1. A SELETIVIDADE, A ESSENCIALIDADE E A ENERGIA ELÉTRICA
Pode-se afirmar que o Princípio da Seletividade dos tributos decorre de outros princípios presentes na Constituição Federal, e possui a missão de possibilitar o seu cumprimento.
De acordo com este Princípio, previsto no art. 155, §2º, III, da CF, a carga tributária do ICMS só poderá ser graduada em relação às mercadorias e serviços que não forem considerados essenciais.
Ou seja, com exceção dos gêneros de primeira necessidade, uma vez que, com relação a estes não existe liberdade de escolha, a lei poderá elevar o tributo sobre os produtos e serviços considerados supérfluos.
Quem adquire um bem imprescindível, não o faz por liberdade de consumo, uma vez que a necessidade é quem dita as regras.
O ordenamento jurídico disponibiliza vários procedimentos que podem ser adotados com a finalidade de reduzir o ônus tributário incidente sobre as mercadorias e os serviços considerados de primeira necessidade para a comunidade. As mais utilizadas são as alíquotas diferenciadas, variação de base de cálculo, criação de incentivos fiscais, alíquota zero, isenção, etc.
No âmbito ICMS, a técnica de seletividade mais aplicada pelos legisladores, é a da alíquota majorada ou minorada em razão da essencialidade das mercadorias ou dos serviços.
Note-se que seletividade poderá ser utilizada de diversas formas, desde que atinja o seu objetivo final que é a redução da carga tributária por meio de uma tributação mais leve dos produtos e serviços considerados de primeira necessidade para a sobrevivência humana, ou seja, aqueles considerados essenciais.
Caminhando, portanto, em paralelo com o Princípio da Seletividade, verifica-se que a observância da essencialidade serve para preservação do mínimo existencial e, por conseguinte, da dignidade humana, na medida em que estabelece que quanto mais essencial for o produto, mercadoria ou serviço, para a coletividade, menor deverá ser sua alíquota, bem como, quanto menos essencial, maior deverá ser a alíquota aplicável.
No que tange à essencialidade da energia elétrica pode-se dizer que este é um bem de notória necessidade para o ser humano.
No mundo moderno, não se pode tolerar que exista vida digna produtos e serviços que dependem da eletricidade, como por exemplo, geladeira, iluminação artificial, ferro elétrico, ou até mesmo um chuveiro elétrico para os dias mais frios. São itens que trazem o mínimo de conforto às pessoas e, sobretudo, dignidade para a vida cotidiana.
O atestado de essencialidade da energia elétrica é algo antigo no ordenamento jurídico brasileiro. Já em 1989, o legislador assim a declarou no artigo 10 Lei nº 7.883:
Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - Tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
Consequentemente, não deve haver aumentos incoerentes nas alíquotas incidentes na energia elétrica, pois não importa se é destinada à residência, comércio ou indústria: a energia elétrica é sempre essencial, o que independe também da quantidade que é consumida.
2. ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RE 714.139 (TEMA 745) PELO STF E A SELETIVIDADE DO ICMS ENERGIA ELÉTRICA
De início, importante tecer algumas considerações acerca do contexto fático que deu ensejo ao processo paradigma, em cujo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática dos recursos repetitivos, foi fixada a tese referente ao Tema 745 da Repercussão Geral.
A discussão se baseou nas alíquotas diferenciadas relativamente ao ICMS incidente sobre energia elétrica fixadas pelo Estado de Santa Catarina. De acordo com a legislação catarinense, a alíquota geral, foi estabelecida o percentual de 17%. Para o consumo domiciliar de energia elétrica (até 150kW), bem como para a energia elétrica destinada ao produtor rural e cooperativas rurais (observado o limite de 500kW), incide a alíquota de 12%; no que tange às demais situações de consumo de energia elétrica, aplica-se a alíquota de 25%.
O caso teve início quando a empresa recorrente se insurgiu contra a alíquota de 25% do ICMS sobre serviços de energia elétrica e telecomunicações para consumidores de grande porte, sob o argumento de que esse percentual não respeita os princípios constitucionais da seletividade e da essencialidade. A tese era, em apertada síntese, de que seria desproporcional que a tributação de energia e telefonia fosse percentualmente superior à de mercadorias como cosméticos, armas, bebidas alcoólicas e fumo.
Pois bem. A questão aventada no RE 714.139/SC, teve repercussão geral reconhecida (Tema 745), pois tinha o objetivo de definir o alcance da regra prevista no inciso III do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal, em relação a aplicação do princípio da seletividade ao ICMS, a partir do critério da essencialidade.
Assim, no julgamento referido recurso finalizado em 22/11/2021, foi fixada a seguinte tese:
Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.
O Min. Relator Marco Aurélio reconheceu a essencialidade dos serviços de telecomunicações e de energia elétrica, nos seguintes termos: A utilidade social dos setores de energia elétrica e telecomunicação é revelada na Constituição Federal, em que foram alçados à condição de serviços públicos de competência da União artigo 21, incisos XI e XII, alínea b.
Concluiu o Ministro Relator em seu voto, que a elevação das alíquotas de ICMS sobre energia elétrica e serviços de telecomunicações implica desvirtuamento da técnica da seletividade, considerada a maior onerosidade sobre bens de primeira necessidade, não se compatibilizando com os fundamentos e objetivos contidos no texto constitucional, a teor dos artigos 1º e 3º, seja sob o ângulo da dignidade da pessoa humana, seja sob a óptica do desenvolvimento nacional.
Ainda segundo o relator:
Levando em conta a calibragem das alíquotas instituídas pela norma local, impõe-se o reenquadramento jurisdicional da imposição tributária sobre a energia elétrica e os serviços de telecomunicação, fazendo incidir a alíquota geral, de 17%. Não se trata de anômala atuação legislativa do Judiciário. Ao contrário, o que se tem é glosa do excesso e, consequentemente, a recondução da carga tributária ao padrão geral, observadas as balizas fixadas pelo legislador comum.
Dessa forma, o STF declarou a inconstitucionalidade das previsões de alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.
O voto do Relator foi seguido pelos Ministros Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux.
Segundo o Min. Toffoli, em seu Voto-Vista, no qual acompanhou o Min. Marco Aurélio, não se pode submeter, como regra, a energia elétrica, seja qual for seu consumidor ou mesmo o nível de consumo, à alíquota de ICMS maior do que a incidente sobre as operações em geral, quando adotada a seletividade.
O Min. Alexandre de Moraes abriu divergência, propondo a fixação de uma tese em três partes:
I. Não ofende o princípio da seletividade/essencialidade previsto no artigo 155, parágrafo 2º, III, da Constituição Federal a adoção de alíquotas diferenciadas do ICMS incidente sobre energia elétrica, considerando, além da essencialidade do bem em si, o princípio da capacidade contributiva. II. O ente tributante pode aplicar alíquotas diferenciadas em razão da capacidade contributiva do consumidor, do volume de energia consumido e/ou da destinação do bem. III. A estipulação de alíquota majorada para os serviços de telecomunicação, sem adequada justificativa, ofende o princípio da seletividade do ICMS.
No mesmo sentido do Voto do Min. Gilmar Mendes, que acompanhou a divergência do Ministro Alexandre em seu Voto-Vista, a matéria concernente ao artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal mostra-se intimamente relacionada aos fundamentos de equidade do sistema tributário, introduzindo, na sistemática do ICMS, a possibilidade de instituição de alíquotas variadas, com base no princípio da seletividade.
Explica o Ministro que o critério da essencialidade na aplicação do princípio da seletividade deve ser lido e interpretado à luz das normas gerais que regem o sistema tributário nacional e dos valores constitucionais positivados, especialmente os princípios da capacidade contributiva e da isonomia.
Para a corrente divergente, nas palavras do Min. Gilmar Mendes, seria um contrassenso conferir à essencialidade o caráter restritivo que se pretende, de modo a extrair conclusões que eventualmente afastem a incidência do princípio da capacidade contributiva, outro fator potencializador da justiça fiscal.
A divergência, portanto, se firmou no sentido de que não se extrai da norma constitucional em foco a impossibilidade de variação de alíquotas de determinado produto essencial, conforme seu uso e destinação, desde que a opção do legislador, no caso concreto, efetivamente observe os princípios gerais do sistema tributário nacional.
No entanto, o objeto da divergência do julgamento se restringiu somente à discussão acerca da constitucionalidade da alíquota do ICMS no que tange ao fornecimento de energia elétrica.
O fato de o Poder Judiciário ter prestigiado o princípio da seletividade faz com que o cenário futuro para o contribuinte deste imposto seja otimista. Porém, a polêmica em torno do assunto está longe de acabar, uma vez que o entendimento manifestado pelos Poderes Legislativo e Judiciário vai na contramão dos interesses dos Estados.
Com relação à modulação dos efeitos da decisão proferida neste julgamento, o Ministro Dias Toffoli fixou o seguinte entendimento:
A modulação dos efeitos da decisão tal como ora sugerida preservará o exercício financeiro em andamento (2021) e o próximo (2022), bem como o de 2023, ano em que tomarão posse os Governadores e os Deputados Estaduais eleitos em 2022. Com isso, os impactos da decisão da Corte nas contas das unidades federadas serão amenizados em certa medida e num espaço de tempo adequado.
Até o dia 1º/12/2022 já foram julgadas 21 das 25 ações ajuizadas pela Procuradoria Geral da República contra leis locais fixando alíquotas de ICMS para energia elétrica acima da alíquota geral. Anteriormente foram invalidadas normas similares do Distrito Federal (ADI 7123), Santa Catarina (ADI 7117), Pará (ADI 7111), Tocantins (ADI 7113), Minas Gerais (ADI 7116), Rondônia (ADI 7119), Goiás (ADI 7122), Paraná (ADI 7110), Amapá (ADI 7126), Amazonas (ADI 7129), Roraima (ADI 7118), Sergipe (ADI 7120), Pernambuco (AID 7108), Piauí (ADI 7127), Acre (ADI 7131), São Paulo (ADI 7112, Bahia (7128) e Alagoas (7130).