Sexo não consentido durante o casamento, é estupro

Leia nesta página:

RESUMO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso, tem por objetivo principal, tratar o abuso intrafamiliar, considerando os agressores e agredidos, como sendo do sexo feminino ou masculino. Todos os cidadãos, devem ter conhecimento sobre os suas obrigações na constância do casamento. Ambos devem ser respeitados de maneira igual e ir em busca de ajuda, sempre que constrangidos forem, no curso da relação marital.

Considerado juridicamente, o estupro marital, como uma forma de violência, seu cometimento se dá por meio de abusos sexuais, psicológicos e agressões físicas.

Esse rol de ilícitos, ocorrem com casais de todas as faixas econômicas e classes sociais, independente de idade, raça, orientação sexual e, apesar das motivações serem as mais diversas possíveis, são oriundos do poder patriarcal que assegura desigualdade evidente, nas relações sociais, pelo gênero individual. A violência entre casais durante a privacidade, causa em muitos casos, óbitos, traumas psicológicos e físicos, danos moral e material. Entende-se que a solução para esse problema, não é simples, pois aspectos familiares complexos devem ser levados em consideração, vez que, o prejuízo extrapola os limites individuais, afetando por conseguinte a família e a sociedade como um todo.

Palavras-chave: Abusos. Agressão. Gênero. Punição. Sociedade.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ....

2. ABORDAGEM HISTÓRICA ...............................................................

2.1. O ESTUPRO .....................................................................

2.2. O MACHISMO SOCIALMENTE ACEITO ....................................

2.3. O ESTUPRO E SUA CULTURA RELATIVIZADA ......................

2.4. DIREITO DE IGUALDADE E A HISTÓRICA VIOLÊNCIA ............

2.5. O ESTUPRO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO .......

3. ESTUPRO MARITAL ..................................................................

3.1. DEFINIÇÃO .........................................................................

3.2. O ESTUPRO MARITAL SEGUNDO A DOUTRINA .......................

3.3. DOUTRINA COMPARADA ......................................................

4. A GRAVIDADE DO PROBLEMA, O ENTENDIMENTO E A SOLUÇÃO

PELO PODER PÚBLICO .................................................................

5. O DESPREPARO DO SISTEMA JUDICIÁRIO CRIMINAL ...................

6. CONCLUSÃO ..............................................................................

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................


1. INTRODUÇÃO

O Estupro Marital, modalidade do crime de Estupro, tipificado no art. 213 do Código Penal, ocorre obrigatoriamente, no curso da relação matrimonial, circunstância em que os mais belos e sonhados momentos da relação a dois, se tornam o pior pesadelo das mulheres. Esses casos são caracterizados pela violência sexual ou coação praticados pelo marido, violando assim, o direito de liberdade sexual da pessoa humana e sua dignidade, conforme previsão constitucional. Em que pese a gravidade do dado momento, será da mesma forma abordado o histórico dessa violência e as ações tomadas contra os agentes praticantes desse ilícito.

Senão, fica o questionamento:

Estaria o Sistema Jurídico Criminal, estruturado para tratar desse assunto, uma vez entendido pela maioria dos doutrinadores, que a esfera criminal é a última alternativa na solução de conflitos?

Permeia a sociedade jurídica, a preocupação com o agente criminoso e o crime por ele praticado, mas de forma ínfima, se discute quanto ao posicionamento da vítima e suas reações, sejam elas, com força ou comedida, racionais ou instintivas.

Nesse sentido, os motivos abordados, são em sua totalidade injustificados para o cometimento do ato do estupro marital, mas, podem sustentar alegações desencadeadoras do crime, e que podem preliminarmente agir em defesa do agente criminoso, no sentido de reduzir a pena, excludente de culpabilidade e até da tipicidade do fato.

Assim, a análise de cada caso deve ser feita com rigoroso critério técnico, a não permitir influências emocionais durante a avaliação circunstancial, de forma a considerar a conduta reta da vítima, no momento da aplicação da pena, a fim de que erros crassos de julgamento não ocorram e com isso seja estabelecida sanção penal desproporcional, conforme preconizado no art 59, caput do Código Penal Brasileiro.

Será abordada como ação preventiva ao estupro marital, a aplicação da Lei Maria da Penha, que associa violência psicológica como precedente à violenta conjunção carnal.

É do direito da mulher dizer não ao coito, quando não houver vontade própria, mesmo quando das investidas do marido, com alegações de cunho machista sobre as obrigações do matrimônio.

2. ABORDAGEM HISTÓRICA

2.1 O ESTUPRO

O termo estupro tem sua origem da palavra latina stuprum que significa relação sexual ilícita, uma espécie de libertinagem criminal. A cultura do estupro antigamente, não era vista como uma transgressão da lei, e sim como uma imposição do mais forte sobre a vontade do mais fraco, ou seja, prevalência a lei do mais forte. (PESENTI, 2018).

Por princípio, o termo civilização nasce da primeira tentativa de normatizar as relações sociais.

Sem essas normas, as relações sociais seriam deveras submetidas à lei do mais forte, e, com isso, suas vontades e instintos por vezes intempestivos, decidiram a contenda, certamente de forma tendenciosa. Com isso, não estaríamos isentos de presenciar disputas entre fortes e mais fortes, o que não nos traria nenhum benefício. A vida humana em comum é passível apenas se a maioria for mais forte do que cada indivíduo e se mantiver coesa contra cada indivíduo. O poder desta comunidade sob a forma de direito, contrapõe-se neste caso ao poder do indivíduo, agora visto como violência cega. Esta substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade é o passo civilizacional decisivo. (LOPES apud FREUD, 2008, p. 48).

Em suma, Freud acreditava que o poder individual deveria sucumbir ante a força da comunidade, ou seja, deveria haver regramento para o poder, assim não haveria imposição de vontade pela força, dessa forma, a partir do momento em que o poder agisse como letra do direito e não como violência cega, estaríamos a um passo muito curto de uma civilidade definitiva.

Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos e Viscondessa de Castro, Amante e condecorada Marquesa por Dom Pedro, é um excelente exemplo de que o Estupro Marital, não escolhe condição financeira ou estatura social.

Devido aos maus tratos, incluindo no termo, relações sexuais forçadas pelo marido, Domitila conseguiu junto à família em São Paulo autorização para retornar para a casa paterna com os seus filhos. Chegou de volta a São Paulo no final de 1816. Felício conseguiu transferência de seu posto no exército de Vila Rica para Santos e se estabeleceu em São Paulo, tentando se reconciliar com a esposa e em 1818 voltaram a viver juntos. Entretanto, dado a bebida e jogos de azar, não demorou para que Felício retornasse com seus velhos hábitos de espancamento e ameaças de morte à esposa. Na manhã de 6 de março de 1819, Felício surpreendeu Domitila junto à fonte de Santa Luzia e a esfaqueou duas vezes, uma facada pegou na coxa e a outra em sua barriga. Felício foi preso e levado para Santos, junto ao seu quartel, de onde partiu para o Rio de Janeiro. Domitila ficou dois meses entre a vida e a morte. Ao se restabelecer, teve que disputar judicialmente com o pai de Felício, que queria tomar os filhos do casal para educá-los em Minas Gerais. Domitila pediu a separação de Felício mas só a obteve cinco anos depois, quando já era amante do imperador. Os detratores de Domitila a acusaram depois de ter sido agredida porque traía Felício, quando na realidade, pela documentação e testemunhas no processo de divórcio, o alferes havia tentado matar a mulher para vender as terras que ambos, com a morte da mãe deste, haviam herdado em Minas Gerais. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Domitila_de_Castro_Canto_e_Melo) (visualizado em 07/05/2020)

Um estudo da pesquisadora Lori Heise, publicado na World Report on Violence 15 em 1994, reuniu dados de 35 estudos em 24 países, e comprova estatisticamente a alta incidência de violência de homens contra mulheres. O estudo traz dados específicos de veras repugnantes, como a forma mais endêmica de violência ser o abuso sexual e físico de companheiros íntimos contra suas parceiras, o que traduzido, nos remete a um grave problema de saúde pública. Em 48 pesquisas de base populacional, 69% das mulheres entrevistadas disseram ter sido alguma vez agredidas fisicamente por seus parceiros; na quase totalidade dos casos de agressão física, invariavelmente, a violência psicológica vem a reboque, e em até 50% dos casos, pela violência sexual. O estudo concluiu que no Brasil, a violência doméstica e conjugal, é avaliada e combatida com base nos índices fornecidos pelas instituições policiais e jurídicas, mas principalmente pelas Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres (DEAMs).

Os números apresentados, cresceram exponencialmente devido a influência de um forte movimento de mulheres, que privilegiou sobremaneira o direito da mulher à segurança na "intimidade" do lar, encorajando assim, denúncias contra seus agressores.

Determinante para fins de estudos, a legislação genuinamente brasileira, o Código Criminal de 1830, vigorante no período do império, considera o termo estupro de forma bastante genérica, admitindo como conduta criminosa atos como defloramento, cópula violenta, atentado violento ao pudor e sedução (HUNGRIA, LACERDA, 1959, p. 116).

Sessenta anos punindo condutas criminosas, foi o suficiente para entender que eram necessárias implementações a fim de corrigir deficiências legais, assim, aposentado o Código de 1830, nasceu para suplantá-lo o DECRETO 847, ou Código Penal de 1890, promulgado em 11 de outubro de 1890 pelo então General Marechal Deodoro da Fonseca. Neste, foram corrigidos dois artigos específicos, que tratavam da segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor, além da inclusão do Capítulo Da Violência Carnal.

Em 1940, mais uma atualização do Código Penal foi promulgada, desta vez pelas mãos de Getúlio Vargas, em meio a Segunda Guerra Mundial. Fascista, como foi apelidado e conhecido por grande parte das pessoas, o Código Penal de 1940 teve modificação no texto original, e, foi fixada letra da lei no seu artigo 213.

"Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: pena - reclusão, de três a oito anos. Nitidamente, o texto foi encurtado, mas a pena aumentada ao limite de 8 anos, além de ter excluído o termo mulher honesta.

O vernáculo de 1940, relatava quanto a relação sexual forçada, e sobre a mulher consentir ou não o pedido do homem. Entretanto Noronha lembra que além da violência do homem, as relações morais e honra serão preponderantes na dosimetria da pena.

Noronha ainda registra que o legislador até poderia ilegitimar o estupro, caso fosse, contra uma prostituta.

Em que pese o fato de comercializar seu corpo, não há que se falar em perda do direito de dispor dele, o que por sua vez merece toda proteção legal.

Destacado o coito contra sua vontade, imputar-se-á ao agente o crime de atentado à liberdade sexual e, portanto não poderia deixar de fazer parte do capítulo I do Título VI. (NORONHA, 1983. p. 111).

Pretérito à 2009, o Código Penal tratava do assunto de duas formas: estupro e atentado violento ao pudor (art. 214, CP): Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. (BRASIL, 2009)

Fazendo uma breve observação, a fusão entre os artigos 213 e 214 do CP pretérito à atualização de 2009, resultou no que temos hoje como estupro, tipificado no art 213 CP.

2.2 O MACHISMO SOCIALMENTE ACEITO

Até o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, a mulher iniciou a busca pelo espaço na sociedade que por direito lhe pertencia, aproveitando as mudanças econômicas e culturais que ocorriam no Brasil, com o surgimento da indústria, que a elas promoveu, ainda que timidamente, condições de estudar, trabalhar fora, entre outras ocupações, que antes erroneamente só pertenciam aos homens.

Susan Besse (1999), em uma análise bastante pertinente, nos chama atenção para a compreensão do quanto a transformação da infra-estrutura econômica, aliada a alfabetização das mulheres, e aos benefícios oriundos da presença da indústria, como o cinema, os meios de transporte, e a presença do comércio de bens de produção, modificou o ritmo de vida das mulheres e dos homens. Essas mudanças trouxeram a reboque, comportamentos culturais e valores de outros países, de forma a internacionalizar nossos conhecimentos e então de forma principiante globalizar o país. Essa troca cultural, passou a confrontar os costumes patriarcais que já eram enfraquecidos, porém ainda vigentes.

Segundo (MACHADO, 2001) a ideia do masculino ser o sujeito da virilidade e o feminino ser o seu objeto é um valor que permeia a cultura ocidental durante muito tempo. "Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material: é o "impensado" e o "naturalizado" dos valores tradicionais de gênero". Da mesma forma e em consequência, o masculino é investido significativamente com a posição social (naturalizada) de agente do poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas. O vocabulário militarista erudito e popular está recheado de expressões machistas, não havendo como separar um de outro" (Machado, 2001).

Machado diz que "o caso das relações conjugais, a prática cultural do "normal masculino" como a posição do "macho social" apresenta suas atitudes e relações violentas como "atos corretivos". Por isso, em geral, quando acusados, os agressores reconhecem apenas "seus excessos" e não sua função disciplinar da qual se investem em nome de um poder e de uma lei que julgam encarnar". (Machado, 2001).

Geralmente quando narram seus comportamentos violentos, os maridos (ou parceiros) costumam dizer que primeiro buscam "avisar", "conversar" e depois, se não são obedecidos, "batem". Consideram, portanto, que as atitudes e ações de suas mulheres (e por extensão, de suas filhas) estão sempre distantes do comportamento ideal do qual se julgam guardiões e precisam garantir e controlar (Machado, 2001).

A associação da mentalidade patriarcal que realiza e re-atualiza o controle das mulheres e a rivalidade presumida entre homens estão sempre presentes nas agressões por ciúme (medo da perda do objeto sexual e social) cujo ponto culminante são os homicídios pelas chamadas "razões de honra" (Machado,2001).

No Brasil, "razão de honra" é uma categoria relacional forte e ao mesmo tempo provisória, pois sua existência, culturalmente, depende do exercício de vários papéis masculinos: o de provedor, o de pai e, sobretudo, o de marido que precisa assegurar a fidelidade da parceira no desafio com outros homens. (Machado, 2001)

No caso acima, fica nítida a contradição, quando "o homem honrado vive em eterna vigilância contra o homem bicho danado" (Machado 2001), podendo a qualquer tempo haver a inversão de papéis, precisando apenas da outra ótica. Assim, fazem com que as mulheres se sintam obrigadas a satisfazer seus parceiros e, assim, ser considerado ato normal, devido ao matrimônio, em que pese a consciência da insegurança em dizer não.

Eis que surge o modelo patriarcal, enraizado pelas famílias romanas.

Esse modelo familiar, formava um pequeno porém importante Estado, que vivia sob as ordens de seu soberano, o "Patriarca", o "Chefe" da família. Nesse mesmo pensamento, o governo familiar, tinha independência de ações e autonomia quanto a qualquer poder exterior. As contendas internas, eram resolvidas pela figura do chefe da família, que atuava como uma espécie de juiz familiar, com a função de domesticus magistratus. A posse dessa função, dava ao líder máximo, o direito de decidir sobre viver ou morrer (jus vitae necisque), para com os integrantes da família.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Assim, para os romanos, o chefe de família exercia poder absoluto, sendo chamado de pater familiae, em alguns casos,inclusive, vendendo a mulher e filhos como escravos. (CAMPOS, 2008, p. 54-55).

Com relação a desigualdade de gêneros e da força de ordem do sexo masculino, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, um dos maiores pensadores do século XX, relata que:

A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de enunciar, visando a sua legitimação. A ordem social funciona como imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a divisão do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos. (BOURDIEU, 2005, p. 15)

Convenientemente, o Estado Romano, não se manifestava quanto às atrocidades e os abusos cometidos contra a mulher, não fosse o suficiente o castigo sofrido por elas e imposto pela cultura machista. Abusos de figuras machistas e os crimes contra mulheres, eram entendidos e absorvidos como razoáveis e justificáveis, portanto toleráveis, já que o agente causador não sentia culpa.

2.3 O ESTUPRO E SUA CULTURA RELATIVIZADA

De acordo com Luiz Régis Prado (2010) o crime de estupro é elencado no artigo 130, do Código de Hamurabi, e afere que: se alguém viola mulher que ainda não conheceu homem e viva na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre.

O Direito Canônico de acordo com Portinho (2005) caracteriza estupro somente se a mulher for for virgem e a conjunção carnal ocorrer mediante emprego de violência, dessa forma à mulher casada, não pode ser vítima de estupro.

No entendimento de Almeida (2012), o homem que mediante violência praticasse conjunção carnal com mulher virgem, receberia a maior de todas as penalidades: a pena capital, que consistia na morte por decapitação em praça pública.

A antiga civilização hebraica tratava o estupro de forma radical, o que para muitos era considerado exagero, mas que sob a ótica popular da época, mantinha íntegro o limite das mulheres. O homem que se relacionasse sexualmente com a "noiva" antes do casamento recebia a morte como punição caso essa mulher fosse virgem e não comprometida, a punição era pecuniária, às cifras de 50 siclos de prata (conversão atual R$ 4.500,00) como multa para o pai, tendo ainda que casar-se com ela. O Egito antigo, tratava este crime com a mutilação do agente, ou seja, a emasculação do indivíduo. Na Grécia e em Roma, a punição era com a pena de morte. O Direito Romano, denomina este crime como Stuprum, ou seja, conjunção carnal com mulher virgem ou viúva desonesta, mas sem o emprego da violência. (HUNGRIA, 1959)

Gilberto Freyre relata que, por volta dos séculos XVI e XVII, eram repreendidas todas as práticas de relação sexual forçada, principalmente quando a vítima era mulher, pois, entendia-se que biologicamente e socialmente, era o sexo frágil da relação. A estigmatização do sexo feminino em belo sexo e sexo frágil, fez da mulher do senhor de engenho e da fazenda e mesmo da Iaiá de Sobrado, no Brasil, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de carne do marido. (1977)

2.4 DIREITO DE IGUALDADE E A CULTURA HISTÓRICA DA VIOLÊNCIA

O conceito de violência para Maria Amélia, significa uso de força física, psicológica ou intelectual, para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger,é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta(2003). No mesmo pensamento segue Stela Valéria (2005), que entende que a violência consiste em ações de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual.

Por definição, o termo violência é usado para traduzir ferimento causado, sejam oriundos de injúrias, força física que promovam sofrimento físico e mental, tortura e até a morte no intento de sobrepor-se a vontade de um terceiro.

Baseado em índices de violência contra mulher, cada vez maiores, o termo "violência de gênero" vem ganhando um valioso espaço, que por razão deveria pertencer ao respeito à mulher.

Históricamente, a diferença de gênero está impregnada nos discursos dos mais importantesestudos multidisciplinares, entretanto, o momento atual permite-nos ouvir o grito dessa diferença em nossas análises.

Ao contrário do que os bancos acadêmicos nos ensinam sobre igualdade e fraternidade, seguido esplendorosamente durante a Revolução Francesa, no final do século XVIII e em meados do século XIX, a ultra direita pregava a diferença entre seres humanos, pois não nascemos iguais e com isso não podemos e não devemos ser tratados igualitariamente, como refere-se Pierucci.

O feminismo afrontou o sentimento masculino que apoderava-se de forma inconteste até então, do direito de pensar no feminino como seu avesso. O pensamento da igualdade de gêneros foi o primeiro passo dessa transgressão.

Na tentativa de lutar pela igualdade entre os sexos, as mulheres tropeçaram na diferença. Imbuídas de muita vontade, porém sem a devida estratégia, as mulheres queriam ocupar os espaços dito masculinos, agindo e comportando-se exatamente como homens, o que as prejudicava sobremaneira em seu intento, pois tardiamente percebiam que o comportamento adotado, enaltecia ainda mais as qualidades masculinas e desprestigiava os atributos femininos, fazendo-as sentir um forte sentimento de derrota.

Com esse sentimento, veio à tona, uma grande dubiedade, e deu início a uma importante revisão do feminismo.

A igualdade entre os sexos, é uma luta diária das mulheres em esfera mundial, que flutuou no tempo de forma quase que petra e muito semelhante entre os povos, o que fez com que dispositivos de proteção feminino fossem criados, a fim de que alguma mudança cultural pudesse ocorrer.

2.5 O ESTUPRO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

No entendimento da nova letra da lei penal, a dignidade e a liberdade sexual, são bens juridicamente protegidos, como versa o artigo 213 do Código Penal. Por ser o tema demasiado delicado, é tutelado a qualquer pessoa, dispor de seu corpo se, quando e como quiser, quando dos atos sexuais. Nesse sentido, Noronha, diz que o estupro fere tanto o princípio à dignidade quanto a liberdade sexual do ser humano, trazendo-lhe o sentimento de humilhação. (2002)

Trata-se de um direito mais que personalíssimo, pois mesmo no curso de uma vida em que se flerta com o comércio do próprio corpo, observa-se a faculdade em aceitar ou não a proposta de um homem.

Endossando esse pensamento, Emiliano Borja Jiménez, diz que "Liberdade sexual significa que o titular da mesma determina seu comportamento sexual conforme motivos que lhe são próprios no sentido de que é ele quem decide sobre sua sexualidade, sobre como, quando ou com quem mantém relações sexuais."( 2012.)

Anterior a última atualização do Código Penal, o legislador pretendia punir crimes contra a liberdade e o desenvolvimento sexual, entretanto, se observou a necessidade de tutelar também a dignidade sexual, podendo ser a mulher e o homem indiscriminadamente objeto material do crime de estupro. Agravante porém, a menor idade da vítima, que incidirá o agente na forma qualificada do crime, previsto no parágrafo 1º do mesmo artigo.

3. ESTUPRO MARITAL

3.1 DEFINIÇÃO

Trata-se de violência sexual contra mulher na constância do matrimônio. A mulher enquanto esposa, contra sua vontade, é forçada pelo cônjuge a manter relações sexuais. É uma modalidade de estupro em que a principal diferença das demais, está na qualificação dos polos ativo e passivo.

3.2 O ESTUPRO MARITAL SEGUNDO A DOUTRINA

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

De acordo com Fernando Capez, entende-se que Marido que, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, constrange à mulher a prática de relações sexuais comete crime de estupro.

Celso Delmanto, relata que embora a relação sexual voluntária seja lícita ao cônjuge, o constrangimentoilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força não constitui exercício regular de direito, mas,sim, abuso de poder, portanto a lei penal não autoriza o uso de violência física ou coação nas relações sexuais entre os cônjuges.

Julio Fabbrini Mirabete afirma que, embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial.

Guilherme de Souza Nucci, considera que o "NÃO", não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento.

Rogério Greco, esclarece que modernamente, perdeu o sentido tal discussão, pois, embora alguns possam querer alegar o seu crédito conjugal, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela.

Alguns autores já entendem que a expressão débito conjugal não deva mais ser consentida. É o caso da Magistrada Maria Berenice Dias, que entende que "não se consegue detectar a origem do quem vem sendo alardeado, até por charges via Internet: que existe no casamento o débito conjugal que um cônjuge deve ceder à vontade do outro e atender ao seu desejo sexual. Tal obrigação não está na lei. A previsão de vida em comum entre os deveres do casamento (Código Civil de 1916, art. 230, II e Novo Código Civil, art. 1.566, II) não significa imposição de vida sexual ativa nem impõe a obrigação de manter relacionamento sexual. Essa interpretação infringe até o princípio constitucional do respeito da dignidade da pessoa, além de violar a liberdade e o direito à privacidade, afrontando ainviolabilidade ao próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado". (2002)

Carolina Valença Ferraz, entende que o "estupro da mulher casada, praticado pelo cônjuge, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa. (...) A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e psíquica e ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de reparação constitui para o cônjuge virago uma compensação pelo sofrimento que lhe foi causado".

3.3 DOUTRINA COMPARADA

"Ressalta-se no Direito Comparado, o entendimento dos juristas italianos, franceses e da legislação porto-riquenha. Para a doutrina italiana, não há que se falar em estupro de marido contra mulher, valendo-se da autoridade do marido no casamento. Esta é a tese defendida por autores como Olfaggiore, Pozzolini, Manfredini e Sanit. Há, porém, uma outra corrente italiana na qual também não se admite o estupro conjugal, entretanto, em caso da mulher ser forçada ao sexo por seu cônjuge, ter-se-á então violência privada. Comungam desta ideia, Carnelutti, Antolisei e Vannini." (DANTAS, 2003)

Considerando o entendimento porto-riquenho, a lei n° 54 dispõe em seu art. 35, trata a agressão sexual conjugal, com punições severas, a seguir; "Será imposta pena de reclusão, segundo se dispõe mais adiante, a toda pessoa que incorra em uma relação sexual não consentida, com seu cônjuge ou ex-cônjuge, com pessoa com quem coabite ou tenha coabitado, ou com quem sustente ou tenha sustentado uma relação consensual ou a pessoa com quem tenha procriado filho ou filha, em qualquer uma das circunstâncias seguintes: se tenha compelido manter uma conduta sexual mediante emprego de força, violência, intimidação ou ameaça de grave e imediato dano corporal; se tiver anulado ou diminuído substancialmente, sem seu consentimento sua capacidade de resistência através de meios hipnóticos, narcóticos, deprimentes ou estimulantes, substâncias ou meios similares."(DANTAS, 2003).

De acordo com Eduardo Espíndola, o Direito Francês, entende que conferir indenização à vítima em face deste fato é o correto a ser feito. Noutra forma, Espíndola ainda diz que os tribunais franceses têm decidido que a recusa em manter relações sexuais constitui uma injúria grave, capaz de justificar o divórcio ou separação de corpos, concedendo, além disso, indenização ao cônjuge ofendido.

Fica claro, que há uma espécie de jogo controvertido entre as idéias. A Doutrina Italiana, pensa de forma retrógrada, que permite florescer um sentimento de superioridade masculina. Já o entendimento francês, tem uma visão mais progressista, instituindo uma compensação pecuniária.

Já o corpo doutrinário porto-riquenho, aborda a questão de forma bastante sensível e humanista, demonstrando preocupação social com a questão e um respeito ímpar com os direitos da mulher.

Os doutrinadores tradicionais Brasileiros como Hungria (1959) e Noronha (2002) por sua vez, argumentam que o debitus conjugales, o dever sexual está implícito na coabitação (C.C. 1916 art.231-11), dever este, a que a mulher casada, em tese, não poderia se recusar. Tem sua gênese incrustada no Direito Canônico, mais especificamente no cân. 1.013, § I ,que, estabelece como fim, primeiro do casamento, a procriação e a educação da prole.

Já Diniz, alega que para fins do casamento: "a legalização das relações sexuais entre os cônjuges, pois dentro do casamento a satisfação do desejo sexual, que é normal e inerente à natureza humana, apazigua a concupiscência [..]". (2008)

Assim, e de maneira direta, Noronha só admite o estupro marital, em caso de alegações outras, que justifiquem, tais como, o marido ser portador de doença venérea. Eis que à luz, foi trazido o verdadeiro motivo da recusa; não levado em consideração o constrangimento por qual passa a mulher, mas a tipificação prevista no artigo 130 do Código Penal, em que reza a transmissão de doença venérea pelo varão à varoa. (2002)

Hungria ainda rechaça o respeito à mulher, afirmando que; "O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito. " (1959)

Em que pese sobremaneira a posição doutrinária dos tradicionais causídicos, cito de forma inequívoca, a certeza da objetificação da figura da mulher. Embaso-me na disposição no Código Penal, quando aduz que liberdade sexual e a honra, são crimes praticados contra pessoas e não contra costumes, além de considerar veementemente o que aduz a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5o, caput,x. 

4. A GRAVIDADE DO PROBLEMA, O ENTENDIMENTO E A SOLUÇÃO PELO PODER PÚBLICO

Por tempos observa-se que ocorrências de violências contra a mulher, são tratadas como mais um problema, e, portanto segue o mesmo rito dos tantos que figuram na conta do poder público.

É inegável que o agressor é o responsável pela violência propriamente dita, portanto deve ser exemplarmente punido. trata-se de pensamento comum, mas que, de forma relapsa é conduzido. Senão vejamos a opinião popular: - estuprou, tem morrer na cadeia, ou bateu na mulher, deixa ele na minha mão por 10 minutos, que eu faço ele pedir pra morrer. - Mas não se trata um problema social, em um país organizado por normas legais, na base da lei de Talião, Lex Talionis ou seja, olho por olho, dente por dente.

A maior parte dos casos teria sido resolvida se houvesse uma atuação eficiente do Estado, ainda no cenário da lesão ou da ameaça. Porém, essas infrações penais eram de menor potencial ofensivo, dando margem a transações absurdas, como obrigar o agressor a entregar cestas básicas a instituições de caridade. Um acinte à Justiça. ( NUCCI, Guilherme de Souza, 2007)

Há que se ter muita cautela no tratamento de casos de violência, não tornando pública informação descabida e inverídica. O uso da imprensa, que tem papel fundamental de fiscalização e geração de informação de qualidade no estado democrático de direito, de forma irresponsável, pode trazer graves consequências ao devido processo legal, ao passo que o Estado se vê pressionado pela opinião pública para uma sentença muitas vezes populista.

(...) A presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção da inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiro limite democrático a abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência (LOPES JUNIOR, 2012, p. 778).

Como de conhecimento, o problema social, demanda ao poder público a solução, assim, define a Constituição Federal, quando trata dos direitos fundamentais,

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III- a dignidade da pessoa humana; e

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e ainda,

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Nesse sentido, não resta outra posição, senão a cobrança junto ao poder público por sua ausência, no sentido de proteger a integridade do bem jurídico, a vida.

Via de regra, reportagens de repercussão nacional, são veiculadas, na tentativa de apresentar números de vanguarda. O poder público apresenta sempre, estatísticas de linearidade, a fim de que a sociedade tenha a falsa ideia de que a violência contra mulher está sendo tratada como se deve, pois o percentual de casos se mantém, o que indica ação punitiva do órgão responsável.
 

Abaixo um comparativo dos anos de 2018, 2019 e 2020.

Observe que o resultado apresentado pela Administração Pública, leva ao sentimento de estabilidade e controle. Entretanto os registros de casos de estupro e os qualificados como estupro marital, oscilam sempre para mais. 

Estamos diante de uma manipulação de resultados. Fossem os resultados de jogos ou tão simples controle material, estaríamos sujeitos a um novo aferimento, entretanto, estamos falando de vítimas de violências psicológicas, físicas e até fatais. 

Nota-se um crescimento gradativo dos índices apresentados pelos órgãos de segurança pública do estado, mas o real problema se vê nos números absolutos, ou seja, quando olhamos o número como mais uma vítima da violência. 

O ano de 2020, traduzem muito claramente a realidade das ações do Estado. Antes da metade do ano, os números absolutos já eram mais que o dobro em relação aos anteriores. Isso significa que mulheres são violentadas e muitas vezes assassinadas por seus parceiros, entretanto os números oficiais mostram estabilidade das ações e controle do estado. 

Por fim, resta demonstrado a necessidade do Estado se posicionar ao lado da sociedade. Os números mostram um crescimento exponencial nas ocorrências, entretanto os índices públicos mostram novamente estabilidade. Fica claro, que há uma espécie de cifra negra, ou cifre noir, que deturpam os resultados, fazendo chegar a sociedade o acalento tão aclamado. 

Confrontando as informações divulgadas por órgãos oficiais e pela imprensa, o sentimento de inquietude, se instalou e despertou em mim o interesse por elucidar e organizar essas informações de forma simples e objetiva. 

Dessa forma, a busca por mais informações, me levou à ONG Coletivo Feminista e à Psicóloga Ana Macedo Galati, que de forma muito célere e ponderada, concedeu-me uma excelente entrevista. 

A ONG COLETIVO FEMINISTA, localizada em São Paulo, é um exemplo claro de iniciativa popular para preencher a ausência do Estado no cuidado da mulher. 

O Coletivo Feminista, atua desde 1981, oferecendo atendimento para saúde e sexualidade feminina. O cuidado com as mulheres vítimas de violência sexual vai da recepção da violentada até o acompanhamento psicológico e encaminhamento às autoridades para o registro de ocorrência e futuras providências. 

De acordo com a Psicóloga Ana Macedo Galati, responsável pelos atendimentos psicológicos da ONG durante 14 anos, ocorrem diversos problemas quanto à violência contra a mulher. Primeiro, a instrução oferecida pelo poder público, é para que a vítima se dirija à uma delegacia para registrar a ocorrência.

Mas fica a pergunta: - Considerando o estado psicológico e físico da vítima, seria a delegacia o lugar mais apropriado para o primeiro atendimento? Ana diz que o ambiente hostil das delegacias, afastam e intimidam as mulheres da denúncia, tornando a campanha do Estado, ineficaz. 

Há anos, o Estado entende que a denúncia deveria ser o primeiro passo para a punição do agressor, porém esquecendo de cuidar da vítima. Eis que Centros de Apoio foram criados e postos de saúde e hospitais públicos direcionados à esse atendimento, na tentativa de dar o conforto e a segurança necessários para que a vítima prossiga com a denúncia. 

Uma boa iniciativa, segundo a psicóloga, mas os profissionais que neles trabalham, deveriam ser capacitados de acordo com a necessidade, e não aferir condições baseado apenas no conhecimento acadêmico. 

Ana conta, que um caso que lhe chamou atenção, um caso de uma mulher casada, que compareceu a um posto de atendimento público, e pediu um remédio para dormir, pois estava com insônia a muito tempo. Por quatro vezes e passando com profissionais diferentes, ela conseguiu a medicação, entretanto na quinta vez consecutiva que passou pelo atendimento, o médico que lhe atendera pela primeira vez, analizou o prontuário e fez a pergunta que deveria ter sido feita desde o início. - qual o motivo da sua insônia?, então a resposta dada pela mulher chocou o médico, que imediatamente a direcionou para o atendimento psicológico, pois:

- Dr., meu marido chega bêbado em casa todos os dias e me obriga a transar. Ele é muito bruto e me machuca, então eu não consigo dormir.

Para a psicóloga, o fluxo de atendimento deveria iniciar com o atendimento dos centros de referência, pois nesse momento, o acolhimento de forma humanizada, os cuidados médicos em caso de necessidade, e o empoderamento dessas vítimas, oferecem segurança e confiança para que as mulheres rúmen à delegacia e façam a denúncia. 

Questionada sobre os números apresentados pela Secretaria de Segurança Pública, Ana refuta os números, combatendo- os com argumentos fortes e concisos, senão vejamos: 

Quando a vítima chega a um hospital, posto de saúde ou centro de atendimento, todos públicos, o médico que faz o atendimento, é orientado por questões de segurança própria e da vítima, a não relatar no prontuário o termo violência, ou estupro, com isso, os casos são diagnosticados como doença venérea, ocorrência ginecológica de rotina ou algum CID comum. 

Para a psicóloga, a solução seria o registro compulsório dessas agressões, o que por lógica, cresceriam os índices apresentados pelo Estado. Por óbvio, o aumento dos casos de violências registrados, elevaria o nível de atenção do Estado e por sua vez, o combate a essa violência poderia ser mais rápida. 

Não se trata o combate à esse tipo de violência, como sendo ausência de instrumento legal, mas a inércia quanto a vontade de agir, que deveria ser principiológica, na ações governamentais. 

Como tantos outros problemas que enfrentamos por ausência do Estado, esse é mais um criado pelo próprio poder público, pois, sem políticas sociais, não é possível sequer traçar os perfis das vítimas e dos agressores, e, como em todo problema à ser solucionado, é necessário que se defina sua causa raiz. 

5 - O DESPREPARO DO SISTEMA 

Por anos, observou-se, que a sociedade exauriu-se em conclames por uma justiça mais igualitária, ou que não houvessem privilégios na hora de julgar. De forma muito superficial ao conceituar, os pedidos sempre foram no sentido de oferecer direitos iguais a todos que se fizessem usuários do ordenamento jurídico. 

Boaventura de Souza Santos, dizia que temos o direito a reivindicar a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza; temos direito a reivindicar a diferença, quando a igualdade nos descaracteriza. 

O SJC (Sistema de Justiça Criminal) é ineficaz quanto a proteção das mulheres em casos de violência, pois não previne a reincidência ou novos casos, não ouve as vítimas, de forma que não compreende a própria violência sexual e não se atenta a possíveis conflitos e as transformações nas relações de gênero. 

Um estudo divulgado por Elena Larrauri, Criminologista espanhola, concluiu que a apesar de uma forte e rígida lei orgânica, que punia os agressores estritamente com o encarceramento, na Espanha, os índices de homicídios contra mulheres cresceram desenfreadamente. No mesmo estudo, há ainda a informação de que as mulheres vítimas, não procuravam punição contra os agressores, mas a própria proteção. 

Marilia Montenegro Pessoa de Mello, afirma que em 97% dos casos de violência registrados no Brasil, o objetivo da mulher não é a punição do agressor com o encarceramento, mas conseguir proteção para que não haja reincidência da agressão. 

O que se absorve da forma como o SJC trata a situação, é que além de não oferecer nenhum tipo de segurança para a mulher, ainda confere somente uma resposta à violência empregada, que é o castigo, distintamente distribuído além de não cumprir as funções de prevenção, intimidação e reabilitação. 

Outro ponto de inoperância do SJC, é a duplicação dos casos de violência, o que por sua vez, enfraquece consideravelmente os movimentos feministas e joga luz à institucionalização da violência contra mulher. 

A professora Vera Regina Pereira de Andrade, afere que o SJC não está só, mas inserido em uma mecânica global de controle social criminalizado, em que participam a família, a escola, a mídia, a tecnologia, a religião e o mercado de trabalho. Existe portanto um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle, ou seja, um sistema ideológico de controle. Em suma, o sistema ideológico de controle somos nós. 

Ao contrário do que deveria ser, assim como rege a carta magna, o sistema seleciona as pessoas e por sua vez diferencia seu tratamento de acordo com o estereótipo de agressores e vítimas, formando suas convicções com base nas pessoas envolvidas, e não no fato-crime. 

Para a professora, há ainda uma sub lógica específica, pois, mulheres ditas honestas (do ponto de vista da moral sexual dominante) são consideradas vítimas pelo sistema, e as desonestas (estereotipadas por prostitutas), o sistema sumariamente ignora, por não serem o padrão moral sexual concebida pela sociedade. 

Lia Zanotta Machado, Doutora em Ciências Criminais, aduz que Ter moral é fundamentalmente ter moral de macho, identifique-se ou não com ter moral de malandro. Estuprar guarda o sentido positivo de ter moral de macho, embora, quando negativamente representado, se associe a cair na tentação do mal. (A Cidade do Medo, 2015

Há que se frisar, que o SJC é tão ideologicamente atuante, que a aplicação da letra da lei em casos que envolvem prostitutas é distorcido e em alguns momentos velado. 

A autora entende que o despreparo inicia já na letra da lei, pois o próprio Código Penal se mostra atravessado pela ideologia patriarcal, visto os artigos 214, 215, 216 e 220, todos elencados no título dos Crimes contra os Costumes, são defensores do termo mulher honesta, afinal excluem as mulheres ditas desonestas, em especial às prostitutas. 

Lia Zanotta Machado, diz que A questão é, em princípio, saber a que preço, em: que condições, ela cederá. Mas sempre, preenchidas as condições, ela se dá como um objeto. A prostituição propriamente dita não introduz senão a prática da venalidade. (...) Se houve o primeiro gesto de esquiva, aparente negação da oferta, serve para marcar o seu valor. (Feminismo em Movimento, 2010

De forma sub-reptícia, os julgamentos separam mulheres honestas das mulheres desonestas, muito embora o artigo 213 do livro penalista, prescinda dessa exigência para fundamentar sentenças. 

Em resumo, o que a professora Vera Regina afirma, é que o julgamento ocorre com base no passado das pessoas, suas reputações, suas posses, e por conveniência se abstém quanto ao fato criminoso. 

Evidenciando sobremaneira o despreparo do sistema, a autora joga luz à um detalhe que derruba qualquer narrativa conservadora, senão: _ Se para a doutrina é pacífico que a palavra da vítima e o exame de conjunção carnal, assumem especial relevância nos discursos decisórios, por que então, os magistrados, em suas sentenças, aduzem que o discurso da vítima deve ter congruência com outros elementos probatórios, o que reduz de fato e em muitas vezes, a palavra da vítima? 

No entendimento de Vera Regina, esses elementos são na verdade a reputação ilibada, o recato e o pudor da mulher, mesmo que haja flagrante do delito. 

O mesmo julgamento ocorre nos casos que envolvem maiores de 14 anos, que contam com o entendimento legal de presunção de violência à seu favor, como versa o artigo 224 do CPB, mas é relativizado com a justificativa de ser ou não a vítima, mulher honesta. 

A professora conclui que parece haver um duplo caminho a ser seguido. _ A inclusão feminina e a co-responsabilização estrutural. 

É necessário que homens e mulheres sejam tratados igualitariamente, dando pesos equânimes as suas vozes. Assim a adução de ideologias ou lógica estrutural das instituições, que problematizam a grande rúbrica unilateral do feminismo, a violência contra mulher, serão separadas dos fatos reais. 

Outro ponto de grande discussão e calorosas discordâncias, é quanto ao correto entendimento da Lei 11.340, ou Lei Maria da Penha. 

Um estudo liderado pela Professora Marília Montenegro Pessoa de Mello, revelou que apesar da aplicação da lei Maria da Penha ipsis litteris, o entendimento é de que a lei foi pensada única e exclusivamente para a proteção da mulher, ou seja, do gênero. 

Se a lei maior, diz que todos são iguais perante a lei, por quê editar uma lei para proteger determinado gênero? O correto não seria uma lei que atendesse as relações familiares ou que orientasse as punições em casos de violência doméstica? 

Marília Montenegro, relata que a magistratura de forma geral discorda da lei nesse ponto, pois apresentam casos práticos em que durante audiência, mulheres mais fortes que os homens biologicamente falando, os agridem, e os homens não podem se valer das mesmas prerrogativas. 

6. CONCLUSÃO 

Fica claro desde sempre, que a figura da mulher é tratada com menosprezo e discriminação, quando comparado ao homem, perante ao quadro social. O que se nota, é que a mulher se prepara ano a ano para ocupar o espaço que é seu por direito e, que, muito timidamente, vem sendo reconhecido. 

O desenvolvimento social, vem propiciando uma equivalência entre homens e mulheres quanto às relações sociais e direitos fundamentais. No sentido de uma relação social igualitária, o Estado que tem a obrigação constitucional de proteger as pessoas, após diversos estudos e discussões, deveria de ofício, propor mudanças no atendimento das vítimas de violência doméstica, à exemplo de países que estão muito à frente do Brasil nesse quesito. Mudanças como: direcionar o primeiro atendimento para os centros de apoio e referência à saúde da mulher e o registro compulsório de termos como violência doméstica ou sexual nos prontuários médicos. A princípio, duas ações que mudariam de forma substancial, fatores como:.. auto-segurança das vítimas para denunciar, transparência nas informações divulgadas e naturalmente a redução dos índices oficiais. 

Historicamente, a mulher foi reconhecida e preconceituosamente concebida para ser subordinada, atender às vontade e desejos sexuais masculinos. 

Concernente com esse pensamento, é possível usar a Constituição Federal de 1824, que de forma expressa, não tinha a mulher como cidadã, ou seja, a considerava desprovida de direitos e referências. 

As desigualdades sempre estiveram límpidas aos olhos de todos, principalmente quando relata o Código Civil de 1916, a ideia de débito conjugal, o que colocava a mulher em literal situação submissa, em termos práticos, nivelada à uma escrava. 

Com o passar dos anos, e com a intervenção feminina cada vez mais presente, o estupro marital passou a ser visto e entendido como repugnante, mas ainda longe de uma realidade ideal igualitária. Numa sociedade como a nossa, em que a lei do mais forte ainda se faz presente em inúmeros casos e a repressão feminina ainda ocorre exponencialmente, sendo as mulheres diminuídas socialmente de forma machista à apenas mulheres, temos muito a evoluir, principalmente do ponto de vista cultural, pois o estupro marital ainda é um crime desconhecido da grande massa. 

Prova dessa necessidade, é a todo momento termos a necessidade de invocar o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que iguala direitos e obrigações entre homens e mulheres, sendo de qualquer forma um grande e legitimado avanço. 

Foram anos de muitas emendas e revogações, mas ordenamento jurídico brasileiro, segue firme em busca da formatação ideal para regrar as relações sociais, e promover à sociedade, uma condição mais justa e igual entre todos. 

É fato também, que o sistema judiciário brasileiro não está preparado ainda para tratar dessa chaga chamada violência doméstica, visto que, as vítimas são recebidas em ambiente hostil e desamparadas psicossocialmente no momento da denúncia, os casos são tratados de forma igual, como se estivessem numa esteira industrial de linha de produção, ou seja, mais um crime, as penas são pequenas e iguais, sem a devida análise individual do caso. 

Assim, não fosse a luta incessante e diária de todos que defendem uma sociedade mais justa, seria ausente o artigo 213 do Código Penal, com a atual redação, e as mulheres ainda seriam consideradas objeto dos homens, o que a nós conclui que estamos no caminho certo. 

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BATISTA, Nilo. Decisões criminais comentadas. Rio de Janeiro: Líber-juris, 1976. 

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, dos crimes contra a dignidade sexual, dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 539-H). Saraiva, 2011. 

CAMPOS, Andrea Almeida. A cultura do estupro como método perverso de controle nas sociedades patriarcais. Revista Espaço Acadêmico, São Paulo, v. 16, n. 183, p. 1 13, ago. 2016. 

DANTAS, Fagner Cordeiro. Débito conjugal: o corpo como dote. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n.68, set/2003. Disponível em: <<http:// www 1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4303>> Acesso em: 10 de novembro.2018. 

DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Código Penal Comentado. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 

DIAS, Maria Berenice. Casamento ou Terrorismo Sexual In: www.ajuris.org.br (21/09/02). 

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 

ESPÍNOLA, Eduardo. A família no direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Gazeta Jurídica, 1954 

FREYRE, Gilberto. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: sobrados e mucambos. v. 1- 2. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora/ME, 1977. 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. Vol. I. Niterói: Impetus, 12ª. ed., 2010,466 p. 

GALATI, Ana Macedo. Entrevista técnica pessoal com a psicóloga. 

HEISE L, Pitanguy J, Germain A. Violencia contra la mujer: la carga oculta sobre la salud. Washington

DC: Organización Panamericana de la Salud/ Organización Mundial de la Salud; 1994. 

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense,1959,v.8 

JIMÉNEZ, Emiliano, Código penal interpretado, São Paulo: Atlas, 2012. 

LIRA, Mônica da Silva, SILVA João Roberto de Souza. As marcas do amor, análise da violência de gênero, www.psicologia.pt , 2016. 

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012 

MACHADO LZ 2001. Masculinidades e violências. Gênero e mal-estar na sociedade contemporânea. Série Antropológica. UNB, Brasília. (Mimeo). 

MACHADO LZ, 2015. A Cidade do Medo. Série Antropológica. UNB, Brasília. 

MACHADO LZ, 2010. Feminismo em Movimento, Série Antropológica. UNB, Brasília. 

MELLO, MARÍLIA MONTENEGRO PESSOA DE. O que pensam as juízas e os juízes sobre a aplicação da Lei Maria da Penha: um princípio de diálogo com a magistratura de sete capitais brasileiras. Revista Brasileira de Políticas Públicas, UniCEUB, vol. 8, nº1, 2018 

MIRABETE, Júlio Falbrini. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. MIRABETE, Júlio Falbrini.

Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2001. v.2 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 26ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.v.3. 

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos