Taxatividade mitigada do agravo de instrumento

23/11/2022 às 01:39
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O Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do julgamento do Tema Repetitivo 988, firmou a seguinte tese: O rol do artigo 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no julgamento da apelação.

O entendimento, à primeira vista, aparenta simplicidade. Nada obstante, quando se desce a minúcias, transparece a complexidade que permeia a questão, notadamente ao se cotejar os Códigos de Processo Civil de 1973 e 2015. Força é, portanto, que, de proêmio, seja realizado um escorço histórico a respeito do assunto.

O agravo de instrumento, no decurso do tempo, tem sido alvo das mais diversas alterações. Isso encontra raízes no direito português do século XIV, que vedou o manejo do recurso de apelação contra as decisões interlocutórias, o que ensejou a sua irrecorribilidade. No século subsequente, as Ordenações Afonsinas (que datam de 1446), em que pese obstassem a interposição recursal contra a quase totalidade das decisões interlocutórias, facultava a apelação em separado diante de decisão que ocasionasse mal irreparável. A despeito disso, face à restrita possibilidade de se recorrer das decisões, as partes passaram a se valer da reforma (ou reconsideração) das decisões por meio das querimônias, súplicas dirigidas ao magistrado superior ou ao próprio prolator da decisão, sendo certo que a procedência das mencionadas queixas gerava a expedição de carta de justiça ao juízo inferior, ventilando o novo entendimento (SILVEIRA, 2005, p. 203).

O que motivou o surgimento do agravo foi, portanto, uma repressão ao uso destes sucedâneos recursais. As Ordenações Manoelinas (de 1521) e as Filipinas (de 1603) previram o agravo como meio impugnativo de diversas decisões interlocutórias. [...]. Do direito português até sua adoção no Brasil, muitas mutações sobrevieram, com alterações de cabimento e com criação e extinção de modalidades de agravo (REZENDE, 2020, p. 213).

Pois bem. O Código de Processo Civil de 1939, de maneira similar ao que acontece no Código atual, restringiu a recorribilidade das decisões interlocutórias. Para tanto, o legislador estabeleceu, no artigo 842, um rol taxativo (com dezessete hipóteses de cabimento) das decisões agraváveis. As decisões que não fossem imediatamente recorríveis poderiam, na apelação, ser vergastadas posteriormente.

De seu turno, no Código de 1973, em sua versão originária, contra a decisão interlocutória de primeiro grau, havia o agravo retido[1] e o de instrumento, ambos interponíveis perante o juízo de primeiro grau e que ficavam ao alvedrio da parte em optar por uma ou outra espécie (SHIMURA, 2017, p. 277). Entrementes, no ano de 1995, com o advento da Lei 9.139, o agravo de instrumento passou a ser direcionado ao juízo ad quem, o que conferiu celeridade ao seu exame.

Em 2005, a figura do agravo passou por outra modificação, por intermédio da Lei 11.187. Por meio dela, o agravo retido, que somente era examinado quando do julgamento da apelação, tornou-se a regra, permitindo aos relatores dos agravos de instrumento a conversão para a modalidade retida, se não ficasse demonstrada a urgência na reapreciação da questão (REZENDE, 2020, p. 214).

Com a publicação do Código de Processo Civil de 2015, alterações substanciais na sistemática do agravo de instrumento foram promovidas, a começar pela extinção da modalidade retida, passando pela redução do seu cabimento a algumas hipóteses taxativamente previstas em seu artigo 1015. Paradigmática, nesse sentido, é a Exposição de Motivos do diploma normativo em comento, que desta maneira dispõe:

Assim, e por isso, um dos métodos de trabalho da Comissão foi o de resolver problemas. [...]. Isso ocorreu, por exemplo, no que diz respeito à complexidade do sistema recursal existente na lei revogada. Se o sistema recursal, que havia no Código revogado em sua versão originária, era consideravelmente mais simples que o anterior depois das sucessivas reformas pontuais que ocorreram, se tornou, inegavelmente, mais complexo. [...]. Bastante simplificado foi o sistema recursal. [...]. Desapareceu o agravo retido, tendo, correlatamente, alterado o regime das preclusões. Todas as decisões anteriores à sentença podem ser impugnadas na apelação. [...]. O agravo de instrumento ficou mantido para as hipóteses de concessão, ou não, de tutela de urgência; para as interlocutórias de mérito, para as interlocutórias proferidas na execução (e no cumprimento de sentença) e para todos os demais casos a respeito dos quais houver previsão legal expressa.

Colhe-se das palavras colacionadas supra que a mens legis foi imprimir simplicidade ao processo, o que, por conseguinte, acarreta relativa celeridade. O paradigma adotado pelo CPC/2015 foi prever- taxativamente- as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento (SHIMURA, 2017, p. 278). Em virtude disso, o artigo 1.015, após arrolar algumas hipóteses de cabimento, prevê, em seu inciso XIII, que cabe agravo de instrumento que versarem sobre outros casos expressamente referidos em lei (BRASIL, 2015, online).

É de se observar, aqui, a confusão que gravita em torno desta redação: alguns doutrinadores asseveram que o rol do 1.015 é não taxativo, mas exemplificativo. Não parece ser esse o caminho a ser perfilhado, com o devido respeito ao coro dos que sustentam entendimento contrário. Digo isso com fulcro em interpretação teleológica: a taxatividade se mostra mais coerente com a intenção do legislador de restringir, no atual sistema, a recorribilidade imediata das interlocutórias (SANTOS, 2018, p. 189). O regime atual do CPC, portanto, na esteira da doutrina majoritária, é o do casuísmo em numerus clausus (THEODORO JR., 2018, pp. 1050 et seq).

Isto posto, retorna-se ao ponto de partida, qual seja, a tese do STJ. Ora, o que quis significar o Tribunal da Cidadania com a expressão taxatividade mitigada[2]? Afigura-se curial, antes de tudo, entender o cerne da questão.

Por meio de recurso especial, pretendeu-se perscrutar a natureza jurídica do rol do artigo 1.015 do Codex. Foram enfrentadas, então, algumas correntes que se formaram em seu entorno.

A primeira foi a da taxatividade absoluta (jungida a uma interpretação restritiva), que, registre-se, havia sido acolhida pela Corte quando do julgamento do REsp 1.700.308/PB, oportunidade em que assim se manifestaram: Na modalidade de agravo retido o agravante requererá que o tribunal dele conheça, preliminarmente, por ocasião do julgamento da apelação.

A segunda, por sua vez, foi a da taxatividade absoluta, mas temperada por uma interpretação extensiva ou analógica. Didier (2016, pp. 209 et seq) esclarece que a interpretação, para além da possibilidade de ser literal, pode ser corretiva: As hipóteses de agravo de instrumento são taxativas e estão previstas no artigo 1.015 do CPC. Se não se adotar a interpretação extensiva, corre-se o risco de se ressuscitar o uso anômalo e excessivo do mandado de segurança contra ato judicial, o que é muito pior[3]. O STJ também agasalhou alhures este posicionamento, ao decidir o REsp 1.695.936/MG: É certo que as hipóteses de Agravo de Instrumento trazidas pelo CPC de 2015 são taxativas, mas também é certo que o exegeta pode valer-se de uma interpretação extensiva.

De postimeiro, tem-se a corrente que advoga pelo caráter exemplificativo do rol. Mostra-se crucial pôr em relevo a dissertação de Gabriel Araújo Gonzalez (2016, pp. 353), que estriba sua posição em três argumentos, a saber:

a) o legislador buscou evitar impugnações às decisões s interlocutórias durante o procedimento em primeiro grau, a ponto de ter abolido o agravo retido, presente no CPC/1973; b) foram enumeradas hipóteses de cabimento do agravo de instrumento (art. 1.015) e que elas, a despeito do afirmado da alínea a, sofreram aumento, quando comparadas ao período final do CPC/1973; c) o CPC/2015 teve o cuidado de estabelecer uma regra residual que sujeita à apelação as decisões interlocutórias não agraváveis (art. 1.009, §1º), tornando-as recorríveis. Essas três considerações demonstram que o legislador não quis consagrar a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, mas evitar um recurso (agravo retido) que, na sua visão, prejudicaria o andamento do processo em primeiro grau e que comportaria apresentação ao final.

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Engendrada esta breve análise, o Tribunal, para firmar seu posicionamento, socorre-se no fenômeno na constitucionalização-releitura (ou ubiquidade constitucional), que determina a impregnação de todo o ordenamento pelos valores constitucionais. Nesse caso, os institutos, os conceitos, os princípios e as teorias de cada ramo do Direito sofrem uma releitura para, à luz da Constituição, assumir um novo significado (FONTELES, 2019, p. 27). Desta feita, traz-se à baila o capítulo I do Título Único do Livro I do CPC, cujo teor consubstancia as Normas Fundamentais do Processo Civil, e que consiste em vetor basilar da atividade interpretativa da Corte.

A partir daí, passam a um exame da Exposição de Motivos do Código, fazendo uma lídima tentativa de interpretação teleológica. Chegam, pois, à ilação de que quis o legislador restringir as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, adotando técnica de enumerar questões que, em sua concepção, não poderiam aguardar rediscussão futura em eventual apelação. Inobstante, as situações da vida suplantam a capacidade criativa do legislador, posto que humano, o que importa dizer que é faticamente impossível querer confinar todas as urgências em uma caixa apertada. Tal cenário ocorreu na vigência do CPC/39, o que deu azo às mais diversas críticas, máxime por gerarem prejuízos robustos às partes.

Como dito algures, as hipóteses elencadas no 1.015 são aquelas reputadas pelo legislador como aquelas que não poderiam aguardar rediscussão futura em eventual apelação. Empregadas outras palavras, situações de urgência. Eis a taxatividade mitigada. Não se trata de adotar a taxatividade absoluta, com interpretação restritiva, porque é incapaz de tutelar adequadamente todas as questões em que pronunciamentos judiciais poderão causar sérios prejuízos e que, por isso, deverão ser imediatamente reexaminadas pelo 2º grau de jurisdição. Também não se chancela a taxatividade absoluta, com interpretação extensiva, na medida em que, para além do fato de não existir um parâmetro minimamente isonômico e seguro no que toca aos limites que precisam ser observados na interpretação de cada palavra, o uso dessas técnicas hermenêuticas também não será suficiente para abarcar todas as situações em que a questão deverá ser reexaminada de imediato. Tampouco se abraça o caráter exemplificativo do rol, pois seria contrariar frontalmente a mens legis.

Portanto, a tese da taxatividade mitigada está fundada em um requisito de ordem objetiva: a urgência que decorre da inutilidade futura do julgamento de recurso diferido da apelação. Reconhecido este requisito, impõe-se a recorribilidade imediata da decisão interlocutória (por meio de agravo de instrumento). Por óbvio, há de se ter cautela para que a exceção não se torne regra, o que consistiria em flagrante desvirtuamento da intenção legislativa.

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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