A insurgência tecnológica na relação probatória processual penal: A problemática do uso da prova digital no processo penal brasileiro no contexto da ausência legislativa regulatória

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RESUMO

Junto ao evolucionismo humano surgiu inúmeras tecnologias, e com o aprimoramento e desenvolvimento dos sistemas de inteligência artificial ocorreu a inserção de diversos dispositivos eletrônicos no cotidiano social, sendo, portanto, utilizados como forma prática para o armazenamento de grandes quantidades de dados, tornando-se o que chamamos atualmente de Big Data. Nesta senda, as informações produzidas e/ou armazenadas por dispositivos eletrônicos repercutem no Processo Penal Brasileiro, vez que se perfazem úteis para a solução de casos que envolvam lesão a bens juridicamente tutelados pela norma penal. Entretanto, no ordenamento jurídico-processual penal do país inexiste normas especificas para regulamentar o modo como os dados eletronicamente produzidos poderiam ser validados e considerados como elementos probatórios legais dentro da cadeia de custódia, tornando-se aptos a produzir efeitos processuais. Posto à baila a discussão, o presente trabalho tem como escopo apresentar o sistema de provas admitido na legislação processual penal no direito brasileiro, fazendo um paralelo com a ideia de Prova Digital frente a essa nova realidade trazida pela tecnologia, defendendo que não há óbice para sua inclusão como fonte formal de prova, desde que sejam desenvolvidas pelo legislador regras especificas para a sua obtenção, armazenamento e introdução como meio probatório legitimo no Direito Processual Penal e destacando a importância da cadeia de custódia digital para a garantia de uma prova idônea e válida processualmente.

Palavras-chave: Dispositivos Eletrônicos de Inteligência Artificial. Prova Digital. Processo Penal brasileiro. Direito Digital.

ABSTRACT

Along with human evolutionism, numerous technologies emerged, and with the improvement and development of artificial intelligence systems occurred the insertion of several electronic devices in social daily life, being, therefore, used as a practical way for the storage of large amounts of data, becoming what we currently call Big Data. In this way, the information produced and/or stored by electronic devices has repercussions in the Brazilian Criminal Procedure, since they are useful for the solution of cases involving injury to assets legally protected by the criminal norm. However, in the criminal legal and procedural order of the country there are no specific rules to regulate how electronically produced data could be validated and considered as legal evidential elements within the chain of custody, making it able to produce procedural effects. After the discussion, the present work has the scope to present the system of evidence admitted in criminal procedural legislation in Brazilian law, making a parallel with the idea of Digital Proof in the face of this new reality brought by technology, arguing that there is no obstacle to its inclusion as a formal source of evidence, provided that specific rules for obtaining them are developed by the legislator, storage and introduction as a legitimate evidential means in Criminal Procedural Law and highlighting the importance of the digital chain of custody for the guarantee of a proper and procedurally valid proof.

Keywords: Electronic Artificial Intelligence Devices. Digital Evidence. Brazilian Criminal Procedure. Digital Law.

INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica gerou por consequência a imersão social no que denomina-se Era dos Dados, onde vislumbra-se uma ampla dispersão de aparelhos eletrônicos detentores de inteligência artificial e capazes de armazenar grandes quantidades de dados.

Segundo a empresa de tecnologia de dados Instituto Gartner e a empresa Google Inc., estima-se que a crescente de dados diariamente produzidos é de cerca de 2,5 quintilhões de bytes. A cada 6 segundos as pessoas ao redor do globo geraram 9,1 mil terabytes de dados. Nisto traduz em mais de quatro milhões de stories no Instagram publicados, 2,5 milhões de pessoas em vídeo conferência e 450 milhões de mensagens enviadas no WhatsApp.

Atualmente, os supercomputadores da IBM são capazes de processar cerca de 1 exabyte de dados por dia, o que seria equivalente a 1 milhão de discos rígidos de 1 terabyte lado a lado.

O dado em seu sentido computacional nada mais é do que uma informação, ou seja, é o registro do atributo de um ente, objeto ou fenômeno que tenham um significado em algum documento ou suporte físico.

É cediço que o direito se modifica na medida em que a sociedade muda, ou seja, acompanha a evolução da sociedade, o que nos leva a crer que o direito não é estático e nem absoluto, ou seja, se relaciona com o tempo e o contexto social, político ou moral da sociedade.

O direito contemporâneo nada mais é do que uma evolução do complexo de relações no âmbito social, pode-se por assim definir que o direito segue a teoria darwinista das normas jurídicas na qual aborda que, as evoluções na sociedade induzem a modificações no elenco das futuras formações das ciências jurídicas ou o entendimento jurisdicional.[2]

De fronte a essa realidade, por conseguinte, o conteúdo armazenado nos dispositivos eletrônicos passou a influenciar e determinar certo grau de relevância no cotidiano social, repercutindo assim na esfera processual penal, podendo por seu turno, em decorrência probatória ser um importante aliado na resolução dos casos.

A nomenclatura presente no tema insurgência trata-se de rebelião, ou seja, uma analogia a ruptura dogmática tradicional probatória frente a perspectiva da evolução digital, em vista que muito embora tenha-se a percepção da potencial contribuição da Prova Digital para o Direito Processual Penal, o ordenamento jurídico pátrio não acompanhou até o presente trabalho o avanço tecnológico.

As provas digitais revelam-se como importantes inovações tecnológicas, permitindo que meios de provas, antes indisponíveis, estejam hoje ao alcance das partes processuais e demais sujeitos interessados, contribuindo para uma maior celeridade processual, em homenagem ao princípio esculpido no art. 5º, LXXVIII, da CRFB/88 ao qual consagra que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.[3]

Assim, o presente trabalho passa a analisar como a prova digital é utilizada no direito processual penal brasileiro, suas características, conceitos, natureza jurídica e princípios que a balizam, bem como os meios pelos quais podem ser obtidas, compreendendo acima de tudo o funcionamento da cadeia de custódia digital.

Do ponto de vista metodológico, recorreu-se a análise de textos e obras correlatas para alcançar os objetivos pretendidos. A técnica utilizada foi a da pesquisa bibliográfica, em consulta a doutrina, nacional e estrangeira, literatura especializada, todas encontradas em acervos públicos e privados, além de pesquisa documental e pesquisa audiovisual, pautada em filmes e documentários, relacionados com o tema. Consultou-se, também, a legislação vigente nacional e o direito comparado.

  1. NOÇÕES SOBRE A TEORIA GERAL DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E ELEMENTOS PROBATÓRIOS ADMITIDOS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Em nosso ordenamento jurídico pátrio é cediço que deve-se ir muito além das análises fática e jurídicas para se alcançar o resultado útil pretendido pela persecução penal ou concluir pela absolvição do acusado. Faz-se imprescindível que seja devidamente demonstrada ou elidida os indícios de autoria e a prova da materialidade do crime.

Para tanto, o Código de Processo Penal brasileiro elencou diversas ferramentas em que se extraí elementos para se alcançar a comprovação dos fatos narrados na peça acusatória, e para a defesa refutar os argumentos e circunstâncias fáticas apresentadas, são essas: as provas.

Conforme explica o professor Renato Brasileiro, etimologicamente a palavra prova é idêntica a palavra probo, que traduz a ideia de verificação, exame, inspeção, aprovação ou derivação.[4]

Já de maneira ainda mais detalhada, Guilherme de Souza Nucci defende que há três sentidos para o termo prova, as quais sejam: o ato de provar, que é o processo em que se verifica a verdade do fato alegado, como exemplo, temos a instrução probatória em que as partes utilizam os elementos disponíveis para descortinar a "verdade" do que se alega; o meio para provar, que é o instrumento pelo qual se demonstra a verdade de algo, um exemplo disso é a prova testemunhal; o resultado da ação de provar, que trata do produto extraído da análise dos instrumentos de prova oferecidos.[5]

É certo que a produção probatória é uma etapa primordial no âmbito processual penal, vez que, somente por meio dessa é possível encontrar a verdade aproximal do caso. Em verdade, os elementos probatórios são imprescindíveis para o exercício do livre convencimento motivado do magistrado, permitindo através desta da maior probabilidade de veracidade de uma hipótese em relação a outra, e a partir disso concluir de melhor forma o caso em concreto.

Merece menção o postulado da obra Teoria dos Jogos e Processo Penal de Alexandre Morais da Rosa ao qual afirma que explica a prova desempenha um papel fundamental no processo penal, vez que compreende toda a informação produzida destinada a comprovação da existência de um fato ou conduta juridicamente relevante à imputação. Para o autor, nos jogos não viciados, a produção probatória terá papel decisivo no resultado da partida. E, não existe óbvio em matéria de prova, sob pena de o imaginário prevalecer, já que tudo deve ser verificado e provado, embora dependamos do sujeito humano (julgador) que enunciar: provado/não provado.[6]

Em reforço a esse entendimento Aury Lopes Júnior destaca a importância da prova na condução processual penal, vez que esse seria um instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximada de um determinado fato histórico, e as provas seriam meios por meio dos quais se faz essa reconstrução dos fatos passados (crime).[7]

Conforme bem expõe Flavio Cardoso em sua obra Teoria da Prova no Processo Penal, o Código Processual Penal Brasileiro admite todo e qualquer meio de prova, ainda que não expressamente previsto em nosso Código, desde que estas não sejam obtidas com violação de regras de ordem processual (provas ilegítimas) ou obtidas com violação a regras de direito material ou normas constitucionais (provas ilícitas).[8]

O Código de Processo Penal em seu Título VII prevê expressamente as seguintes provas e meios de obtenção: Prova Pericial e Exame de Corpo de Delito; Interrogatório Judicial; Confissão; Oitiva do ofendido; Prova Testemunhal; Reconhecimento de Pessoas e Coisas; Acareação; Prova Documental. Destarte que, o fato de estarem devidamente positivados na legislação denomina-se provas típicas.

Diante de todo esse relevo, passa-se a analisar os elementos probatórios digitais, os quais, em que pese não restarem positivadas na legislação processual penal brasileira e, em virtude disso, não obedecerem à certo regramento especifico previsto, vêm constantemente sendo utilizadas como meios de prova na relação processual penal para a solução de casos concretos.

  1. A PROVA DIGITAL NA RELAÇÃO PROBATÓRIA PROCESSUAL: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA, PRINCÍPIOS, CARACTERÍSTICAS E MEIOS DE OBTENÇÃO

Podemos conceituar Prova Digital em seu sentido computacional como toda e qualquer fonte composta por dados eletronicamente produzidos, armazenados ou transmitidos por dispositivos eletrônicos-digitais de qualquer espécie, sendo portanto, qualquer informação extraída a partir de um dado sob a forma de um sinal binário[9] expressado por um bit[10] (sinal binário único), nibble (sinal binário composto por quatro bits) ou por um byte (composto por oito bits) entre outras formas de comunicação inter-máquinas e linguagem computacional, seja privado ou publicamente acessível por outros dispositivos.

Os elementos probatórios digitais podem ser produzidos e encontrados em registros nos sistemas de biometria, redes sociais, mídias socias, dados informatizados de empresas e ferramentas de geoprocessamento. Estes dados podem ser encontrados em fontes abertas de livre acesso, como pesquisas no Google, sites de transparência, redes sociais ou até mesmo em fontes fechadas de acesso restrito, por meio de solicitação judicial, em titularidade de empresas públicas e privadas, seja na internet (surface web, deep web ou dark web), intranet ou extranet. Por meio de tais dados, é possível averiguar os fatos controversos no curso da instrução processual, ou seja, utiliza-se do elemento probatório digital para chegar o mais próximo da verdade real.

Ainda em vertente conceitual, Ivo Filipe de Almeida seguindo o conceito de Benjamin Rodrigues (2009) ao qual descreve a prova digital como sendo:

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Qualquer tipo de informação, com valor probatório, armazenada em repositório electrónico-digitais (sic) de armazenamento ou transmitida em sistemas e redes informáticas ou redes de comunicações electrónicas (sic), privadas ou publicamente acessíveis, sob a forma binária ou digital.[11]

Merece destaque o conceito de Denise Provazi Vaz ao qual coaduna-se com o pensamento de Eoghan Casey (2004), que entende a prova digital como qualquer dado armazenado ou transmitido usando um computador que confirma ou rejeita uma teoria a respeito de como ocorreu um fato ofensivo ou que identifica elementos essenciais da ofensa como intenção ou álibi.[12]

Outro conceito importante no que diz respeito a prova digital é o de Armando Dias Ramos, o qual afirma que a prova digital é toda e qualquer informação passível de ser extraída de um dispositivo eletrónico (sic) (local, virtual ou remoto) ou de uma rede de comunicações. Pelo que esta prova digital, para além de ser admissível, deve ser também autêntica, precisa e concreta.[13]

É imperioso destacar o conceito legislativo de prova digital na Convenção de Budapeste[14] a qual tratara sobre cybercrimes, ocorrida em 2011, em que pese a denominação atribuída seja dados informáticos ao qual coaduna-se com o pensamento anteriormente exposto.

Ipsis litteris, define o Art. 1.º da referida Convenção:

Art. 1º [...] b) Dados informáticos significa qualquer representação de factos, de informações ou de conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema de computadores, incluindo um programa, apto a fazer um sistema informático executar uma função; [...].

O Brasil aderiu à Convenção sobre o Crime Cibernético, celebrada em Budapeste, na Hungria, em novembro de 2011 por meio do Projeto de Decreto Legislativo 255/2021, sendo, portanto, o primeiro conceito legal de prova digital no país. Ademais, é importante destacar que a Lei nº 12.965/2014 que regula o Marco Civil da Internet estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, regula o uso de dados informáticos e consequente utilização destas por via judicial, além disso a Lei Geral de Proteção de Dados, Lei nº 13.709/2018, é a legislação brasileira que regula as atividades de tratamento de dados pessoais, o somatório destas legislações representam o início da tratativa do Direito Digital no Brasil.

Posto à discussão, é de interessante menção a diferença entre o conceito de Prova Digital e Documento Eletrônico, este diz respeito a toda e qualquer fonte composta por dados eletronicamente produzidos, armazenados ou transmitidos por dispositivos eletrônicos-digitais sejam ele físico ou os conteúdos nesses encontrados, enquanto aquele volta-se a todo registro que tem como meio físico um suporte eletrônico. A título de exemplo podemos citar os arquivos informáticos obtidos nos servidores de instituições financeiras, mediante busca e apreensão para investigação da própria instituição (v.g., CPU), o que diferencia-se dos dados bancários de um indivíduo sob investigação, que são armazenados nos computadores dos bancos e encaminhados ao juiz por requisição. Note que no primeiro momento temos um documento eletrônico e não uma prova necessariamente de cunho digital, visto que o servidor é registro de meio físico com um suporte eletrônico, enquanto o dado representa a essencialidade da prova digital que poderá ser obtida por meio físico ou virtual, ou seja, o conteúdo do dado encontrado, pelo fato de que a prova digital independente do meio físico onde pode encontra-se armazenada.

Entretanto, há pensamentos contrários na doutrina brasileira. Há quem entenda que a prova digital e o documento eletrônico são sinônimos; e também os que compactuam do pensamento de que o lastro probatório digital compreenderia todos os dados obtidos nos meios eletrônicos com a ressalva de que haveria informações contempladas pelo Direito Processual Penal que não se tratam de provas digitais, sendo aquelas colhidas mediante procedimento específico previsto na lei ou então facilmente requeridas por autoridades públicas, incluindo-se assim na categoria das provas documentais.

Passadas as conceituações, discorre-se quanto a natureza jurídica das provas digitais. Os elementos probatórios digitais possuem a natureza jurídica de direito subjetivo, visto que a finalidade ou a precípua função da prova digital é de cientificar e formar a convicção do julgador sob o viés do princípio do livre convencimento motivado, funcionando como elemento cognitivo a disposição das partes quanto a veracidade ou não dos fatos anteriormente alegados em juízo.

Dentre as características relativas a prova digital, é perceptível certa volatilidade em virtude de seu dinamismo, ou seja, alta capacidade de modificação face a não estaticidade vez que em virtude de sua imaterialidade podem ser alteradas ou desvanecer, o que para tanto, conforme afirma Denise Provazi Vaz basta a modificação da sequência numérica que o compõe [15].

Assim, a volatilidade se dá por qualquer alteração binária ou algorítmica em relação ao dado digital. Merece menção o pensamento do pensador e autor forense digital Eoghan Casey o qual afirma que: A prova digital pode ser alterada ou obliterada maliciosamente pelos infratores ou acidentalmente durante a coleta, sem deixar nenhum sinal óbvio de distorção.[16]

Um aspecto presente nas provas digitais tange à sua imaterialidade, visto a sua essencialidade não corpórea intangível ou virtual, ou seja, não está necessariamente sujeito ao suporte físico para existir, isso se dá, pois, a constituição probatória é feita por bits e impulsos elétricos, havendo uma separação de fato entre o suporte físico e os dados em si.

Outra característica interessante é a suscetibilidade de clonagem da prova a qual consiste na produção de uma cópia exata da prova, isso se dá em virtude de que a prova digital tratar-se de objeto imaterial, ou seja, os dados que compõem o conteúdo probatório podem ser naturalmente copiados e transmitidos a outros dispositivos eletrônicos, oferecendo riscos à preservação da originalidade e autenticidade do arquivo utilizado como meio de prova.

Além dessas, outra característica importante é a facilidade de dispersão vez que pode ser transmitida a qualquer dispositivo eletrônico.

Conforme Dário José Kist[17], esta característica pode se dar em um campo de duas dimensões: a primeira seria na dimensão de armazenamento ou dimensão arquivística visto poder se apresentar das mais variadas formas no campo de dados, seja por gravação de vídeo, imagens, HTML ou outras espécies de links, QR Code, gravação de áudio; já a segunda dimensão seria a dimensão espacial ou geográfica a qual diz respeito à própria área geográfica em que se situa a prova, sendo em um único lugar ou em múltiplos lugares ao mesmo tempo em face a plataforma ou dispositivo que a contempla.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Em relação a tal característica da prova digital, Alberto Cancela elenca que em determinados casos, a investigação criminal deve atentar-se ao momento de obtenção da prova digital original, e que tal feita é em verdade uma árdua tarefa, em face da natural possibilidade desta encontra-se em servidores e terminais de redes informatizadas que se estendem por uma vasta área espacial ou geográfica.

Como última característica primaz, a prova digital necessita de um meio de codificação de seus dados para a sua correta compreensão, tal característica pode ser visível por meios físicos ou por softwares capazes de decodificar o dado gerado e armazenado.

Para a sua melhor compreensão, imagine-se, pois, uma dimensão atemporal de campo imaterial, é onde reside o dado eletronicamente produzido, essa somente poderá ser acessível através de uma chave, tal chave é a plataforma de decodificação, para ter-se acesso ao conteúdo do dado para a exteriorização a linguagem humana, vez que as máquinas entendem o dado em sua essencialidade algorítmica. Denise Provazi Vaz afirma que não é possível a leitura dos dados diretamente pelo receptor da informação, vez que está é imaterial, invisível e codificada[18].

Questão interessante é quanto aos meios de produção e de obtenção do lastro probatório digital. A distinção reside no fato que aquele é a própria prova (em si), que serve para o convencimento do juiz (face ao princípio do livre convencimento motivado) e poderá influenciar na decisão do magistrado, enquanto essa se revela no procedimento para se chegar à prova propriamente dita.

No direito instrumental penal brasileiro inexiste uma fonte legislativa que que diga respeito a prova digital, em verdade, utiliza-se da adequação processual por meio da analogia para sua coleta, perícia, busca e apreensão.

É mister mencionar que, para que haja plena eficácia probatória do documento, é necessário que esse possua a capacidade de armazenar informações de maneira que impeça ou permita detectar eliminação ou adulteração de conteúdo.

Vislumbra-se algumas formas de obtenção das provas digitais, sendo estas: sequestro (apreensão física do material digital), cópia (transferência do conteúdo do arquivo digital) e interceptação (quando o dado é captado durante o procedimento de transmissão).

Segundo dispõe o artigo 19 da Convenção de Budapeste[19] sobre o Cibercrime, a busca e apreensão de dados informáticos deve obedecer aos mesmos requisitos do procedimento destinado aos objetos materiais, condicionado à autorização judicial prévia, devidamente fundamentada na existência de indícios de materialidade e autoria de um determinado crime. Em homenagem ao devido processo legal, é necessária uma ordem judicial prévia conforme analogia do art. 243 do CPP.

Um ponto interessante a ser ressaltado é que a ordem judicial deverá limitar-se-á ao objeto físico no qual encontra-se armazenada ou que detenham potencial de constarem provas que venham influir no processo, ou seja, limita-se a busca tão somente os elementos probatórios cercados de indícios de que possuem, no seu interior, provas úteis ao processo.

Quanto a interceptação telemática, essa capta a maior quantidade de provas em seu tempo real, isto é, no momento em que estão sendo transmitidos de um terminal eletrônico para outro. A Lei nº 9.296/96 é a responsável por regulamentar o art. 5º, inciso XII da Magna Carta. A título de exemplo, durante uma videoconferência ou em aplicativos de mensagens instantâneas.

Em última análise temos a prova pericial que no âmbito digital pode ocorrer em qualquer tempo, em virtude das características intrínsecas a esse elemento probatório, verificando-se sua autenticidade e integralidade para que seja válida e eficaz na relação processual. Respeitando o disposto nos artigos 159 e seguintes do CPP.

Posto os aspectos expositivos, não há óbice à inclusão da prova digital no Processo Penal, utilizando-se de formas já constantes da legislação brasileira. Todavia, passaremos a analisar as problemáticas quanto a utilização da prova digital no atual contexto do processo penal brasileiro pelos tribunais.

  1. A PROBLEMÁTICA DA UTILIZAÇÃO DA PROVA DIGITAL NO ATUAL CONTEXTO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO PELOS TRIBUNAIS

Aa discussões acerca das provas digitais pelos tribunais brasileiros dignam-se a discorrer sobre necessidade ou não de autorização judicial para o acesso a tal meio de probatório.

O Pretório Excelso entende que é válida a prova digital captada na nuvem das empresas de network. Em julgado, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não existe violação à Súmula Vinculante nº 14 do STF quando o acesso ao material é decorrente das quebras de sigilo, a titulo de exemplo temos as conversas de WhatsApp, que podem ser realizado por softwares disponíveis no mercado, não sendo necessária nenhuma chave ou senha especial para a abertura e leitura de eventuais dados criptografados.

Em virtude desta, inexiste violação à Súmula Vinculante 14, quando, não havendo negativa de acesso aos autos pela autoridade reclamada, o acesso aos arquivos de conversas de WhatsApp pode ser realizado sem intervenção de perito, bastando a utilização de softwares capazes de realizar a leitura dos arquivos originais constantes no HD.

In judicio do referido julgado ipsis litteris:

STF - PROVA DIGITAL. QUEBRA DO SIGILO. ACESSO AO MATERIAL. POSSIBILIDADE DE QUEBRA DA CRIPTOGRAFIA POR SOFTWARE DISPONÍVEL NO MERCADO. SÚMULA VINCULANTE 14/STF.

Portanto, inexiste violação à Súmula Vinculante 14/STF. O acesso ao material decorrente das quebras de sigilo, conforme esclarecimento da autoridade policial, pode ser realizado por softwares disponíveis no mercado, não sendo necessária nenhuma chave ou senha especial para a abertura e leitura de eventuais dados criptografados. Isso posto, julgo improcedente esta reclamação (RISTF, art. 161, parágrafo único).

O STF em julgamento do Habeas Corpus n.º 91.867/PA entendeu que é desnecessário qualquer tipo de autorização judicial prévia para o acesso aos dados digitais armazenados nos dispositivos eletrônicos apreendidos em situação de flagrância.

No contexto do Habeas Corpus n.º 91.867/PA policiais acessaram, sem prévia autorização judicial, o telefone celular de um suposto executor de um crime de homicídio, preso em flagrante. Por meio das últimas chamadas realizadas, teriam chegado ao número do telefone do pretenso mandante do delito.

Abstraí desse entendimento que o conteúdo extraído dos dispositivos eletrônicos apreendidos não se tratava de registros telefônicos ou comunicação telefônica, mas em verdade, de dados, os quais não se encontravam abarcados pela égide da cláusula protetiva do art. 5.º, inciso XII, da Constituição Federal. E em reforço a tal entendimento, postulou a Suprema Corte que o artigo 6º do Código de Processo Penal imporia o dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal. Nesse sentido ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito.

Percebam que equivocadamente os ministros do Pretório Excelso pautaram a decisão no sentido de que seria possível a relativização de um direito fundamental do cidadão em prol do interesse público face a persecução penal.

Acertadamente, em entendimento diverso entendeu o Superior Tribunal de Justiça em julgado do RHC nº 67.379/RN pela 5ª Turma declarou que a colheita de dados no telefone celular de uma pessoa apenas pode ocorrer com a prévia autorização judicial, e não ocorrendo esta haveria flagrante violação a normas constitucionais e infraconstitucionais. Ademais entendeu a 6º Turma do STJ que:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. EXTRAÇÃO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE DADOS E DE CONVERSAS REGISTRADAS NO WHATSAPP.

Sem prévia autorização judicial, são nulas as provas obtidas pela polícia por meio da extração de dados e de conversas registradas no WhatsApp presentes no celular do suposto autor de fato delituoso, ainda que o aparelho tenha sido apreendido no momento da prisão em flagrante. [...] Desse modo, sem prévia autorização judicial, é ilícita a devassa de dados e de conversas de WhatsApp realizada pela polícia em celular apreendido. (STJ, 6ª Turma, RHC 51.531/RO, Rel. Min. NEFI CORDEIRO, julgado em 19/4/2016, DJe 9/5/2016).

Tal debate foi fundamental para que a Suprema Corte revisitasse a sua jurisprudência anteriormente consolidada. E foi de fato o que ocorreu, no julgamento do Habeas Corpus nº 168.052/SP, onde na ocasião, identificou a ocorrência do fenômeno da mutação constitucional e afirmou, expressamente, a superação do entendimento consolidado no HC nº 91.867/PA, em face de "relevante modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas". Levou-se em consideração a promulgação de leis posteriores e o significativo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, do tráfego de dados e dos aparelhos smartphones, para além do direito comparado que anteriormente já sinalizava para a ilegalidade do acesso de dados de telefone celular sem a prévia autorização judicial.

  1. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS QUANTO A UTILIZAÇÃO DAS PROVAS DIGITAIS NA CONDUÇÃO PROCESSUAL

No que se refere aos limites de utilização da prova digital temos o respeito e a observância dos Direitos e Garantias Fundamentais de todas as partes envolvidas no processo. A devida proteção aos direitos constitucionalmente assegurados é imprescindível para que se coabite em um Estado Democrático de Direito. Portanto, não se deve ter seu uso amplamente liberado, há importantes limitações constitucionais com o intuito de que sejam preservados os direitos sensíveis.

Uma das limitações constitucionais está presente no art. 5, inciso XI que qual trata sobre a inviolabilidade do sigilo das comunicações. Em ipsis litteris define que a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Discorrendo sobre tal princípio esculpido na égide constitucional Antonio Scarance em sua obra Processo Penal Constitucional afirma que a garantia decorre da necessidade de assegurar ao indivíduo a liberdade de contatar com outras pessoas sem o perigo de que o teor de sua comunicação seja utilizado como prova contra sua pessoa.[20]

Quaisquer violações à garantia do sigilo ao qual abrange não apenas o conteúdo da correspondência, mas o tráfego de dados assim entendido como espécie, hora, duração, intensidade de utilização, deverão ser prontamente consideradas como provas ilícitas.

Para além do respeito a inviolabilidade do sigilo das comunicações, é preciso a observância da inviolabilidade da privacidade dos participantes do processo. Conforme o art. 5º, inciso X, da égide da Lex Fundamentalis: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Pontual os esclarecimentos de José Afonso da Silva[21] ao tratar que a Constituição Federal, ao tratar do direito à intimidade, em verdade, quis referir-se ao direito à privacidade, o qual abarca todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade.

Em complementação ao pensamento, Alexandre de Moraes afirma que os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, e o primeiro está abarcado pelo segundo em virtude da sua grande amplitude. Assim, a proteção constitucional direciona-se tanto para as relações subjetivas de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, quanto para a sua vida privada, que envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais de trabalho, de estudo etc.[22]

Conforme elucida Dário Kist:

O direito à reserva da intimidade da vida privada corresponde a uma inviolabilidade de aspectos relativos à vida pessoal e familiar do indivíduo, os quais, nos dias atuais, muitas vezes, encontram-se armazenados nos dispositivos eletrônicos, como computadores, tablets e smartphones nos quais ninguém pode penetrar, salvo com autorização do próprio titular.[23]

Posto tudo isso, os princípios constitucionais da inviolabilidade do sigilo das comunicações e da privacidade representam em verdade, uma limitação à atividade persecutória estatal e da sua violação decorre a ilicitude da prova e do processo.

  1. A NECESSIDADE LESGILATIVA NO TOCANTE AO USO DAS PROVAS DIGITAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Conforme tratado no tópico anterior, dadas os aspectos singulares das provas digitais, faz-se necessária a regulamentação das provas digitas, abarcando a sua produção, meios de obtenção, armazenamento e inserção no processo.

Há de pontuar-se que não há óbice para a introdução de elementos probatórios digitais e muito menos a procedimentos específicos à sua regulação. Em nossa legislação processual penal há elementos previstos que serviriam de base para uma futura legislação acerca do tema.

É de importante menção as instruções feitas pela ISO/IEC nº 27.037/2012[24] que tratam das diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências digitais, trazendo conceitos importantes e meios de manipulação das evidências digitais.

Deve-se avançar no sentido de produção de uma cadeia de custódia digital assegurando a autenticidade e a validades das provas que serão analisadas pelo magistrado, sob a égide do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

A construção da cadeia de custódia digital parte da premissa existente no artigo 158-A do CPP, resguardando desde o processo de produção da prova digital, passando pela identificação, coleta, extração de resultados, até introdução no processo.

Discorrendo sobre o tema Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Júnior reforçam a ideia de cadeia de custódia especifica para as provas digitais, com a edição de regras destinadas à preservação das fontes de prova, principalmente no momento de sua produção, uma vez que se trata de cuidado necessário e justificado, destinado a obter-se uma decisão justa e coerente, baseada em elemento probatório não viciado.[25]

Faz-se necessária a observação de que conforme a Lei nº 13.964/2019 que trata do Pacote Anticrime, trouxe em seu bojo uma inovação no tocante as provas ilícitas. De acordo com o artigo 157, §5º, do Código de Processo Penal, não afasta apenas a prova ilicitamente produzida, mas sim a anulação de todo o processo que contenha essa prova seja total ou parcialmente.

Conforme elucida Rogério Sanches da Cunha:

O processo será refeito ou nova sentença será proferida, não se admitindo nessa reconstrução a participação do magistrado que conheceu seu conteúdo, agora presumidamente não parcial. Desta forma, a autoridade judiciária que tomou conhecimento do conteúdo da prova declarada inadmissível, psicologicamente contaminado, não poderá proferir decisão (sentença ou acórdão).[26]

Aliada à tal temática deve-se ressaltar que no tocante a positivação normativa, observar-se-á obrigatoriamente a inviolabilidade de Direitos Fundamentais respeitando os princípios e garantias constitucionais do Contraditório e a Ampla Defesa.

Faz-se imprescindível o preenchimento da lacuna legislativa para que a prova digital tenha sua autenticidade, genuinidade e durabilidade preservadas, recaindo aos legisladores o encargo de estabelecer regras vinculadas à introdução das prova digitais na condução processual.

  1. ELUCIDAÇÕES FINAIS

Diante dos avanços tecnológicos é indubitável a inserção do Direito Processual Penal Digital frente a essa novel realidade. Fato é que a prova digital é uma importante ferramenta para a solução de casos em vista a satisfazer (se for o caso) a pretensão punitiva do Estado ou livra-se do injusto aquele em estado de segregação cautelar ou processado judicialmente.

Em que pese a carência regulatória de sua previsão legal, a prova digital enquadra-se como prova atípica, ou seja, àquelas que não constam expressamente no Código Penal ou Processual Penal.

Para além das provas típicas expressamente previstas no ordenamento jurídico pátrio, a prova digital embora não prevista poderá ser utilizada, desde que respeitado os princípios basilares da nossa Constituição Cidadã bem como os Direitos Fundamentais por ela previstos, a saber, o direito à intimidade, privacidade, inviolabilidade do domicílio, sigilo de dados entre outros, e consequentemente outros previstos ou aproximados em legislação complementar.

Ao passo que o lastro probatório digital integraliza o processo, servirá de condão como instrumento para aplicação do princípio do livre convencimento motivado pelo magistrado no momento de valoração das provas.

Em verdade, partindo-se de uma conceituação ampla, em face do seu sentido computacional, deflagra-se que a prova digital é toda e qualquer fonte composta por dados eletronicamente produzidos, armazenados ou transmitidos por dispositivos eletrônicos de qualquer espécie.

Desde sua criação em 1969 ainda chamada na época de Arpanet, e hoje Internet, e o acesso aos computadores, possibilitaram a navegação fluída de dados e por conseguinte, surgiram diversas ferramentas que assentam a obtenção e produção de provas digitais.

Atente-se que é vital que no momento da colheita, a prova digital deverá conter meios de certificação, autenticidade e integridade para que seja considerada como fruto probatório eficaz no processo.

As provas digitais nascem para dar maior eficiência probatória ao processo, por atenderem uma nova sociedade, digital e interconectada.

Em suma, a prova digital integralizará cada vez mais o direito instrumental em nosso país, em virtude dessa, percebe-se a necessidade de uma regulamentação específica para a obtenção das provas mediante meios digitais, revestindo-se de toda garantia e idoneidade necessária para que não maculem o processo e venham a ferir garantias fundamentais na condução processual.

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