Responsabilidade do servidor público por atos praticados na vida privada

01/12/2022 às 01:22

Resumo:


  • O servidor público pode ser responsabilizado por atos da vida privada que afetem suas funções ou a imagem da Administração Pública.

  • A responsabilidade do servidor engloba esferas civil, penal e administrativa, sendo que a conduta na vida privada pode ensejar ação disciplinar se relacionada ao cargo.

  • As esferas de responsabilidade são independentes, mas decisões penais podem influenciar nas esferas cível e administrativa, especialmente em casos de absolvição que negue o fato ou a autoria.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

O presente trabalho aborda a possibilidade do servidor público estatutário ser responsabilizado por atos da vida privada e a consequente sanção por inobservância desse dever. A metodologia de pesquisa segue análise legislativa, jurisprudencial e doutrinária visando esclarecer quais são os limites da Administração para apurar ilícitos por atos particulares. Parte-se da hipótese de que não caracterizam infração disciplinar caso não tenha relação com suas atribuições, exceção a essa regra ocorre quando a conduta estiver indiretamente relacionada às atribuições do cargo. O presente trabalho é dividido em seis capítulos. O primeiro capítulo aponta o conceito de agente público. No segundo capítulo, é verificada as espécies de agente público. O terceiro capítulo analisa o que vem a ser servidor público e verifica as esferas de responsabilização civil, penal e administrativa. Mais adiante, o processo administrativo disciplinar é descrito como o instrumento destinado a apurar infrações do servidor investido em cargo público e corrigir suas ações. E finalmente, aborda a possibilidade de necessária limitação da legislação por atos praticados pelo servidor na vida particular, desde que havendo relação com a vida funcional, para que o serviço público seja exercido com eficiência na concretização do interesse público, exemplificando e explicitando os seus fundamentos e parâmetros para essa possível responsabilização. Ser servidor público requer entendimento de suas atribuições e adesão às normas públicas de comportamento modelar. O agente público é aquele que trabalha para servir a sociedade, construindo diariamente a história e o papel social da Administração Pública, representando seus ideais. Portanto sua vida privada, se tiver relevância pública, pode afetar a imagem da instituição de forma positiva ou negativa.

Palavras-chave: servidor público. Vida privada. Responsabilidade.

ABSTRACT

The present work addresses the possibility of the statutory public servant being held responsible for acts of private life and the consequent sanction for non-compliance with this duty. The methodology follows legislative, jurisprudential and doctrinal analysis in order to clarify what are the limits of the Administration to investigate illicit acts by private acts. It starts from the hypothesis t starts from the hypothesis that they do not characterize a disciplinary infraction if it is not related to their attributions, exception to this rule occurs when the conduct is indirectly related to the duties of the position. This work is divided into six chapters. The first chapter points to the concept of public agent. In the second public chapter, the type of public agente are verified. The third chapter analyzes what constitutes a public servant and checks the sphere of civil, criminal and administrative accountability. Further on, the disciplinary administrative process is described as the instrument intended to investigate infractions of the public servant invested in public office and correct his actions. And finally, it addresses the possibility of necessary limitation of the legislation for acts practiced by the server in the private life, as long as there is a relationship with the functional life, so that the public service is exercised efficiently in the realization of the public interest, exemplifying and explaining its fundamentals and parameters for this possible accountability. Being a public servant requires an understanding of your attributions and adherence to public norms of modeling behavior. The public agent is one who works to serve society, building daily the history and social role of Public Administration, representing its ideals. Therefore, your private life, if it has public relevance, can affect the institution's image in a positive or negative way.

Keywords: public servant. Private life. Responsibility.

INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos a Administração Pública assumiu atividades que garantem direitos sociais imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade. Os servidores públicos existem em razão da Administração Pública e são parte importante desse processo já que é por meio deles que o Estado se relaciona com os administrados.

No setor público a história demonstrou transgressões extremamente prejudiciais à população. E foi para garantir a segurança jurídica que surgiu o processo administrativo disciplinar que como preceitua o art.148 da Lei nº 8.112/90 é o instrumento destinado a apurar a responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido para manter o fim perseguido pela Administração, que é o bem público. No exercício de suas funções, cargos ou empregos, os servidores públicos estão sujeitos não só à responsabilização administrativa como também penal e civil por seus atos praticados, pois as esferas independem uma da outra.

Uma questão que surge é se os atos por ele praticados na vida privada podem ensejar a aplicação de sanções. Não se pode admitir, por exemplo, que um policial civil seja conhecido explorador de prostituição infantil, agiota, estelionatário condenado, integrante de quadrilhas, autor de extorsão ou tráfico de drogas, ainda que tenha essas condutas reprovadas e criminosas fora do desempenho do cargo, pois, mesmo assim, se evidencia uma incompatibilidade moral da parte da pessoa física para figurar como um componente da Administração Pública e das carreiras efetivas do funcionalismo estatal, sobretudo como combatente da criminalidade, como se supõe ser um policial (CARVALHO, 2008). Poderia ele, normalmente, participar do serviço público?

O presente estudo visa discutir a possibilidade de aplicação do processo administrativo disciplinar por ato praticado na vida particular por servidor público estatutário.

  1. AGENTE PÚBLICO

Agentes públicos podem ser qualquer pessoa que pratica atos em nome do poder público, como instrumentos de sua vontade e ação. Segundo o artigo 2º da Lei de Improbidade Administrativa, que é a Lei n.º 8.429, de 1992[2]:

Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei.

Eles representam uma categoria ampla que prestam qualquer tipo de serviço ao Estado, significando qualquer atividade pública de acordo com a vontade estatal, temporariamente ou não, com ou sem remuneração. 

E o Código Penal elaborou esse conceito[3]:

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

Para fins penais, o conceito de funcionário público é uno, ou seja, há apenas um conceito para abranger todas as espécies de agente público. 

  1. ESPÉCIES DE AGENTE PÚBLICO

Quanto à classificação dos agentes públicos, eles se dividem nas seguintes espécies: agentes políticos, administrativos (servidor público), honoríficos, delegados, credenciados e militares.

  • Agentes políticos

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2021), os agentes políticos exercem atividades típicas de governo e são titulares de cargos estruturais à organização política do País, com vínculo de natureza política. São detentores de cargos eletivos, integrantes do alto escalão do Governo e formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como Senadores, Deputados federais e estaduais e os vereadores (MELLO, 2021). Caracterizam-se por terem funções de direção e orientação estabelecidas na Constituição e por ser normalmente transitório o exercício de tais funções (CARVALHO FILHO, 2019).

  • Agentes administrativos (ou servidores públicos)

É a categoria que contém a maior quantidade de integrantes. Diferente dos agentes políticos, os agentes administrativos exercem uma atividade pública de natureza profissional e remunerada, sujeitos à hierarquia funcional e detêm vínculo com a Administração Direta ou Indireta. Também chamados de servidores públicos outras classificações da doutrina, eles são subdivididos em: estatutários, sujeitos a regime jurídico próprio e titulares de cargo público; empregados públicos, contratados sob regime da legislação trabalhista (CLT) e ocupantes de emprego público; e temporários, contratados por tempo determinado para atender excepcional interesse público, na forma do art. 37, IX, da Constituição Federal para exercer função sem estar vinculado a cargo ou emprego público (DI PIETRO, 2022; MEIRELLES, 2013).

Vale lembrar que a Administração Pública é dividida em Direta e indireta. De acordo com Wlademir Ribeiro Prates (2014), a primeira diz respeito à união, aos estados, aos municípios e ao distrito federal. A segunda se refere às autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas.

  • Agentes honoríficos

Os agentes honoríficos, ou também intitulados por parte da doutrina como particulares em colaboração são cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente, determinados serviços ao Estado, em razão de sua condição cívica, de sua honorabilidade ou de sua notória capacidade profissional, mas sem qualquer vínculo empregatício ou estatuário e, normalmente, sem remuneração (MEIRELLES, 2013). Nessas condições temos, por exemplo, os cidadãos que atuam por convocação operacionalizando as eleições como mesários do TRE, os convocados para o serviço militar obrigatório, assim como os cidadãos do município que são selecionados para serem jurados e integrar o Tribunal do Júri, emitindo juízo de valor diante de acusações relativas a crimes dolosos contra a vida. São apenas considerados funcionários públicos enquanto desempenham a função pública, momentaneamente inseridos na hierarquia do órgão, e usualmente atuam sem remuneração.

  • Agentes delegados

Os agentes delegados são particulares que, por delegação do Estado, executam atividade, obra ou serviço público, em nome próprio, por sua responsabilidade, porém sob a fiscalização Poder Público. A remuneração que recebem não é paga pelos cofres públicos, mas sim pelos terceiros usuários do serviço (DI PIETRO, 2022). Apesar de serem colaboradores do Poder Público, os agentes delegados não são considerados servidores públicos, pois não atuam em nome do Estado. Sujeitam-se, todavia, no exercício da atividade delegada, à responsabilidade civil objetiva (CF, art. 37, § 6º) e ao mandado de segurança (CF, art. 5º. LXIX). São os concessionários e permissionários de serviços públicos, os leiloeiros, os tradutores públicos, entre outros (FREITAS, 2017).

  • Agentes credenciados

 Agentes Credenciados nada mais são que pessoas que representam o Estado em alguma circunstância, mediante remuneração do Poder Público credenciante. Segundo Hely Lopes Meirelles (2013):

O agente credenciado é aquele que recebe a incumbência da administração para representá-la em determinado ato ou praticar certa atividade específica, mediante remuneração do Poder Público credenciante (MEIRELLES, 2013).

Como exemplo, podemos citar quando é atribuída a alguma pessoa a tarefa de representar o Brasil em determinado evento internacional.

  • Militares

São militares as pessoas físicas que prestam serviços às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), e às Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios, com vínculo estatutário sujeito a regime jurídico próprio, mediante remuneração paga pelo Governo. Estes também são agentes públicos, mas de uma categoria específica, com regras que lhe são próprias.

  1. RESPONSABILIDADE DO SERVIDOR PÚBLICO

O serviço público é toda atividade que a Administração Pública executa com a finalidade de satisfazer as necessidades da coletividade. Neste sentido, Maria Sylvia Di Pietro (2022) define servidores públicos, em sentido amplo, como as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. A seguir abordaremos as formas de responsabilização dos servidores no âmbito civil, penal e administrativo.

3.1- As múltiplas esferas de responsabilização do servidor público

O servidor público devido ao seu exercício de cargo, emprego ou função está sujeito a praticar atos ilícitos, atos estes que podem ser de natureza civil, penal ou administrativa e podem ser responsabilizados tanto na esfera civil, penal e administrativa, (DI PIETRO, 2022). A Lei nº 8.112/1990[4] dispõe a respeito:

Art. 121.  O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.

Todos os servidores públicos, em virtude das atribuições que lhes são dadas para que executem as atividades estatais, tornam-se titulares de direito e deveres concernentes às suas funções, e passíveis, portanto, de responsabilização decorrente do cometimento de possíveis infrações. E por essas infrações deverão ser responsabilizados pela Administração e perante a Justiça Comum (MEIRELLES, 2013).

3.2.1- Esfera civil

É a responsabilidade de ordem patrimonial que obriga aquele por ato ilícito causar dano a outrem repará-lo, desde que o ato tenha sido praticado com ação ou omissão, culpa ou dolo, relação de causalidade e dano (DI PIETRO, 2022).

Decorre do artigo 186 do Código Civil[5]:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 

Toda manifestação da atividade humana traz consigo o problema da responsabilidade. A responsabilidade é, portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento face um dever ou obrigação. E a responsabilidade civil visa evitar a ocorrência de eventuais prejuízos ao indivíduo.

Seguindo o mesmo crivo, Sérgio Cavalieri Filho (2015) diz que a responsabilidade civil: 

[...] designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário. 

O anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repará-lo inspira-se no mais elementar sentimento de justiça. O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima. Há uma necessidade fundamental de reestabelecimento deste equilíbrio, o que se procura fazer recolocando o prejudicado no status quo ante. Procura-se então repor-se a vítima à situação anterior à lesão. 

O Código Civil Francês em que se inspirou o legislador nacional na elaboração do arts. 159 e 1.518 do Código Civil de 1916, que correspondem respectivamente aos arts. 186 e 942 do novo diploma, alude à culpa do agente como fundamento do dever de reparação do dano (SILVA, 2009). 

Art. 1.382. Tout fait quelconque de lhomme qui cause à autri un dommage oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer[6].  

Percebe-se então, que segundo dispõe o Código Civil Francês, a responsabilidade civil se funda na culpa. Foi a definição que partiu daí para inserir na legislação de todo o mundo. 

Para a configuração da responsabilidade civil devem-se verificar os seguintes pressupostos, sem os quais resta esvaziada qualquer tentativa de responsabilização: a) conduta comissiva ou omissiva, b) culpa do agente (a culpa em sentido amplo abrange o dolo e a culpa em sentido estrito), c) nexo causal entre a conduta e o resultado e, d) o dano. Estes são os alicerces do que denominamos responsabilidade civil subjetiva, ou clássica, com o pressuposto culpa como elemento central.  Elemento diferenciador será estritamente o elemento culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o fato. A mera culpa (ou culpa em sentido estrito), portanto, pode ser definida como a violação de um dever jurídico por negligência, imprudência ou imperícia. Ela pode consistir numa ação ou numa omissão. Negligência se relaciona com a desídia. É a falta de cuidado por conduta omissiva. Imprudência está ligada à temeridade, ou seja, é a afoiteza no agir. É a falta de cautela por conduta comissiva. A imperícia, finalmente, é a falta de habilidade. Em outras palavras, decorre da falta de habilidade no exercício de atividade técnica (SILVA, 2009). 

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Para imputar-se a responsabilidade civil ao servidor é preciso que haja a comprovação do dano causado, seja lesada a Administração, seja o terceiro. Sem o dano, inexiste responsabilização. Cumpre também que haja a comprovação de que o servidor agiu com culpa civil, isto é, por meio de comportamento doloso ou culposo em sentido estrito (CARVALHO FILHO, 2019).

Sem que tenha ocorrido dano a alguém, não há que se cogitar em responsabilidade civil. Aqui o dano sempre será elemento essencial na configuração da responsabilidade civil; não há responsabilidade civil por tentativa, ainda que a conduta tenha sido dolosa. 

Se o dano for causado à Administração, o servidor público é perante ela diretamente responsável, por meio de processo administrativo cercado de todas as garantias de defesa do servidor, conforme art. 5º, LV, da Constituição Federal (DI PIETRO, 2022). E a indenização do prejuízo financeiro causado pelo servidor poderá ocorrer ainda no âmbito administrativo, mediante desconto autorizado do valor devido em folha de pagamento como prevê o art. 46 da Lei nº 8.112/90.

Contudo, se causa algum dano a terceiro, seja por conduta dolosa ou culposa, a responsabilidade recai ao Estado. Aplica-se o art. 37 § 6º da CF, em decorrência da qual o Estado responde objetivamente, ou seja, independente de culpa ou dolo, podendo haver o direito de regresso ao servidor:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Atinente ainda a norma ditada no § 2º do art. 122 da Lei 8.112/1990: Tratando-se de dano causado a terceiros, responderá o servidor perante a Fazenda Pública, em ação regressiva.

Logo, quando se trata de dano causado a terceiro, o Estado responde objetivamente, independente de culpa, bastando para tanto apenas a sua conduta, dano a outrem e nexo de causalidade. Contudo, o direito de regresso, de acordo com Matheus Carvalho (2017), ocorre quando os "agentes respondem somente de forma subjetiva- ou seja, após a análise de dolo ou culpa desse - perante o Estado em ação de regresso."

 A obrigação de reparar o dano estende-se aos sucessores e contra eles será executada, até o limite do valor da herança recebida, nos termos do art. 122, § 3º, da Lei n.º 8.112/1990:

Art. 122. A responsabilidade civil decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiros.

§ 3.º A obrigação de reparar o dano estende-se aos sucessores e contra eles será executada, até o limite do valor da herança recebida.

3.2.2- Esfera penal

A responsabilidade penal é aquela em que o servidor público responde quando comete algum crime ou contravenção.

Cometendo o servidor alguma infração, a apuração desta falta será feita pelo Poder Judiciário e não pela administração pública. A grande diferença entre a responsabilidade civil e penal é que na segunda, a conduta deve ser antijurídica.

Quando o servidor pratica crime ou contravenção responde penalmente e os elementos que caracterizam este ilícito são basicamente os mesmos dos demais atos ilícitos porém com algumas peculiaridades: A ação ou omissão deve ser antijurídica e típica, ou seja, deve corresponder ao tipo penal e a conduta como crime ou contravenção, a culpa ou dolo não pode haver hipóteses de responsabilidade objetiva, relação de causalidade e dano ou perigo que nem sempre é necessário que o dano se concretize, basta haver o risco de dano, (DI PIETRO, 2022).

Para que o crime seja considerado praticado pelo servidor público o mesmo terá que está exercendo cargo, emprego ou função pública ainda que transitoriamente ou sem remuneração, conforme conceitua o artigo 327 do Código (DI PIETRO, 2022):

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

Estendendo-se por equiparação o previsto no parágrafo 1º deste artigo,

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.   

Também conforme citado no §1º, art 327, do Código Penal, por equiparação atribui a responsabilidade penal para os funcionários públicos que estejam exercendo cargo ou função em entidades paraestatal, como também para os funcionários de empresas que prestam serviços contratadas ou conveniadas para entidades Públicas da Administração direita ou indireta, desde que estejam exercendo atividades típicas da Administração Pública. 

Os crimes contra a Administração são, basicamente, os dos art. 312 a 326 do Código Penal crimes praticados por funcionário público com a Administração Pública. Há leis que preveem outras condutas de servidores qualificadas como crime. Por exemplo, a Lei nº 4.898/65 arrola condutas qualificadas como abuso de autoridade; a Lei nº 8.666/93 menciona condutas de agentes em matéria de licitação e contratos que são classificadas como infrações penais.

A sentença da ação penal, transitada em julgado, poderá repercutir na esfera de responsabilidade administrativa e civil do servidor:

Lei nº 8.112/90:

Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

Código Civil:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. 

 De acordo com o art. 229 da Lei nº 8.112/90, é assegurado auxílio-reclusão à família do servidor ativo, nos seguintes valores: dois terços da remuneração, quando afastado por motivo de prisão, em flagrante ou preventiva, determinada pela autoridade competente, enquanto perdurar a prisão; ou metade da remuneração, durante o afastamento, em virtude de condenação, por sentença definitiva, a pena que não determine a perda do cargo (DI PIETRO, 2022).

3.2.3- Esfera administrativa

O servidor responde administrativamente pelos ilícitos administrativos definidos na legislação estatutária que lhe impõe obediência às regras de conduta necessárias ao regular andamento do serviço público. Segundo Odete Medauar (2011), a responsabilidade administrativa expressa as consequências acarretadas ao servidor pelo descumprimento dos deveres e inobservância das proibições, de caráter funcional, estabelecidas nos estatutos ou em outras leis. Os ilícitos administrativos definidos na legislação estatutária apresentam os mesmos elementos básicos do ilícito civil: ação ou omissão, contrário à lei, culpa ou dolo e dano. Caso o servidor cometa uma infração a mesma será apurada pela própria Administração Pública, através de instauração de procedimentos adequados previstos nas leis estatutárias assegurando ao servidor o contraditório e a ampla defesa previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal. (DI PIETRO, 2022).

Os meios previstos para se apurar um ilícito administrativo segundo as leis estatutárias são:

            - SUMÁRIOS Compreendendo a verdade sabida (conhecimento pessoal e direto da falta pela própria autoridade competente. Segundo Di Pietro (2022) não mais prevalece diante do art. 5, LV da Constituição que exige o contraditório e ampla defesa nos processos administrativos) e a sindicância (possibilidade de aplicação de sanções leves aos agentes com pena máxima de até trinta dias).

            - PROCESSO ADMINISTRATIVO Impropriamente denominado inquérito administrativo, o processo se desenvolve em três fases: instauração; inquérito (que compreende instrução, defesa e relatório); e julgamento, conforme art. 151 da Lei 8.112/90 (DI PIETRO, 2022).

Comprovada a infração disciplinar pela própria Administração Pública, em processo regular, será possível a aplicação das sanções previstas no art. 127 do Estatuto Funcional: I - advertência; II - suspensão; III - demissão; IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade; V - destituição de cargo em comissão; ou VI - destituição de função comissionada.

Segundo Di Pietro (2022), ausência de tipicidade da infração disciplinar confere à Administração Pública certa discricionariedade para enquadrar a falta funcional dentre os ilícitos previstos na lei, o que não significa a possibilidade de decisão arbitrária. A aplicação das sanções disciplinares deve ser fundamentada, com a indicação das razões fáticas e jurídicas que sustentam a decisão, devendo ser observada a natureza e gravidade da infração e os danos que dela provierem para o serviço público.

Nesse sentido, o artigo 50 da Lei nº 9.784/99[7] dispõe que:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: [...].

Acerca deste tema, destaca-se também o disposto no artigo 128parágrafo único, da Lei nº 8.112/90:

Art. 128. [...] Parágrafo único. O ato de imposição da penalidade mencionará sempre o fundamento legal e a causa da sanção disciplinar.

Como medidas preventivas, o art. 147 da Lei 8.112/90 estabelece o prazo máximo de afastamento do servidor por 60 dias, prorrogáveis por igual tempo, sem prejuízo da remuneração, para que não haja influências na apuração.

  1. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

O processo administrativo disciplinar (PAD) é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido (art. 148 da Lei nº 8.112/90). Deve ser utilizado para apuração de ilícitos que ensejarem penalidades mais severas do que a suspensão por trinta dias, incluindo demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, e destituição de cargo em comissão (MAZZA, 2015).

Podem participar, na condição de acusados ou sindicados no PAD todos os servidores públicos que estão submetidos à Lei nº 8.112/1990, conforme consta nos artigos 2º e 3º:

  1. servidores públicos federais ocupantes de cargo efetivo:
  • em estágio probatório; ou
  • estáveis, aprovados no estágio probatório após três anos de efetivo exercício no cargo investido mediante concurso público ou que tivessem cinco anos de exercício no cargo na data da promulgação da Constituição federal (CF) de 1988, conforme consta do artigo 41 da Constituição federal e do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF, respectivamente.
  1. servidores federais ocupantes de cargo em comissão.

O PAD examina a existência de um ilícito administrativo diante de uma infração funcional e será conduzido por comissão de servidores, designados pela autoridade competente, responsável pelo parecer final opinando pela condenação ou absolvição do acusado (OLIVEIRA, 2013). A referida Comissão é composta por três servidores estáveis e o respectivo presidente deve ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado (art. 149 da Lei nº 8.112/90). É vedada a participação, na comissão de sindicância ou de inquérito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau (art. 149 §2º da Lei nº 8.112/90).

As penalidades disciplinares serão aplicadas (art. 141 da Lei nº 8.112/90):

I - pelo Presidente da República, pelos Presidentes das Casas do Poder Legislativo e dos Tribunais Federais e pelo Procurador-Geral da República, quando se tratar de demissão e cassação de aposentadoria ou disponibilidade de servidor vinculado ao respectivo Poder, órgão, ou entidade;

II - pelas autoridades administrativas de hierarquia imediatamente inferior àquelas mencionadas no inciso anterior quando se tratar de suspensão superior a 30 (trinta) dias;

III - pelo chefe da repartição e outras autoridades na forma dos respectivos regimentos ou regulamentos, nos casos de advertência ou de suspensão de até 30 (trinta) dias;

IV - pela autoridade que houver feito a nomeação, quando se tratar de destituição de cargo em comissão.

As penalidades de advertência e de suspensão terão seus registros cancelados, após o decurso de 3 (três) e 5 (cinco) anos de efetivo exercício, respectivamente, se o servidor não houver, nesse período, praticado nova infração disciplinar (art.131 da Lei nº 8.112/90).

Não poderá mais retornar ao serviço público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão nos casos de (art. 137, parágrafo único, da Lei nº 8.112/90):

  1. Crime contra a Administração Pública;
  2. Improbidade administrativa;
  3. Aplicação irregular de dinheiros públicos;
  4. Lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
  5. Corrupção.

 O prazo para a conclusão do processo disciplinar não excederá 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem (art.152 da Lei nº 8.112/90).

O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada (art. 174 da Lei nº 8.112/90).

Quanto à presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar, o Supremo Tribunal Federal, através da Súmula Vinculante nº 5[8], diz a seguinte orientação: a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

Os agentes políticos possuem responsabilidade regulada pela própria Constituição Federal e por outras leis, não se aplicando a eles a Lei nº 8.112/1990.

O vínculo dos empregados públicos com as empresas públicas ou sociedades de economia mista não é regulamentado pela Lei nº 8.112/1990, sendo a eles aplicadas as penalidades disciplinares, inclusive rescisão do contrato de trabalho, por desrespeito aos deveres e proibições constantes em normativos internos e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A apuração deverá seguir o rito estabelecido em normativo interno, caso existente.

  1. INDEPENDÊNCIA E COMUNICABILIDADE DAS ESFERAS DE RESPONSABILIDADES

As esferas de responsabilidades (administrativa, cível e penal) são, em regra, independentes, de tal sorte que as penas aplicadas em cada uma das esferas serão cumulativas, ressalvadas as exceções em que a decisão proferida no juízo penal deve prevalecer, fazendo coisa julgada na área cível e na administrativa.

De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2022), quando o funcionário for condenado na esfera criminal, o juízo cível e a autoridade administrativa não podem decidir de forma contrária, uma vez que, nessa hipótese, houve decisão definitiva quanto ao fato e à autoria, aplicando-se o artigo 935 do Código Civil de 2002.

O artigo 935 do Código Civil dispõe:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Ainda segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2022), quando a sentença for pela absolvição, há que se distinguir os seus vários fundamentos, indicados no artigo 386 do Código de Processo Penal (com a redação alterada pela Lei nº 11.690/08) (...).

Os incisos I a VII do art. 386 do Código de Processo Penal[9] estabelecem:

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

I - estar provada a inexistência do fato;

II - não haver prova da existência do fato;

III - não constituir o fato infração penal;

IV - estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;

V - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;

VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 2326 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;

VII - não existir prova suficiente para a condenação.

As absolvições fundadas nos incisos IIV e VI do artigo 386 do Código de Processo Penal influenciam as decisões a serem proferidas nas esferas civis e administrativas.

No tocante aos incisos I e IV do artigo 386 do Código de Processo Penal, a repercussão nas demais esferas ocorre em razão da regra imposta pelo artigo 935 do Código Civil.

Os casos supracitados contemplam hipótese em que a decisão de um processo repercute nas outras duas instâncias: a responsabilidade administrativa e civil do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou de sua autoria (art. 126 da Lei nº 8.112/90).

Por sua vez, no caso do inciso VI do artigo 386 do Código de Processo Penal, o reflexo nas esferas civil e administrativa se dá com fundamento no artigo 65 do Código de Processo Penal, que dispõe:

Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhece ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Ressalta-se que a absolvição fundamentada na hipótese do inciso III do art. 386 do Código de Processo Penal não repercute nas demais esferas de responsabilidade, pois o mesmo fato que não constitui crime pode corresponder a uma infração disciplinar ou a um ilícito civil.

Igualmente, nas hipóteses dos incisos II, V e VII, em que absolvição se dá por falta de provas, não haverá repercussão nas outras esferas de responsabilidade, uma vez que as provas que não são suficientes para demonstrar a prática de um crime podem ser suficientes para comprovar ilícitos civis ou administrativos.

  1. RESPONSABILIDADE POR ATOS PRATICADOS NA VIDA PRIVADA SEM VINCULAÇÃO COM AS ATRIBUIÇÕES FUNCIONAIS

Toda sociedade almeja usufruir de um serviço público de qualidade e é imprescindível a existência de prestadores de serviço qualificados e dedicados a genuinamente servir ao público. Atender às necessidades do cidadão é a grande missão do servidor público, eles exteriorizam a vontade do Estado.

De acordo com o STF, "na aferição da responsabilidade administrativa é de se levar em consideração os fatos vinculados à atividade funcional do servidor público". Logo, pode-se concluir que a instauração de processo administrativo disciplinar ocorre em duas hipóteses:

I) quando há vinculação entre o fato e a função pública;

II) quando o fato foi praticado no exercício da função (STOCO, 2015).

Portanto, em regra geral, atos da vida privada não caracterizam infração disciplinar. Exceção a essa regra ocorre quando a conduta estiver indiretamente relacionada às atribuições do cargo. Podemos citar, como exemplo, o caso do servidor que exerce consultoria fora do horário de expediente ou durante suas férias, utilizando-se do prestígio do cargo que ocupa ou do acesso privilegiado as informações técnicas como diferenciais para arregimentar clientes. Há casos, no entanto, em que o comportamento privado do servidor tem tamanha relevância que também é normatizado por seu estatuto, como no caso dos policiais federais, cuja legislação proíbe, por exemplo, a inadimplência habitual ou amizade com pessoas que tenham antecedentes criminais (Lei nº 4.878/1965).

A Administração Pública não tem nada a ver com o que seus servidores públicos ou altas autoridades da República fazem ou deixam de fazer fora do horário de trabalho, mas a falta de ética e moralidade, por exemplo, propiciam a perda da credibilidade na máquina pública. Sejam atos praticados no exercício de funções públicas no local e no horário de trabalho, mas também, aqueles atos praticados na vida privada e que possuem alguma relação com o exercício de seu cargo, poderá ser punido por má conduta.

José Armando da Costa (2005) acentua que em virtude do fato de a moralidade e seriedade da Administração Pública eventualmente caírem no descrédito, o procedimento irregular do servidor em sua vida privada pode se enquadrar no âmbito da responsabilidade disciplinar. Assim, o mesmo autor inclui entre as transgressões disciplinares o comportamento desonroso praticado pelo servidor público inescrupuloso e ímprobo em sua vida privada, porque, se esta abalar o crédito, a seriedade e a moralidade com que devem ser considerados os agentes da Administração Pública, desacreditando, por via indireta, o prestígio estatal perante a sociedade, não mais convirá a permanência do funcionário como integrante da estrutura administrativa do Estado.

Segundo Antonio Carlos Alencar Carvalho (2008) o servidor público não precisa ser um beato, um santo a ser canonizado, um ser humano imune ao pecado e ao erro, um ser perfeito, mas apenas que sua conduta na vida privada não se demonstre gravemente incompatível com o exercício das atribuições do cargo em que investido. Um exemplo disso é corroborado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, que denegou mandado de segurança impetrado por servidor público, demitido em face do enquadramento de sua conduta com improbidade administrativa, por incursão no tipo previsto no art. 11, V, da Lei nº 8.429/92, em combinação com o art. 132, IV, da Lei nº 8.112/90, por transgressão praticada fora do exercício funcional, mas que se julgou, por reflexo, comprometedora da probidade administrativa, consoante trecho da ementa do acórdão, a seguir transcrita:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRISÃO EM FLAGRANTE DE ADVOGADO DA UNIÃO QUE PRETENSAMENTE SE FEZ PASSAR POR OUTRA PESSOA EM CONCURSO PÚBLICO. PLEITO DE TRANCAMENTO. TESE DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. PREVISIBILIDADE DA CONDUTA EM TESE NA LEGISLAÇÃO DISCIPLINAR APLICÁVEL. NULIDADE DA PORTARIA. NÃO-OCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADO.

1. Não se vislumbra a atipicidade da conduta que, em tese, pode perfeitamente assumir adequação típica, amoldando-se ao disposto nos arts. 116, inciso IX e 132, inciso IV, ambos da Lei n.º 8.112/90, este último c.c. o art. 11, inciso V, da Lei n.º 8.429/92. 2. Embora o pretenso ato ilícito não tenha sido praticado no efetivo exercício das atribuições do cargo, mostra-se perfeitamente legal a instauração do procedimento administrativo disciplinar, mormente porque a acusação impinge ao Impetrante conduta que contraria frontalmente princípios basilares da Administração Pública, tais como a moralidade e a impessoalidade, valores que tem, no cargo de advogado da União, o dever institucional de defender. Ordem denegada (BRASIL, 2009).

Existem diversos exemplos na legislação que preveem a necessidade de processo administrativo disciplinar (PAD) para apurar a responsabilidade do servidor por atos da vida privada. O Estatuto da Polícia Civil do Distrito Federal[10] (Lei federal 4.878/1965), além de regrar que enseja pena de demissão a prática de crime comum contra o patrimônio ou contra os costumes (art. 48), reza:

Art. 43 - São transgressões disciplinares:

V - deixar de pagar, com regularidade, as pensões a que esteja obrigado em virtude de decisão judicial;

VI - deixar, habitualmente, de saldar dívidas legítimas;

VII - manter relações de amizade ou exibir-se em público com pessoas de notórios e desabonadores antecedentes criminais, sem razão de serviço;

XXXV - contrair dívida ou assumir compromisso superior às suas possibilidades financeiras, comprometendo o bom nome da repartição;

XXXVI - frequentar, sem razão de serviço, lugares incompatíveis com o decoro da função policial;

XLIV - dar-se ao vício da embriaguez;

LI - entregar-se à prática de vícios ou atos atentatórios aos bons costumes;

Estatuto dos militares[11] (Lei nº 6.880/1980):

Art. 28. O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar:

XII - cumprir seus deveres de cidadão;

XIII - proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular;

XIV - observar as normas da boa educação;

XV - garantir assistência moral e material ao seu lar e conduzir-se como chefe de família modelar;

XVI - conduzir-se, mesmo fora do serviço ou quando já na inatividade, de modo que não sejam prejudicados os princípios da disciplina, do respeito e do decoro militar;

Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro[12] (Lei complementar nº 106/2003):

Art. 58 - São requisitos para ingresso na carreira do Ministério Público:

VII - ter conduta pública e particular irrepreensível, não haver sido demitido, em qualquer época, do serviço público, nem registrar antecedentes criminais incompatíveis com o exercício do cargo.

Estatuto dos servidores públicos civis do Estado do Rio de Janeiro[13] (Decreto nº 2.479/1979):

Art. 290  A responsabilidade administrativa resulta de atos praticados ou omissões ocorridas no desempenho do cargo ou função, ou fora dele, quando comprometedores da dignidade e do decoro da função pública.

Estatuto do Ministério Público da União[14] (Lei complementar nº 75/1993):

 Art. 236. O membro do Ministério Público da União, em respeito à dignidade de suas funções e à da Justiça, deve observar as normas que regem o seu exercício e especialmente:

 X - guardar decoro pessoal.

Estatuto da OAB[15] (Lei nº 8.906/1994):

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

Parágrafo único. Inclui-se na conduta incompatível:

a) prática reiterada de jogo de azar, não autorizado por lei;

b) incontinência pública e escandalosa;

c) embriaguez ou toxicomania habituais.

Di Pietro (2022) doutrina: "A vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo", mas enfatiza que, para configurar ilícito disciplinar, o mau comportamento na privacidade do servidor tem que, direta ou indiretamente, surtir reflexos na vida funcional. Daí alguns estatutos incluírem, entre os deveres funcionais, o de proceder na vida pública e privada na forma que dignifique a função pública e punirem com demissão o funcionário que for convencido de incontinência pública e escandalosa. Pela mesma razão, alguns autores consideram que o procedimento irregular, a desídia, a incontinência de conduta, puníveis com demissão, podem abranger o mau procedimento na vida privada ou na vida funcional.

Importante também ressaltar uma regra deontológica do Código de ética profissional do servidor público federal[16] (Decreto nº 1.171/1994): A função pública deve ser tida como exercício profissional e, portanto, se integra na vida particular de cada servidor público. Assim, os fatos e atos verificados na conduta do dia-a-dia em sua vida privada poderão acrescer ou diminuir o seu bom conceito na vida funcional. Portanto, é importante observar se a atitude do servidor público, ainda que tomada no âmbito privado, vai contra a função social, valores e missão pregados.

Os servidores públicos existem em razão da Administração Pública já que eles possuem um vínculo de trabalho profissional com órgãos e entidades e é por meio deles que o Estado se relaciona com os administrados. No setor público, determinadas atitudes da vida privada podem afetar seus cargos, empregos ou funções na Administração. Atuar na Administração Pública como servidor significa contribuir para a melhoria da gestão, da imagem e reputação da entidade, promovendo serviços mais eficazes e transparentes, para que os cidadãos possam acreditar na eficiência dos serviços públicos.

CONCLUSÃO

A redação do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988[17] diz que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Entretanto, comportamentos da vida privada não podem extrapolar o âmbito da sua vida pessoal, misturando com as atribuições do seu cargo no qual se encontra investido e afetando indiretamente. Ser servidor público requer entendimento de suas atribuições e adesão às normas públicas de comportamento modelar. O agente público aquele que trabalha para servir a sociedade, construindo diariamente a história e o papel social da Administração Pública, representando seus ideais. Portanto sua vida privada, se tiver relevância pública, pode afetar a imagem da instituição de forma positiva ou negativa.

É entendimento dos Tribunais que para o processamento de um processo disciplinar nessas situações é imprescindível que tal fato afete a vida pública, projetando-se negativamente sobre suas atribuições. São casos excepcionais, que prejudicam a imagem do servidor e, portanto, a imagem da Administração Pública.

Portanto, o servidor público precisa ter muito cuidado para que os atos da sua vida privada não afetem ou repercutam de forma negativa no ambiente de trabalho. Só em casos inquestionáveis de prejuízo para a atividade funcional ou o prestígio direto do funcionário em face das atribuições específicas de seu cargo, prejudicadas pela ação consumada no âmbito particular, a responsabilização poderá ser aplicada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Decreto Nº 1.171, de 22 de junho de 1994. Dispõe sobre o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1171.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm#:~:text=DECRETO%2DLEI%20No%202.848%2C%20DE%207%20DE%20DEZEMBRO%20DE%201940&text=C%C3%B3digo%20Penal>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Decreto-Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 4.878, de 3 de dezembro de 1965. Dispõe sobre o regime jurídico peculiar dos funcionários policiais civis da União e Distrito Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4878.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm#:~:text=L8112consol&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20regime%20jur%C3%ADdico,10%20DE%20DEZEMBRO%20DE%201997>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

BRASIL. Lei Complementar Nº 75, de 20 de maio de 1993. Dispõe sobre a organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp75.htm>. Acesso em: 08 jul. 2022.

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