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O ressarcimento ao erário nas ações de improbidade administrativa.

A permanência da solidariedade após o advento da Lei nº 14.230/2021

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A nova Lei da Improbidade Administrativa veda a solidariedade nas sanções. Essa regra atinge o ressarcimento ao erário?

Resumo: O art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992, em razão das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, passou a vedar a solidariedade na condenação por atos de improbidade administrativa. Partindo de uma abordagem qualitativa e procedimento bibliográfico, o trabalho examina se esse dispositivo se dirige apenas aos aspectos sancionadores da ação de improbidade ou se abrange também o ressarcimento ao erário decorrente da prática de atos ímprobos. Ao final, aponta-se que o art. 17-C, § 2º, recai somente sobre as diretrizes de ordem punitiva, de modo que a recomposição do patrimônio público continua sendo solidária. Também se constata que tal disposição, ainda que fosse aplicável ao ressarcimento, não afastaria completamente a solidariedade, e que a derrogação total do regime solidário seria inconstitucional por violar os princípios da proibição da proteção deficiente e da isonomia.

Palavras-chave: Improbidade administrativa; Ressarcimento ao erário; Solidariedade; Proteção deficiente; Princípio da isonomia.


1. Introdução

Com o advento da Lei nº 14.230/2021, incluiu-se na Lei de Improbidade Administrativa, a Lei nº 8.429/1992, o art. 17-C, § 2º, o qual passou a prever que, quando houver litisconsórcio passivo no âmbito das ações de improbidade administrativa, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade (BRASIL, 1992).

Embora a proibição ao regime solidário tenha se dado de forma taxativa, o modo pelo qual o dispositivo foi redigido não deixa suficientemente claro se a sua abrangência alcança apenas as sanções previstas nos incisos do art. 12. da Lei nº 8.429/19921, ou se abarca também outros aspectos civis que decorrem da prática dos atos ímprobos.

O esclarecimento dessa imprecisão é muito relevante para o microssistema da tutela coletiva: acaso o alcance da norma seja o mais abrangente possível, o ressarcimento ao erário nas ações de improbidade administrativa não se dará mais de forma solidária, o que representaria verdadeira superação do entendimento jurisprudencial consagrado em diversas Cortes brasileiras, como o Superior Tribunal de Justiça2, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná3 e o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais4.

Ocorre que a delimitação da controvérsia não se revela tarefa tão simples. Existem fundamentos para sustentar que a ampla reforma legislativa da Lei de Improbidade Administrativa teve por enfoque apenas as questões de cunho eminentemente punitivo, o que ficaria evidenciado com a inclusão do art. 17-D, caput, na Lei nº 8.429/1992, segundo o qual as ações de improbidade administrativa passam a ter caráter repressivo e se destinam apenas à aplicação das sanções de caráter pessoal.

Por outro lado, também é possível afirmar que a Lei nº 14.230/2021 visava a disciplinar tanto os aspectos sancionadores quanto as repercussões civis dos atos ímprobos, o que seria demonstrado pela nova redação dada ao art. 18, caput, da Lei nº 8.429/1992, que estabelece que a sentença que reconhecer a prática de condutas que importem lesão ao erário deve promover automaticamente a condenação à reparação dos respectivos danos.

Diante desse cenário aparentemente incerto, o presente trabalho examina, por meio de abordagem qualitativa e procedimento bibliográfico, o real alcance da vedação da solidariedade estabelecida pelo art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992: somente as pretensões sancionadoras dos atos de improbidade administrativa ou também as ressarcitórias. Apura-se também se a última hipótese seria uma opção legislativa constitucionalmente válida, na medida em que a probidade administrativa é considerada um direito fundamental e a recomposição do erário é uma medida que afeta diretamente a sua higidez.

O artigo foi dividido em cinco sessões. A primeira busca definir qual é o ramo do direito a que a Lei nº 8.429/1992 se propõe a regular. A segunda procura estabelecer qual é a norma que efetivamente emana do art. 17-C, § 2º, à luz de diversas técnicas hermenêuticas. Já a terceira explora se eventual restrição à solidariedade no ressarcimento ao erário não conferiria proteção deficiente à probidade administrativa. A quarta, por sua vez, examina se o princípio da isonomia não seria violado por um afastamento da responsabilidade solidária na reparação dos danos ao erário. A seguir, são apresentadas as conclusões.


2. Ramo do direito regulado pela Lei nº 8.429/1992

O art. 17-C, § 2º, na Lei nº 8.429/1992, conforme exposto anteriormente, proibiu a responsabilidade solidária na condenação por atos ímprobos, sem ter especificado se o seu alcance é direcionado apenas para as sanções genuinamente punitivas, elencadas na nova redação do art. 12, I, II e III, do mesmo diploma legislativo, ou se abarca também a reparação dos danos causados por esses ilícitos.

Com relação às penalidades de ordem marcadamente sancionadora, não parece haver maiores dúvidas acerca da incidência do dispositivo. Em virtude do princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, já havia um relativo consenso no ordenamento jurídico de que cada agente só poderia responder pelas penalidades em voga nos estritos limites da sua participação, haja vista que nenhuma pena passará da pessoa do condenado (BRASIL, 1988).

No tocante ao ressarcimento ao erário, entretanto, a constatação não é tão óbvia como pode parecer em um primeiro momento. Apesar de o art. 18, caput, da Lei nº 8.429/1992 ter feito alusão à reparação do dano nas sentenças de improbidade administrativa, existem diversos outros dispositivos incluídos pela Lei nº 14.230/2021 indicando que a vocação da Lei nº 8.429/1992 não é disciplinar juridicamente a recomposição dos prejuízos causados ao patrimônio público, de sorte que o art. 17-C, § 2º, não teria afastado o regime solidário nesse ponto.

O novel art. 17-D, caput, da Lei nº 8.429/1992 talvez se destaque como um dos dispositivos de maior proeminência nesse sentido, na medida em que conferiu à ação de improbidade administrativa um caráter sancionador e definiu que o seu objeto consiste exclusivamente na aplicação das penas de caráter pessoal. E elas, por sua vez, não abrangem a reparação das lesões causadas.

De fato, após as alterações implementadas pela Lei nº 14.230/2021, os incisos I, II e III do art. 12. da Lei nº 8.429/1992 não contemplam mais o ressarcimento integral do dano como uma das penalidades existentes. Pelo contrário, o caput desse dispositivo é enfático ao estabelecer uma relação de independência e autonomia entre a recomposição do erário e as sanções cabíveis ao agente ímprobo.

Mesmo sob a égide da antiga redação do art. 12 da Lei nº 8.429/1992, em que o ressarcimento era elencado como sanção, já se apontava que a essência da reparação do patrimônio público não era punitiva, mas mera consequência do prejuízo ocasionado ao erário, conforme ilustrado pela jurisprudência dominante da época5 e por autores como Hugo Nigro Mazzilli6, Edilson Vitorelli7, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves8.

Desse modo, conquanto a reparação dos danos nunca tenha sido considerada uma pena propriamente dita, é forçoso reconhecer que as recentes modificações legislativas sepultaram qualquer discussão nesse sentido. A retirada da recomposição do erário do rol de sanções do art. 12. da Lei nº 8.429/1992, aliada à autonomia que lhe foi expressamente conferida pelo seu caput, constituem indicativos contundentes de que, após o advento da Lei nº 14.230/2021, a reparação dos danos não é mais regulada pela Lei nº 8.429/1992.

Aliás, nem seriam necessárias muitas digressões para se constatar isso, na medida em que o parágrafo único do 17-D da Lei nº 8.429/1992 veicula que a responsabilidade dos agentes ímprobos por lesões causadas ao patrimônio público não se submete aos ditames da Lei nº 8.429/1992, mas sim aos da Lei nº 7.347/1985. O desiderato do legislador é reforçado também pelo caput do dispositivo, que veda o ajuizamento de ações de improbidade administrativa para a proteção do patrimônio público.

Em outras palavras, a Lei nº 14.230/2021 afirmou categoricamente que os comandos normativos da Lei nº 8.429/1992 dizem respeito apenas ao aspecto punitivo dos atos de improbidade administrativa, cabendo à ação civil pública tutelar as pretensões que, não obstante permeiem esse ilícito, estejam desprovidas de cunho repressivo.

Sob essa perspectiva, o fato de o art. 18, caput, da Lei nº 8.429/1992 impor o respectivo ressarcimento quando da condenação de atos que importem lesão ao erário não pode ser tomada como pretexto para aplicar o regramento da Lei nº 8.29/1992 aos aspectos civis das condutas ímprobas.

O que o dispositivo em voga apregoa é meramente uma relação de causalidade entre o reconhecimento do ato ilícito e a sua correspondente indenização, nos mesmos moldes do que o art. 387, IV, do Código de Processo Penal faz quando determina que o juiz, ao proferir uma sentença condenatória, fixe valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (BRASIL, 1941).

Isso não significa, contudo, que a recomposição do dano sofrido deva ser juridicamente regulada pelo Código de Processo Penal ou, no objeto do presente trabalho, pela Lei nº 8.429/1992 , mas tão somente que esses diplomas asseguram o ressarcimento como uma consequência inerente à própria prática do ilícito, seja ele civil ou criminal.

O inequívoco distanciamento entre a ação de improbidade administrativa e a proteção do patrimônio público que encontra no ressarcimento ao erário o seu mais relevante instrumento não pode ser ignorado, sob pena de tornar sem utilidade prática alguma o comando do art. 17-D da Lei nº 8.429/1992, particularmente o seu parágrafo único.

Partindo dessas premissas, parcela da doutrina já tem defendido que os dispositivos da Lei nº 8.429/1992 só encontram aplicação diante de pretensões sancionadoras, devendo a reparação dos danos ser regida pelas regras do microssistema coletivo ou de outro ramo pertinente do direito.

Para Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2022, p. 112), por exemplo, se o motivo para criar uma série de regras processuais de maior proteção ao réu é a natureza sancionatória da demanda, não há nenhuma razão para aplicá-las naquilo que a pretensão se limita à reparação de dano sofrido pela pessoa jurídica.

Elucidando a linha de raciocínio adotada, os autores sustentam que o art. 17, § 6º, II, da Lei nº 8.429/1992, que afasta a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor na hipótese de revelia do réu, não é aplicável para a comprovação do dano ou para a quantificação do seu valor. Do mesmo modo, o art. 17, § 19, II, segundo o qual é proibida a distribuição dinâmica do ônus da prova, embora seja coerente quanto aos fatos relacionados à configuração do ato de improbidade, não incide na demonstração do prejuízo ao patrimônio público ou na apuração do seu quantum (2022, p. 112).

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Em sentido semelhante, Calil Simão assevera que o ressarcimento ao erário, por ter caráter secundário e acessório no contexto da Lei nº 8.429/1992, não tem o condão de desvirtuar a sua natureza sancionadora. Ainda que a recomposição do patrimônio público esteja presente em uma ação de improbidade administrativa, devem incidir nessa parte as regras da responsabilidade civil:

Por essas razões, temos defendido que a ação de improbidade administrativa é uma ação genuinamente punitiva, sendo a função reparadora acidental. E, por ser ela secundária ou acessória, depende da principal para ser veiculada. Em outras palavras, as regras aplicáveis à ação de improbidade administrativa são aquelas referentes ao Direito Punitivo. Eventualmente, quando houver uma tutela reparatória agregada à tutela punitiva, aí, sim mas somente referente a ela , teríamos a aplicação das regras respectivas da responsabilidade civil. Contudo, essas regras de maneira alguma poderiam refletir no conteúdo punitivo (2022, p. 347).

A reparação dos danos causados por atos ímprobos, portanto, não é regida pelo art. 17-C, § 2º, sobretudo porque o próprio legislador optou por afastar a tutela do patrimônio público do âmbito de incidência da Lei nº 8.429/1992 com a inclusão do art. 17-D, caput e parágrafo único.

A solidariedade nesse contexto é disciplinada pelo regramento geral da responsabilidade civil, mais especificamente pelo art. 942, caput, do Código Civil, cujo texto estabelece que os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação (BRASIL, 2002).

Esse dispositivo da codificação civilista, aliás, tem sido apontado há muito tempo como a razão pela qual a recomposição do patrimônio público é solidária. Ainda em 2013, foi utilizado para lastrear a edição do Enunciado 558 da VI Jornada de Direito Civil, segundo o qual são solidariamente responsáveis pela reparação civil, juntamente com os agentes públicos que praticaram atos de improbidade administrativa, as pessoas, inclusive as jurídicas, que para eles concorreram ou deles se beneficiaram direta ou indiretamente (BRASIL, 2013).

Na ocasião, o Conselho da Justiça Federal apresentou a seguinte justificativa para redigir a tese:

O art. 942, caput e parágrafo único, do Código Civil materializa tanto o princípio da imputação civil dos danos quanto o princípio da responsabilidade solidária de todos aqueles que violam direito alheio [] Há uma acentuada preocupação, no entanto, pois não raro a defesa dos infratores pontua que não se pode estabelecer condenação de natureza fortemente punitiva, como o é a decretação da perda dos bens, sem uma tipificação legal estrita. Assim, enquanto não for editada nova regulação para a matéria, defendemos a necessária aplicação do art. 942, caput e parágrafo único, do Código Civil como suporte legal para a responsabilidade solidária de todos os envolvidos na prática de atos de improbidade administrativa, sejam ou não agentes públicos (BRASIL, 2013).

Assim, tem-se que o ressarcimento ao erário dos danos decorrentes da prática de atos ímprobos prossegue solidário mesmo após o advento da Lei nº 14.230/2021, porquanto o fundamento jurídico que subsidia esse regime de responsabilidade é o art. 942, caput, do Código Civil, e não o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992.


3. Alcance normativo do art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992

Sem embargo das considerações tecidas até aqui, é pertinente demonstrar que o regime solidário na recomposição do patrimônio público não seria afastado das ações de improbidade administrativa, ao menos não de forma absoluta, ainda que o art. 17-C, 2º, da Lei nº 8.429/1992 encontrasse aplicação no âmbito do ressarcimento ao erário.

Isso porque uma leitura atenta desse dispositivo demonstra que a proibição da solidariedade foi veiculada de forma bastante específica pelo legislador apenas quanto às sentenças condenatórias. Vale dizer, a condenação foi erigida como o marco a partir do qual o caráter solidário fica vedado, de sorte que, por meio de uma interpretação literal do próprio art. 17-C, § 2º, continuaria sendo perfeitamente aplicável o regramento da codificação civilista nos atos anteriores a esse momento.

Não se ignora que a análise literal nem sempre é a técnica mais oportuna para o processo de transformação do texto legal em norma, pois a unidade é uma característica ímpar do ordenamento jurídico. É cediço na Teoria Geral do Direito que os dispositivos não devem ser analisados de modo isolado, mas sim em conjunto com as demais disposições legislativas existentes. Conforme ensina Norberto Bobbio (2014, p. 81), as normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento constituem uma totalidade ordenada, elas não estão isoladas, senão que se tornam parte de um sistema.

Carlos Maximiliano (2011, p. 104) se posiciona do mesmo modo, afirmando que o conjunto de leis existentes no ordenamento jurídico não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódico, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.

Também não se desconhece que inexistem métodos interpretativos apriorísticos. Segundo o magistério de Hans Kelsen (2021, p. 86. e 87), apesar do esforço empreendido pela comunidade jurídica, até o momento não se obteve êxito em construir um método prévio e abstrato pelo qual se decida qual das diversas abordagens hermenêuticas existentes deve preponderar sobre as outras, pois cada uma delas conduz apenas a uma entre as várias possibilidades normativas existentes, não à única norma correta.

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É por essa razão que, segundo regra hermenêutica comezinha, deve-se atentar para todo o conjunto legislativo que o permeia o objeto a ser interpretado. Cabe ao intérprete comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, pois por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as consequentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma (MAXIMILIANO, 2011, p. 104).

Essa linha de raciocínio, aliás, já foi acolhida expressamente pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 101, para quem não se interpreta o direito em tiras; não se interpreta textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas (BRASIL, 2009).

A norma extraída por meio da interpretação literal do art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992, em especial do seu termo condenação, qual seja, a de que a solidariedade na reparação do erário só seria vedada a partir da sentença proferida na ação de improbidade administrativa revela-se bastante adequada, pois, além de conferir coerência ao conjunto legislativo, é convergente com o resultado obtido por outras técnicas hermenêuticas.

Entre elas, pode-se citar a que advém do brocado latino verba cum effectu sunt accipienda, segundo o qual a lei não contém palavras inúteis. O axioma parte da premissa de que todas as expressões que constam no texto legal devem ser consideradas na atividade interpretativa, sob pena de se deturpar a mens legis.

A presença de cada uma das expressões da redação legislativa é fruto de uma escolha intencional do legislador, que, vendo-se diante de diversas opções no vernáculo, elege apenas uma em detrimento das demais. Esse processo de eliminação não pode ser tomado como aleatório ou de menor relevância, pois fornece elementos para o intérprete captar qual é o real comando que emana do texto legal:

Devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia. As expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis. Pode uma palavra ter mais de um sentido e ser apurado o adaptável à espécie, por meio do exame do contexto ou por outro processo; porém a verdade é que sempre se deve atribuir a cada uma a sua razão de ser, o seu papel, o seu significado, a sua contribuição para precisar o alcance da regra positiva. [] Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas provisões, nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma (MAXIMILIANO, 2011, p. 204).

Em alguma medida, desprezar a existência de uma palavra equivale a uma atividade legislativa do intérprete, que passa a moldar a norma partindo apenas das palavras que lhe convém, e não da redação posta pelo legislador, matéria-prima hermenêutica por excelência. Ao ignorar um termo de efeitos ampliativos, por exemplo, o intérprete restringirá indevidamente o alcance almejado pelo legislador. E, se não considerar um termo de efeitos redutivos, alargará o âmbito de incidência para hipóteses não pretendidas.

A necessidade de levar em consideração todas as expressões utilizadas em determinado dispositivo legal é particularmente acentuada quando se empregam palavras contundentes ou com alta carga axiológica, como os advérbios de negação ou as que fazem alusão a marcos processuais bem definidos.

Não por acaso, essa ferramenta já foi utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça9 e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná10 como uma forma de ratificar que a observância das disposições literais do ordenamento jurídico é uma técnica legítima. Ou, ainda, para afastar o elastecimento da amplitude semântica das expressões contidas na lei, prática que as tornariam inúteis para a norma em questão11.

Sob esse ponto de vista, não é razoável defender que o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 vedou totalmente a solidariedade nas ações de improbidade administrativa, uma vez que, para tanto, seria necessário desconsiderar completamente a presença da palavra condenação no texto do dispositivo ou mitigar a rigidez da etapa processual que ela representa.

Uma segunda técnica que corrobora a interpretação literal em apreço se refere à máxima de que as normas restritivas de direito não se interpretam ampliativamente ou, ainda, de que normas restritivas não admitem interpretação extensiva, proveniente da expressão exceptiones sunt strictissimoe interpretationis (MAXIMILIANO, 2011, p. 192), já utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça12.

Considerando que o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 consiste em nítida restrição ao conteúdo geral do art. 942, caput, do Código Civil, o qual, por sua vez, disciplina um direito da pessoa jurídica ou natural lesada por atos ilícitos, é facilmente perceptível que a palavra condenação deve ser lida literalmente.

A concessão de efeitos extensivos aqui expandiria a proibição do regime solidário no ressarcimento do patrimônio público para além do que foi expressamente consignado, exegese que não encontra amparo hermenêutico e que atenta contra o direito fundamental à probidade administrativa.

Outra técnica a ser observada nesta discussão é a interpretação topográfica, que consiste na análise das disposições legislativas de acordo com a sua posição na estrutura lei. A separação do diploma legal em capítulos temáticos, ou de um artigo em parágrafos, incisos e alíneas, são formas de organizar sistematicamente assuntos que guardam pertinência temática.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.771.304, já seguiu essa linha de raciocínio, apregoando que a melhor exegese, segundo a interpretação topográfica, essencial à hermenêutica, é de que os parágrafos não são unidades autônomas, estando direcionados pelo caput do artigo a que se referem (BRASIL, 2019a).

A análise da palavra condenação, que consta no art. 17-C, § 2º, portanto, deve ser feita no contexto macro em que foi inserida, qual seja, a de um artigo que trata unicamente das sentenças nas ações de improbidade. Esse alto grau de especificidade observado não pode ser considerado como uma mera coincidência ou atecnia legislativa, mas sim como uma manifestação inequívoca da Lei nº 8.429/1992.

A vedação à solidariedade no ressarcimento ao erário ter sido expressamente direcionada à condenação, bem como ter sido prevista em dispositivo que trata apenas das sentenças, reflete a vontade deliberada do legislador, que, por meio da organização espacial do parágrafo, reiterou que o recorte à regra genérica do art. 942. do Código Civil é pontual aos éditos condenatórios das ações de improbidade administrativa, não aos momentos processuais anteriores.

Por fim, uma última técnica diz respeito à linha argumentativa a contrario, que encontra expoentes em diversos brocados latinos, como o ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit (quando a lei quis dizer algo, o fez expressamente, e quando não quis, silenciou) e o ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir), ambos utilizados de forma recorrente pelo Supremo Tribunal Federal13 e pelo Superior Tribunal de Justiça14.

Embora cada um tenha as suas particularidades, todos partem da premissa de que uma lei proibitiva, além de vedar determinada situação de forma explícita, contém inafastável consequência oposta: permitir tudo o que não foi proibido.

Noberto Bobbio, ao tratar da teoria da norma geral exclusiva, explica que se determinada circunstância é restringida pela literalidade do texto legal, naturalmente está se permitindo, por meio de uma interpretação a contrario sensu, tudo o quanto não foi vedado. Segundo o autor, todos os outros comportamentos não compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral exclusiva, quer dizer, pela regra que exclui [] todos os comportamentos [] que não fazem parte daquele previsto pela norma particular (2014, p. 127. e 128).

Corroborando essa posição, Pierluigi Chiassoni (2020) leciona sobre o raciocínio denominado a contrario com função puramente interpretativa:

Um raciocínio fundado nessa diretiva serve (tipicamente) para colmatar lacunas explícitas. Tem função criativa anti-inclusiva: exclui a integração das lacunas mediante analogia ou raciocínio a fortiori criativos. O silêncio sobre o caso não regulado, identificado tipicamente à base de uma leitura literal da disposição pertinente, deve ser entendido como presença de uma volição negativa e, portanto, como presença de uma norma implícita oposta [] Essa premissa é de fato uma concretização da diretiva de integração a contrario, segundo a qual: Se existe uma norma que prescreve uma certa consequência normativa para uma certa classe de fatos (casos, situações, etc.), então se deve concluir que existe também outra norma, a qual prescreve a consequência normativa oposta para toda classe de fatos diferente da classe disciplinada pela primeira norma. E isso por força de um princípio que, na tradição metodológica ocidental, sói formular-se mediante brocardos como Lex ubi voluit dixit, ubi tacuit noluit.

Prossegue o doutrinador afirmando que esses métodos vedam a concessão de efeitos extensivos a determinado dispositivo legal, pois eles consideram que se fosse a intenção do legislador estabelecer a regulamentação jurídica para situações específicas, isso teria sido feito explicitamente. Em outras palavras, se a uma expressão da lei está regulando literalmente um caso específico, não se pode incluir no seu âmbito de incidência um caso diferente, que não seja diretamente subordinado à expressão literal. Não haveria cabimento conceder efeitos extensivos, pois a lacuna legislativa que recai sobre o caso não disciplinado, na verdade, consiste na vontade deliberada de não legislar sobre essa hipótese:

Para todos os x e para todos os y, se x é um caso compreendido no significado literal de um termo de uma disposição, e y é um caso diferente de x, então, deve-se evitar incluir também y no significado daquele termo. Um raciocínio fundado sobre essa diretiva serve para obter de uma disposição a norma correspondente à interpretação literal dos seus sinais descritivos, qualquer que seja. Exclui, seja a interpretação extensiva, seja a interpretação restritiva da disposição. Cria (corrobora a presença de) uma lacuna explícita no que atine aos casos diferentes dos casos compreendidos no significado literal das disposições. O silêncio equivale à ausência de volição (não volição) e, portanto, à ausência de uma norma (2020).

Tendo em vista essas diretrizes, sobretudo a de que quando a lei quer, ela dispõe expressamente, e quando não quer, silencia, constata-se que, ao ter vedado a solidariedade apenas na fase da condenação da ação de improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/1992 teria indiretamente autorizado a permanência desse regime nas etapas processuais anteriores.

Até porque, se quisesse ter vedado a solidariedade de forma geral, bastaria o legislador ter realizado alguma outra menção nesse sentido. Entretanto, não há nenhuma outra referência sobre o regime solidário além daquela do art. 17-C, § 2º. Mesmo quando se tratou do ressarcimento ao erário nos arts. 8º, 12, 16, 17-B e 18, caput, não foi feita ressalva alguma sobre a necessidade de cada agente que praticou o ato ímprobo responder apenas no limite de sua participação na empreitada ilícita.

A nova redação dada ao art. 16. da Lei nº 8.429/1992, por exemplo, apesar de ter permitido a indisponibilidade de bens para fins de reparação do patrimônio público, não estabeleceu condicionantes para a obrigação solidária que decorre do art. 942. do Código Civil. As disposições que ali constam, em verdade, são antagônicas à fixação individualizada da responsabilidade de cada agente ímprobo, pois no seu caput e no § 1015 foi dada franca preferência para o integral ressarcimento, indicando que, ao menos nessa etapa cautelar, o direito fundamental à probidade administrativa recebeu proteção privilegiada quando comparado com eventuais direitos patrimoniais particulares.

A ausência de qualquer outra alusão ao regime solidário na Lei nº 8.429/1992 consiste em clássico silêncio legislativo, isto é, a opção do legislador em excluir, intencionalmente, certo fato do comando legal (DINIZ, 2008, p. 292).

Nessa hipótese, não é possível utilizar ferramentas legislativas para suprir a falta de regulamentação, pois não cabe ao intérprete dilatar aquilo que a Lei nitidamente quis restringir (PARANÁ, 2017a), uma vez que a interpretação extensiva não é admitida nas situações em que o legislador, em silêncio eloquente, optou por não incluir determinada hipótese, sob pena de o Judiciário atuar como legislador positivo, o que lhe é vedado (PARANÁ, 2017b).

Essa constatação é reforçada pelo fato de que o ressarcimento ao erário é um direito essencial da pessoa jurídica lesada pelo ato de improbidade administrativa, característica que afasta a possibilidade de interpretação extensiva, conforme apregoa o Superior Tribunal de Justiça: o Poder Judiciário não pode dar interpretação extensiva proibitiva sobre aquilo que não está contido no texto legal e que não corresponde à vontade literal do legislador, sobretudo, para justificar a retirada de um direito ou o tolhimento de uma pretensão (BRASIL, 2021c).

Portanto, ainda que se defenda que o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 regule o ressarcimento dos danos ocasionados ao erário pela conduta ímproba, eventual restrição da solidariedade se daria somente a partir da condenação. Além do mais, o legislador não poderia promover um afastamento completo do regime solidário nesse contexto, sob pena de inconstitucionalidade do dispositivo, conforme se passa a demonstrar a seguir.

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Sobre os autores
Leonardo Dumke Busatto

Mestre em Planejamento e Governança Pública (UTFPR). Promotor de Justiça (MPPR).

Giovani Curioletti Pereira

Pós-graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Laureado Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Assessor de Promotor CMP-3 no Ministério Público do Estado do Paraná (MPPR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUSATTO, Leonardo Dumke ; PEREIRA, Giovani Curioletti. O ressarcimento ao erário nas ações de improbidade administrativa.: A permanência da solidariedade após o advento da Lei nº 14.230/2021. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8114, 18 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101605. Acesso em: 5 dez. 2025.

Mais informações

Artigo originalmente publicado na obra MP, Justiça e Sociedade. Vol. 4 [recurso eletrônico]. Samia Saad Gallotti Bonavides (Org). Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2022.

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