Métodos de solução consensual de conflitos e uma lição de Piero Calamandrei

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Uma defesa dos métodos de solução consensual dos litígios, que permitem às partes matar litígios antes do processo, sem recorrer ao Judiciário, a partir de uma lição do processualista italiano Piero Calamandrei

Ao nos referirmos à solução de conflitos na Justiça, abordamos em geral a diferença entre os chamados instrumentos de autocomposição e de heterocomposição, não sendo a lide processual a única hipótese de resolução de conflitos nem sendo apenas através do Judiciário que podemos acessar a Justiça, diante de novas possibilidades para uma melhor prestação jurisdicional, conforme o art.3º § 3º do CPC/15 prevendo o estímulo à conciliação, à mediação e a outros métodos de solução consensual de conflitos, bem como o art.3º § 1º permitindo a arbitragem. Vemos, portanto, o próprio Estado promovendo a solução consensual dos conflitos. E no mesmo ano do CPC-2015 surgiu a Lei 13.140/2015, marco legal da mediação no Brasil.

Se na heterocomposição, em um processo judicial, o juiz impõe uma sentença para as partes, o que também ocorre na arbitragem, em que um terceiro decide quem tem razão, na autocomposição, não: o terceiro auxilia no diálogo, mas não decide. Um mediador não impõe solução, assim como um conciliador sugere hipóteses de acordo, aconselha partes, embora haja diferenças importantes entre a mediação e a conciliação. Mediação e conciliação, porém, possuem as mesmas vantagens: são caminhos mais econômicos para resolução de conflitos, especialmente se ocorrerem na fase pré-processual, gerando acordo em vez de um processo. 

Se voltamos ao pensamento do processualista italiano Piero Calamandrei, autor de Eles, os juízes, vistos por um advogado (CALAMANDREI, 1995), encontraremos suas Considerações sobre a chamada litigiosidade, em que o autor sugere que há um momento em que o advogado deve desaconselhar o cliente a intentar uma ação, levando em conta as razões da outra parte, sendo maior a utilidade social de um advogado – para o autor – quanto maior for “o número de sentenças de improcedência pronunciadas em seu escritório” (CALAMANDREI, 1995: 147). E por que Calamandrei diz isso? Porque ele acredita que o mais precioso no trabalho do advogado é aquele realizado antes do processo, matando litígios com conselhos de negociação, fazendo o possível para não ser indispensável recorrer ao Judiciário. Afinal, diz Calamandrei (1995: 159), que desde os tempos de Justiniano, quando se conceberam os meios processuais para se evitar que os litígios se tornassem paene immortales, o processo era imaginado como um organismo vivo, que nasce, cresce e morre com o julgado ou antes, com a conciliação.

Neste mesmo sentido, Calamandrei sinaliza que os magistrados muitas vezes descartam questões de fato, sendo, no entanto, aqueles magistrados que optam por se aterem às questões de fato, figuras para quem importa mais encontrar uma solução justa que melhor corresponda à realidade concreta, pensando mais no bem das partes, consagrando-se, pelas partes, a um longo estudo dos autos dos processos, o que, segundo Calamandrei, requer abnegação e não dá a glória do uso do tempo com a colaboração em revistas jurídicas (CALAMANDREI, 1995: 165), daí serem minoria.

Para o autor, não está muito voltado para a Justiça o juiz que sobrepõe questões de direito às questões de fato. Como exemplo metafórico, cita uma anedota de um médico que, diante de um doente, declamou dissertações filosóficas sobre a origem metafísica das doenças, deixando os parentes do paciente pasmos com sua sabedoria, vindo o ente, no entanto, a falecer após a consulta. Calamandrei diz que em jargão forense este médico se trata de um “especialista em questões de direito”. Com a máxima ex facto oritur ius (“o direito nasce do fato”), Calamandrei destaca ser da maior importância, porém, o juiz se ater aos fatos mais do que às teorias jurídicas que se prestam aos virtuosismos que ajustam os fatos de acordo com as teorias, como se houvesse sentido em uma máxima do tipo ex iure oritur factum (“do direito nasce o fato”).

São precisamente essas lições de Calamandrei que podem nos fazer enxergar com muito bons olhos os métodos de solução consensual dos litígios, que permitem às partes matar litígios antes do processo, com a mediação, sem recorrer ao Judiciário, em que poderão encontrar pela frente tanto um juiz atento às questões de fato – examinando cuidadosamente os autos do processo para dar sua sentença – quanto um juiz que privilegie as questões de direito, as teorias jurídicas e os virtuosismos que submetem os fatos às teorias. Qual é o risco das partes em conflito? Saírem, ambas, insatisfeitas com a sentença judicial.

Com métodos como a mediação e a conciliação, as partes terão a oportunidade de encontrarem em suas questões de fato as melhores alternativas para solucionarem seus conflitos, sendo muitas das vezes leigas em questões de direito. Aliás, os próprios mediadores, devendo observarem bem o que cabe ao seu papel, não serão obrigatoriamente bacharéis em Direito, e poderão ser de outras áreas do conhecimento, como a Psicologia.

Com isso, esses métodos podem propiciar melhores resultados fáticos, não apenas do ponto de vista dos custos menores e da maior rapidez com que levarão as partes às desejadas soluções de seus conflitos. O risco da morosidade, usando a metáfora de Calamandrei do moribundo que assiste a uma verdadeira palestra do médico sobre a origem metafísica das doenças, é a vida das pessoas serem perdidas antes que tenham seus conflitos solucionados. Mas o risco das questões de direito se sobreporem às questões de fato pode levar a uma falta de resolução de fato, mesmo após anos litigando!

 Neste sentido, Flávia Hill (2018) mostra como a mediação nos cartórios extrajudiciais, diante da “aposta” feita pelo legislador nos métodos de solução consensual dos litígios e do déficit de mediadores diante do grande volume de litígios que surgem, podem ser importantes para permitir uma ampliação deste método de solução consensual de conflitos. Segundo Hill, o próprio TJRJ vem estimulando a conciliação pré-processual, inclusive ocorrida virtualmente mesmo antes da pandemia de Covid-19, em que uma proposta de acordo é enviada a um consumidor que esteja querendo iniciar uma lide processual. Além disso, Hill cita a tentativa de acordo, na presença de um conciliador, antes da propositura de uma ação, também realizada pelo TJRJ com o nome de Expressinho, na esteira das mediações que já vinham sendo realizadas pela Câmara Brasileira de Mediação e Arbitragem, entre outras câmaras pertencentes ao CONIMA – Conselho Nacional de Instituições de Mediação e Arbitragem.

Hill, aliás, desde 2015 vinha fazendo coro a uma defesa dos métodos de solução consensual de conflitos, fazendo votos de que estivéssemos prontos para passarmos de uma “cultura da judicialização” para uma “cultura do consenso” em seu artigo A Mediação de Conflitos no novo Código de Processo Civil e na Lei Federal 13.140/2015, em que tratou dos meios alternativos de soluções de conflitos também chamados de métodos extrajudiciais de soluções de controvérsias a partir do novo CPC-15 e da Lei 13.140/15 (HILL, 2015).

E Fabiana Spengler (2018) tem sido defensora, nesses termos, da chamada “(des)institucionalização da mediação pelo Poder Judiciário brasileiro” (SPENGLER, 2018), verificando em suas pesquisas que a mediação não tem sido institucionalizada pelo nosso Judiciário e que sequer tem sido aplicada e utilizada de modo linear. Para ela, no contexto jurídico e jurisdicional a mediação muitas vezes é tratada como “meio miraculoso” de tratar conflitos, como se o mediador tivesse um poder sobrenatural, mas não se trata disso: trata-se de reconhecer que a mediação realiza o fim que a jurisdição parece negar, a seu ver, que é a recuperação dos espaços decisionais que não devem ser impostos via jurisdição, para não se recair na lógica conflitual, devendo ser reconhecidas jurisdição e mediação como dimensões distintas.

Afinal, como diz Humberto Dalla tratando do CPC-15 e da Lei 13.140 de 2015, o objetivo da mediação é o restabelecimento da comunicação entre as partes envolvidas, com a preservação da relação anteriormente existente. (DALLA, 2016: 68)

Referências

 

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

 

DALLA, Humberto. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: SESES, 2016.

 

HILL, Flávia. Mediação nos Cartórios Extrajudiciais: Desafios e Perspectivas. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro. Ano 12. Volume 19. Número 3. Setembro a Dezembro de 2018

 

HILL, Flávia. A Mediação de Conflitos no Novo Código de Processo Civil e na Lei Federal nº 13.140/2015. In: MORAES, Carlos Eduardo Guerra; RIBEIRO, Ricardo Lodi & MIRZA, Flavio (org). Direito Processual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.

 

SPENGLER, Fabiana. A (des)institucionalização da mediação pelo Poder Judiciário Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro. Ano 12. Volume 19. Número 3. Setembro a Dezembro de 2018

 

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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