A violação aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa no processo administrativo tributário do estado do Mato Grosso

15/12/2022 às 14:50
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No ramo do Direito Tributário, quando uma pessoa física ou jurídica, contribuinte de determinado tributo, é considerada pelo Fisco como devedor, faz-se o lançamento do débito e lavra-se um auto de infração, cujo objetivo é único: cobrar.

Diante deste cenário, ao contribuinte que não considera devido tal tributo, é assegurado pela própria Constituição Federal o direito de se defender perante o Órgão Administrativo que ocupa a posição de sujeito ativo da obrigação tributária.

Tal garantia constitucional está prevista no artigo 5º, inciso LIV e LV da Carta Magna. São os conhecidos princípios do devido processo legal e da ampla defesa.

Art. 5º (...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Durante a discussão da mencionada cobrança, estes dois princípios devem ser observados em todas as instâncias de julgamento, sob pena de anulação de qualquer ato que os mitigue ou ignore.

Mas, que especificamente no Estado do Mato Grosso, apesar das recentes mudanças na legislação processual, referidos princípios ainda não são integralmente observados.

Sabe-se que o artigo 155 da Constituição Federal confere poderes às Unidades da Federação para arrecadar, administrar, e legislar sobre tributos de sua competência. Da mesma forma, os Estados podem também criar as regras relativas ao processo tributário administrativo que nortearão Fisco e o contribuinte na discussão sobre determinado débito.

Mas este norte conferido pela legislação estadual, ao menos no Estado que é foco deste artigo, nem sempre leva à um caminho justo ao contribuinte.

Lá, após a realização de um lançamento e a apresentação de defesa pelo sujeito passivo, caso o julgamento de primeira instância administrativa mantenha a cobrança, o cabimento do Recurso Voluntário pelo contribuinte está condicionado a um valor mínimo de débito discutido.

Antes de 24 de novembro de 2022 a redação do artigo 1.031, §1º, inciso I do Regulamento de ICMS Decreto nº 2.212/2014 era a seguinte:

Art. 1.031 (...)

§ 1° Não cabe recurso voluntário:

I - Contra decisão da qual resulte exigência de crédito tributário em montante inferior a 2.500 (duas mil e quinhentas) UPFMT, vigentes na data do respectivo lançamento;​

Explicando melhor através de um exemplo: o contribuinte A foi notificado sobre um lançamento tributário de ICMS em maio de 2019, no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), e apresentou defesa à primeira instância administrativa. O Órgão competente, no julgamento da mencionada defesa, mantém integralmente o lançamento e a respectiva cobrança.

De acordo com a Secretaria de Estado de Fazenda do Mato Grosso, o valor da UPFMT em maio de 2019 era de R$ 141,69. Portanto, o contribuinte A só poderia apresentar Recurso Voluntário ao Tribunal Administrativo do Estado contra a decisão que manteve o lançamento, se o valor de seu suposto débito fosse acima de R$ 354.225,00!

Mas, recentemente, numa tentativa de mascarar manifesta inconstitucionalidade presente no RICMS-MT, foi editada a Lei nº 1.527/2022, que alterou o citado artigo 1.031, reduzindo o montante mínimo de UPFMT de 2.500 para 300, necessário para interposição de recurso voluntário. A nova redação ficou assim:

Art. 1.031 (...)

§ 1° Não cabe recurso voluntário:

I - Contra decisão da qual resulte exigência de crédito tributário em montante inferior a 300 (trezentas) UPFMT, vigentes na data do respectivo lançamento;​

Ora, utilizando os mesmos dados do exemplo acima, o contribuinte A ainda assim estaria impedido de apresentar Recurso Voluntário contra a decisão que lhe foi desfavorável. Isso porque o débito era de R$ 30.000,00, e 300 UPFMT em 2019 resulta em R$ 42.507,00.

A bem da verdade, a alteração feita pela Lei nº 1.527/2022 possibilitou e possibilitará que um número maior de contribuintes possa recorrer das decisões proferidas em primeira instância administrativa. Mas claramente, não é suficiente.

Para os que princípios do devido processo legal e da ampla defesa sejam efetivamente observados, o Estado não poderia impor qualquer tipo de condição para interposição de recurso administrativo. Por menor que seja o valor inserido na legislação, este sempre configurará uma limitação inconstitucional e injustificada ao contribuinte, que é parte mais vulnerável em relação ao Fisco.

Sobre a importância do princípio da ampla defesa, a doutrina se manifesta de forma unânime, como Marçal Justen Filho[1]:

A inovação constitucional do art. 5o, inciso LV, impôs a observância de um devido processo na via administrativa. Assegurou-se aos particulares o direito à ampla defesa, com a garantia inafastável do contraditório.

Tornou-se fora de dúvida que a decisão administrativa, sempre que for apta a produzir o sacrifício de interesses ou direitos privados, deverá ser o resultado de um procedimento administrativo, respeitado o princípio do contraditório. (FILHO, 1998, p. 108)

Assim também em relação ao princípio da ampla defesa, conforme brilhantemente ensina Gilmar Mendes[2]:

A noção do devido processo legal significa, portanto, a exigência de um processo justo. O processo justo não é apenas aquele que está formalmente pré-estabelecido em lei, mas o processo previsto de forma adequada e razoável para a consecução de sua finalidade primordial no Estado Democrático de Direito, que é a garantia e proteção dos direitos fundamentais. (MENDES, 2013, posição 25205 ebook.)

Portanto, mesmo com a redução do montante de UPFMT, a violação constitucional é clara e patente. Ainda mais porque se tal limitação fosse expurgada do Regulamento do ICMS, o Fisco mato-grossense não seria prejudicado.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado rechaçou em diversas oportunidades a antiga redação do artigo 1.031, §1º, I do RICMS/MT. Vide abaixo alguns trechos de julgamento neste sentido:

(...) As decisões proferidas por esta Egrégia Corte, reconheceram a ilegalidade do artigo 1.031, § 1º, inciso I do RICMS/MT, considerando que não se mostra razoável a existência de norma que limita valor à interposição de recurso administrativo, visto que constitui ofensa ao duplo grau de jurisdição administrativo. (...).

(TJ-MT AI: 10141168420188110000, Relator: MARCIO APARECIDO GUEDES, Data de Julgamento: 03/06/2020, Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 10/06/2020)

APELAÇÃO CÍVEL MANDADO DE SEGURANÇA RECURSO ADMINISTRATIVO INADMITIDO ARTIGO 1.031, § 1º, INCISO I, DO RICMS/MT DÉBITO IMPUGNADO COM VALOR ABAIXO DE 2.500 UPF/MT ILEGALIDADE CONSTATADA OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DIREITO LÍQUIDO E CERTO VIOLADO RECURSO PROVIDO. 1. Consoante jurisprudência deste Tribunal de Justiça, viola direito líquido e certo condicionar o valor mínimo da dívida fiscal para interposição de recurso administrativo, por cercear o direito ao contraditório e a ampla defesa. 2. Recurso conhecido e provido.

(TJ-MT 10276370220208110041, Relator: ANTONIO VELOSO PELEJA JUNIOR, Data de Julgamento: 04/10/2022, Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 21/10/2022)

Resta agora saber se o Tribunal manterá a coerência deste mesmo entendimento após a alteração promovida pela Lei nº 1.527/2022.

O fato é que, ao manter a limitação da propositura do recurso administrativo ordinário a valor mínimo UPFMT, o Estado do Mato Grosso pode até reduzir a demanda de processos administrativos, mas com certeza o efeito para o Poder Judiciário será exatamente o inverso, já que será este a única e última opção do contribuinte que quer continuar discutindo o mérito da cobrança que lhe foi imputada, esperando que pelo menos nesta esfera seus direitos constitucionais sejam efetivamente garantidos.

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