RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o fenômeno sobre o tema 717 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo, analisando seus precedentes e fundamentos, com base na doutrina, jurisprudência e texto de lei.
Palavras-chaves: Direito; Recurso Repetitivo, Superior Tribunal de Justiça.
INTRODUÇÃO
O tema em análise, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo, traz entendimentos e posicionamentos sobre a competência do Ministério Público envolvendo a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, o qual não se tratava de uma demanda sazonal e que não havia ainda encontrado um entendimento uniforme no STJ, necessitando de uma pacificação da jurisprudência da referida Corte.
Em um primeiro tópico foi feita uma análise geral sobre o tema repetitivo e a tese que foi firmada pelo STJ. No segundo tópico, foram levantados os precedentes e fundamentos utilizados para a pacificação da jurisprudência, destacando-se a ratio decidendi usada para encontrar o entendimento uniforme no STJ. Ao final, foi feita uma reflexão acerca da tese firmada pela referida Corte.
SOBRE O TEMA REPETITIVO
Trata-se do tema repetitivo 717, do Superior Tribunal de Justiça, o qual versa sobre a questão da legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ações de alimentos em benefício de crianças e adolescentes, mesmo quando estes se encontrarem sob o poder familiar de um dos pais. Analisado tal questionamento com base nas atribuições do Ministério Público em relação aos artigos 201, inciso III, e 98, inciso II, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A tese firmada pela Corte estabelece que o Ministério Público possui legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente.
Além do mais, o entendimento firmado estabelece que essa legitimidade ministerial independe do exercício do poder familiar dos pais, ou de o infante se encontrar nas situações de risco estabelecidas no artigo 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou ainda de quaisquer outros questionamentos sobre a existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca. Esse posicionamento acerca do tema originou também a súmula número 594 do STJ, com o mesmo teor da descrição acima.
PRECEDENTES E FUNDAMENTOS
Em primeiro lugar, é importante observar que de acordo com o artigo 127, caput, da Constituição Federal, o Ministério Público foi incluído nas funções essenciais à justiça, incumbindo-lhe a defesa da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (GONÇALVES, 2017).
Dessa forma, as ações que versam sobre tais interesses estão no âmbito direto de atribuição do Ministério Público. Não há necessidade de lei que o autorize, porque a atribuição decorre diretamente da Constituição Federal (GONÇALVES, 2017, p. 281).
Além disso, com base no julgamento do Recurso Especial nº 1.327.471/MT o ministro Luís Felipe Salomão, relator do referido recurso, entende haver três correntes no âmbito das Turmas de Direito Privado do STJ, sobre o tema da legitimidade do Ministério Público em análise. Sobre essas correntes, uma reconhece a legitimidade ativa do Ministério Público para a ação de alimentos em benefício de criança ou adolescente, uma outra se posiciona pelo afastamento dessa legitimidade, e uma terceira entende haver essa legitimidade, porém impondo-lhe certas condições.
Diante disso, tendo como embasamento e precedente o julgamento do Recurso Especial nº 1.327.471/MT, foram feitas as seguintes análises, sendo todas as teses descritas abaixo (a), (b) e (c) baseadas nos fundamentos do voto do ministro Luís Felipe Salomão:
(a) Segundo a corrente que reconhece a legitimidade do Ministério Público, e na qual foi baseada a tese firmada no tema repetitivo 717, tem-se a questão voltada para os interesses que estão envolvidos, defendendo o entendimento que o artigo 201, inciso III do ECA não restringe a atuação do Ministério Público somente às hipóteses do artigo 98 do mesmo Estatuto.
Por ser uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, a Constituição Federal, nos incisos I a IX do seu artigo 129, enumerou de forma exemplificativa, as funções institucionais mínimas do Ministério Público.
Importante observar que o inciso IX do referido artigo 129 traz uma cláusula de abertura, permitindo que a legislação infraconstitucional discipline as funções institucionais do Ministério Público, apenas podendo incrementar suas atribuições constitucionais, ampliando, assim, seu campo de atuação. Nunca permitindo subtrair ou criar embaraços às suas atribuições e incumbências centrais já existentes na própria Constituição Federal.
Além do mais, vale observar que pelo artigo 227 do texto constitucional, consagra-se que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)
Diante disso, pela letra da própria Constituição Federal é possível concluir que esses deveres elencados transcendem a pessoa da família do infante, sendo atribuídos também à sociedade e ao Estado, devendo ambos garantir às crianças e adolescentes o direito à vida, saúde e alimentação, com absoluta prioridade. Dessa afirmação, extrai-se o caráter de interesse público e indisponível que é envolvido nas ações que tutelam os direitos de crianças e adolescentes, sendo a ação de alimentos um exemplo desse tipo proteção dos infantes.
Dessa forma, a ratio decidendi que se pode extrair do julgamento do Recurso Especial nº 1.327.471/MT estabelece que a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, principalmente no que diz respeito à sua subsistência e integridade, como na ação de alimentos, constitui legítimo interesse indisponível, inserindo-se, assim, nas atribuições centrais do Ministério Público, sendo o órgão que recebeu a incumbência constitucional de defender os interesses individuais indisponíveis, pelo 127, caput, da Constituição Federal, estando, desse modo, o Parquet legitimado para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente. Este é o entendimento firmado pelo STJ.
No mesmo sentido, a doutrina esclarece que "versando a demanda sobre alimentos, é incontroversa a indisponibilidade do direito em debate, dizendo respeito à própria dignidade humana e o direito à vida digna. Nesse sentido, Robson Renaut Godinho esclarece que a legitimidade ministerial para os alimentos decorre, em última análise, da tutela do próprio "direito à vida, por meio de uma ação judicial que visa a garantir o mínimo existencial necessário para o substituído, estando presente, assim, a nota da indisponibilidade. Também Pinto Ferreira assevera que a obrigação alimentícia "funda-se na própria existência da família, daí a indisponibilidade do direito". [...] Portanto, uma eventual decisão judicial que venha a negar a legitimidade do Ministério Público para estar em juízo pleiteando alimentos em prol de uma criança ou adolescente, estará em rota de colisão com o texto constitucional (CF, arts. 127 e 227), bem como com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente." (FARIAS, 2013, p. 685-691 apud BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.327.471/MT. Quarta Turma. Relator Ministro Luís Felipe Salomão. Data de Julgamento: 14/05/2014, Data de Publicação: DJe 04/09/2014STJ, p. 13)
(b) Agora, com relação a corrente que defende o afastamento da legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da ação de alimentos, tem-se o entendimento que a competência do Parquet para promover e acompanhar as referidas ações, estabelecida pelo artigo 201, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente, só seria possível diante das situações em que há falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, conforme preceitua o artigo 98, inciso II, do ECA. Nesse sentido, conforme o seguinte precedente que destaca:
PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE ALIMENTOS - MINISTÉRIO PÚBLICO REPRESENTANDO MENOR DE IDADE SOB O "PÁTRIO PODER" DA GENITORA - ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM - ART. 201, III, DA LEI Nº 8.069/90 - INAPLICABILIDADE. 1 - Esta Corte Superior de Uniformização já firmou entendimento no sentido de que o Ministério Público não tem legitimidade para propor, como substituto processual, ação de alimentos em benefício de menor de idade sob o "pátrio poder" da genitora. Ademais, o art. 201, III, da Lei nº 8.069/90 só é aplicado nas hipóteses em que há falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, de acordo com o art. 98, II, do mesmo diploma legal. 2 - Precedentes (REsp nºs 89.661/MG, 127.725/MG e 102.039/MG). 3 - Recurso não conhecido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 659.498/PR. Quarta Turma. Relator Ministro Jorge Scartezzini. Data de julgamento: 14/12/2004. Data de Publicação: DJe 14/02/2005)
(c) Pela terceira corrente, é possível identificar ainda, no corpo de certos julgados, a imposição de uma condição para que haja a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento da ação de alimentos, ou seja, desde que não haja Defensoria Pública instalada na comarca ou que o serviço prestado seja ineficaz. Nesse sentido, conforme o seguinte precedente que destaca:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. ARTIGO ANALISADO: 201, III, ECA. 1. Ação de execução de alimentos ajuizada em 13/04/2005, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 02/09/2011. 2. Discute-se a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação/execução de alimentos em benefício de criança/adolescente cujo poder familiar é exercido regularmente pelo genitor e representante legal. 3. O Ministério Público tem legitimidade para a propositura de execução de alimentos em favor de criança ou adolescente, nos termos do art. 201, III, do ECA, dado o caráter indisponível do direito à alimentação. 4. É socialmente relevante e legítima a substituição processual extraordinária do Ministério Público, na defesa dos economicamente pobres, também em virtude da precária ou inexistente assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública. 5. Recurso especial provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.269.299/BA. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 15/10/2013. Data de Publicação: DJe 21/10/2013)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, concordo com o precedente firmado pelo STJ, no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade para ajuizar a ação de alimentos em benefício de criança ou adolescente e que essa competência não se restringe somente às hipóteses do artigo 98 do ECA ou dependa da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca.
Além de estarmos diante da competência constitucional do Ministério Público, e tratando também da questão de o direito à alimentação ser indispensável para a subsistência e integridade de todo e qualquer infante, constituindo, dessa forma, um interesse público indisponível, estando dentro das atribuições centrais do Ministério Público conferido pela própria Constituição Federal em seu artigo 127. A legitimidade do Parquet para ajuizar a ação de alimentos constitui também uma maneira de atender ao princípio do interesse superior da criança, também consagrado como postulado normativo, previsto no artigo 100, parágrafo único, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual os direitos das crianças e adolescentes devem ser ampliados, expandindo-os para serem efetivados da melhor forma possível, e nunca para restringi-los.
Ao permitir a legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação de alimentos estamos realizando essa amplificação estabelecida pelo princípio descrito acima. Caso contrário, se essa não fosse a tese firmada, estaríamos diante de um retrocesso, uma subtração da efetividade dos direitos dos infantes, ao permitir a atuação do Parquet somente diante das situações em que há falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, ou relacionado com a existência ou eficiência da Defensoria Pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 20 jun. 2020.
________. Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 20 jun. 2020.
_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 659.498/PR. Quarta Turma. Relator Ministro Jorge Scartezzini. Data de julgamento: 14/12/2004, Data de Publicação: DJe 14/02/2005. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7235449/recurso-especial-resp-659498-pr-2004-0083617-2/inteiro-teor-12992310> Acesso em: 20 jun. 2020.
_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.269.299/BA. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 15/10/2013. Data de Publicação: DJe 21/10/2013. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24517141/recurso-especial-resp-1269299-ba-2011-0183244-4-stj/inteiro-teor-24517142?ref=juris-tabs> Acesso em: 20 jun. 2020.
_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.327.471/MT. Quarta Turma. Relator Ministro Luís Felipe Salomão. Data de Julgamento: 14/05/2014, Data de Publicação: DJe 04/09/2014. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1320595&num_registro=201101762880&data=20140904&formato=PDF> Acesso em: 20 jun. 2020.
_______. Superior Tribunal de Justiça. Tema repetitivo 717. Segunda Seção. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=717&cod_tema_final=717> Acesso em: 20 jun. 2020.
FARIAS, Cristiano Chaves de. A legitimidade do Ministério Público para a ação de alimentos: uma conclusão constitucional. In. Temas atuais do Ministério Público. 4 ed. Cristiano Chaves de Farias [et. al] (Coord.). Salvador: Editora Juspodivm, 2013, p. 685-691 apud BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.327.471/MT. Quarta Turma. Relator Ministro Luís Felipe Salomão. Data de Julgamento: 14/05/2014, Data de Publicação: DJe 04/09/2014STJ, p. 13.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado/ Marcus Vinicius Rios Gonçalves. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.