A Fazenda Pública[1], como cediço, goza de algumas prerrogativas processuais. É em razão disso que se defende a existência de um direito processual público, "a parte da ciência processual que estuda e regula os processos em que figura como parte um ente público" (BARROS, 2021, p. 24). Afinal, vem crescendo a "produção legislativa sobre direito processual [que] destina leis e dispositivos específicos para disciplinar a presença do ente público em juízo" (BARROS, 2021, p. 24).
Neste diapasão, ergue-se, dentre as mencionadas prerrogativas processuais, a remessa necessária ao segundo grau de jurisdição, que se encontra estampada no artigo 496 do Código de Processo Civil de 2015, cuja intelecção estatui que
Art. 496 Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença[2]:
- Proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
- Que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.
Resvalando por esta senda, muito já se questionou acerca da natureza jurídica do instituto em testilha. Chegou-se a afirmar que se tratava de recurso. Tal entendimento, nada obstante, não merece prosperar: ora, é consabido que os recursos têm por traço característico a voluntariedade (ROSSONI, 2019, p. 43), característica essa não presente na remessa necessária. A doutrina, em tom quase uníssono, afirma se tratar de condição de eficácia da sentença. Enquanto não houver a remessa necessária, a sentença não transita em julgado (BARROS, 2021, p. 123). Corroborando esta perspectiva, o Fórum Permanente de Processualistas Civis editou o Enunciado n° 439, assentando que a coisa julgada, nas causas contra a Fazenda Pública, depende, para além do preenchimento dos §§1° e 2° do artigo 503 do CPC, da remessa necessária (ressalvadas as exceções legais, textualmente expressas nos §§3° e 4° do artigo 496 do Codex).
Dando continuidade, e em que pese não ser uma espécie de recursos, mostra-se interessante estabelecer um paralelo com os efeitos recursais. Isso porque o fato de implicar em processamento e julgamento no âmbito do tribunal atrai a aplicação de elementos da Teoria Geral dos Recursos (BARROS, 2021, p 131).
É salutar, então, que enfoquemos o efeito devolutivo. No escólio de Diogo Rezende de Almeida (2020, p. 121), o efeito devolutivo transfere a apreciação da questão já examinada ao órgão competente para seu reexame. Sob este viés, é prática comum a análise do efeito sub examine através de duas lentes, quais sejam, a extensão (horizontal) e a profundidade (vertical). Nesse sentido, o reexame necessário produz a devolução, ao tribunal, de todos os capítulos da sentença contrários ao Poder Público. Por essa razão, é corrente a afirmativa de que [...] é dotado de efeito devolutivo integral e pleno (REDONDO; RODRIGUES, 2017, p. 260).
Uma observação, aqui, faz-se imperiosa. A remessa necessária não obsta a interposição de apelação ou, eventualmente, de agravo de instrumento. Não se trata de algo disjuntivo, naturalmente. Em se reunindo os requisitos de admissibilidades recursais, não há falar em óbice ao manejo de recurso. Diz-se isso, inclusive, com amparo legal, consoante assevera o §1° do artigo 496.
Pois bem. É a partir do mencionado dispositivo que se arvora uma dúvida crucial: a apelação limitaria o efeito devolutivo do reexame necessário? Afinal, o vetusto brocardo latino, tantum devolutum quantum appellatum, é a máxima vigente no ordenamento brasileiro, como se deflui do artigo 1.013 do diploma processual cível: A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
Didier e Zaneti Jr. (2016, p. 410) se manifestam no sentido de que na remessa necessária, o tribunal irá analisar toda a matéria discutida na causa. Mesmo sendo parcial o recurso da Fazenda Pública, a remessa obrigatória será total. Fazendo uma interpretação teleológica, esse parece ser o entendimento que melhor se amolda à tutela do interesse público, desde que seja visto em conjugação com o princípio da non reformatio in pejus (proibição de reforma para pior)[3].
Atraente é o caminho trilhado por Redondo e Rodrigues (2017, p. 261). Peço vênia para colacionar suas pedagógicas palavras:
A questão, antes de jurídica, chega a ser lógica. Observa-se: caso o Poder Público fique totalmente inerte e omisso, sem interpor qualquer apelação voluntária, ainda assim haverá reexame necessário integral, absoluto e pleno, em favor da Fazenda, como assegurado pelo art. 496. Por muito mais razão, se o procurador optar por sair da inércia legalmente autorizada e resolver recorrer voluntariamente de parte da sentença, não há a menor razão para a Fazenda ser punida com um estranho cancelamento do reexame automático complementar dos demais pontos que não tiverem sido expressamente atacados.
Desta feita, a apelação parcial não representaria limite à ampla devolutividade do reexame necessário. Sustentar entendimento diverso corresponderia a caminhar na contramão da teleologia que permeia o instituto em apreço.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Diogo Rezende de. Recursos cíveis. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em juízo. 11 ed. Salvador: Juspodivm, 2021.
DANTAS, Bruno et al. Questões relevantes sobre recursos, ações de impugnação e mecanismos de uniformização da jurisprudência. Ed única. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. 13 ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
- Expressão aqui utilizada para designar, via de regra, as pessoas jurídicas de direito público em juízo. A exceção fica a cargo da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Em que pese a sua natureza jurídica ser de empresa pública, o STF e o STJ estenderam os privilégios processuais inerentes à Fazenda Pública à empresa em comento (BARROS, 2021, p. 27);
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Alguns entendem que o legislador disse menos do que queria. Melhor teria sido a menção a “decisões judiciais”, pois assim seriam abrangidas, para além das sentenças, as decisões interlocutórias de mérito;
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O princípio vertente, por óbvio, não é amplo e irrestrito. Existe, via de regra, uma impossibilidade de o tribunal ad quem piorar a situação do recorrente. Entrementes, em algumas hipóteses pontuais, legitima-se essa piora. A título de exemplificação, mencione-se o caso em que ambos as partes recorrem da decisão. Não há obstáculo a que o tribunal prejudique a posição de um dos recorrentes (MIRANDA; SHIMURA, 2017, p. 71).