Adquirido de Carlos José de Souza Guimarães (2016).
Julgamos que conseguimos realizar o objetivo a que nos propomoss, apesar de a percepção do senso comum a seu respeito poder levar a uma interpretação como aquela do cantor e compositor de música popular brasileira Gui Amabis que, no verso de uma de suas músicas, Para Mujica, que transcrevemos na epígrafe do presente artigo, diz que no direito adquirido, meu querido, estamos fritos, demonstrando uma falta de esperança em relação ao devido respeito que o instituto do Direito Adquirido precisa ter por parte do Poder Público em nosso país.
Apresentada a importância histórica deste instituto e sua previsão legal (PEREIRA, 2018), além de sua relevância para a segurança jurídica e seu papel como princípio constitucional e como garantia do Estado Democrático de Direito (GUIMARÃES, 2016), é inegável que seja instituto que não pode ser ameaçado pelas vicissitudes políticas, para colocar a salvo a própria ordem jurídica diante de tais vicissitudes. Tais direitos devem ser protegidos, para que o cancioneiro popular possa mudar seu verso e finalmente dizer: no direito adquirido, meu querido, estamos a salvo!
Referências bibliográficas
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil / Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Fosense, 2018. (Vokume 1)
GUIMARÃES, Carlos José de Souza. Direito Adquirido. In: JAPIASSU, Carlos; MELLO, Cleysson & RABELO, Leonardo (Org.). Direito, Pesquisa e Inovação. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 261-268