No apêndice de seu livro A Imaginação Sociológica intitulado O Artesanato Intelectual, o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills trata basicamente do ofício do cientista social. Contudo, mais do que apontamentos de um manual ou uma exposição a respeito de teorias e métodos usados na elaboração de uma pesquisa específica, o autor expõe informações que considera importantes em relação a modos de um cientista social trabalhar, através de um relato pessoal, como ele mesmo diz, escrito com a esperança de que outros, especialmente os que iniciam seu trabalho independente, o tornarão menos pessoal (MILLS, 1969: 211) por usarem suas dicas em suas próprias experiências. O texto do início ao fim contém lições fundamentais que podem ser aprendidas por profissionais de outros campos das Ciências Sociais aplicadas, como o Direito.
Wright Mills começa abordando a maneira como intelectuais admiráveis não separam seu trabalho de suas vidas, por encararem ambas a sério e quererem usar uma experiência para enriquecimento da outra. Nesse sentido, temos uma primeira lição: a erudição é uma escolha de viver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira (...). Isso significa que [o trabalhador intelectual] deve aprender a usar a experiência de sua vida no seu trabalho continuamente (Ibid., 212), sabendo como controlar a influência de uma dimensão (vida e trabalho) sobre a outra. Nesse sentido, uma segunda lição: deve-se organizar um arquivo (...). Muitos escritores criadores mantêm diários: a necessidade de reflexão sistemática exige que o sociólogo o mantenha (Ibidem).
Nesse arquivo, serão unidas experiência pessoal e reflexões sobre trabalhos intelectuais, isto é, atividades profissionais. Esta lição, desencadeada pela primeira apontada acima, é fundamental, pois é daí que o texto parte procurando apontar o quanto aprendemos ao manter o nosso mundo interior desperto ao desenvolver hábitos de auto-reflexão e manter um arquivo adequado.
Outra lição que decorre da importante recomendação de se manter um arquivo é o de formular o hábito de escrever, desenvolver a capacidade de expressão, não deixando para escrever só com o objetivo de apresentar um projeto (ou, no caso do Direito, uma peça jurídica), mas ter idéias e planos escritos para os arquivos, e talvez debate com os amigos. O arquivo deve ter idéias, notas pessoais, excertos de livros, itens bibliográficos e delineamentos de projetos (Ibid., 214-215) e estarem dispostos de acordo com vários projetos, cujos sub-projetos se modificam de ano para ano.
Wright Mills dá o exemplo de como procedeu e o quanto estas concepções contribuíram com seu trabalho, quando resolveu elaborar um estudo sobre a elite, recorrendo a notas, rascunhos, experiências de sua vida, resíduos de fatos e idéias sobre classes superiores. Indica que a idéia e o plano saíram de seus arquivos e posteriormente todo o conjunto de problemas em questão passou a dominá-lo. Por isso, apresenta a importância da imaginação que, segundo o autor, reúne itens que estavam isolados, descobrindo ligações insuspeitas (Ibid., 217). Mills também aponta a importância de se cercar de pessoas que ouvem e falam, por diversos motivos, sobre o tema.
À medida que Wright Mills expõe o quanto um bom trabalho em ciência social se compõe de muitos estudos bons, de esboços feitos com a ajuda de material previamente existente que contribui com a localização de afirmações e sugestões que se pretende realizar e planejar pesquisas para confirmá-las, levando também em conta as teorias existentes que envolvem o problema, o autor fornece a maior lição: ler é importante, mas é uma tolice imaginar um campo de estudo se a resposta puder ser encontrada numa biblioteca (Ibid., 221), da mesma forma que é uma tolice pensar que exaurimos os livros antes de tê-los traduzidos em termos empíricos adequados.
O autor aponta ainda a importância do raciocínio para se resolver o maior número dos aspectos de um problema, isolando questões e permitindo gerar-se indagações cujas respostas prometem nos ajudar a resolver novos problemas. E Wright Mills aponta quatro estágios que devemos atravessar para dominar problemas: a) reunir elementos e definições que acreditamos ter de levar em conta em função do conhecimento geral do tópico em questão, b) relações lógicas entre essas definições e elementos, c) eliminação de falsas opiniões, devido a omissões, definições impróprias ou ênfase indevida a alguma parte do processo e d) formulação e reformulação das questões que de fato perdurem. Além disso, a leitura de material bibliográfico durante a análise das teorias e manuseio dos arquivos, permite que se organize a pesquisa, abandonando e enfatizando umas e outras idéias.
Podemos dizer que a contribuição do livro A Imaginação Sociológica por inteiro possui uma lição central, que é fundamental também para profissionais do Direito, que é a recomendação do uso da imaginação sociológica, esta qualidade especial que distingue o cientista social do simples técnico (Ibid., 228), e aqui distinguirá um jurista com imaginação sociológica de um mero operador do Direito, cuja essência é a capacidade de combinação de ideias que não se supunha que se pudesse combinar, no exemplo de Mills, uma mistura de idéias da Filosofia alemã e da Economia inglesa (Ibidem), mistura realizada pelo jurista alemão Karl Marx (1818-1883).
Portanto, às formas definidas de se estimular esta imaginação sociológica correspondem outras grandes lições de Mills que servem aos profissionais do Direito:
a) convidar a imaginação ao mexer com arquivos, misturando seus conteúdos e os dispondo de nova forma;
b) controlar as palavras com as quais se deparara, conhecendo seus sentidos mais claros;
c) desenvolver o hábito da classificação cruzada, estabelecendo tipos e procurando suas condições para imaginar e obter novos tipos;
d) pensar o oposto daquilo que nos preocupa, no exemplo de Mills, se estudamos o avarento, lembremo-nos do perdulário, pois ao contrastarmos vários objetos, teremos melhor percepção a respeito do nosso próprio objeto de estudo (assim, vários pontos de vista devem ser usados, ao nos perguntarmos como um especialista em outra área lidaria com o assunto, e assim deixamos que nossa mente se transforme num prisma móvel, colhendo luz de vários ângulos quanto possível, segundo Mills);
e) na classificação cruzada, trabalhar primeiro em termos de sim-ou-não, pensando em extremos opostos;
f) buscar obter uma percepção comparada, seja na nossa estrutura social e mesmo período histórico ou em outros e
g) preocuparmo-nos com a forma pela qual apresentamos o trabalho (saber distinguir tópicos de temas).
Além disso, os trabalhos devem ser apresentados em linguagem clara e simples o máximo possível superando prosa e pose acadêmicas, pretendendo obter atenção dos leitores, nos perguntando, entre outras questões, para quem procuramos escrever, explicando apenas que descobrimos algo sobre o qual estamos falando. Também não seguir o exemplo de impessoalidade dos textos das cartas comerciais extremamente impessoais. Para tanto, pensar no público.
Em resumo, Mills aborda nesse apêndice basicamente a importância de se manter um arquivo e de se estimular a imaginação sociológica, ao tratar de modos sugeridos para o ofício do cientista social, partindo de sua própria experiência. O estímulo à imaginação sociológica é uma lição fundamental aos profissionais de quaisquer áreas, entre as quais o Direito.
Para finalizar, conforme o próprio autor define nas últimas páginas deste apêndice de seu livro, indicamos a seguir sete procedimentos que Wright Mills recomenda aos cientistas sociais, que podem ser importantes lições aos juristas:
a) buscar a imaginação sociológica evitando o fetichismo do método e da técnica;
b) evitar verborragia e buscar a clareza e a simplicidade nas afirmações;
c) fazer construções trans-históricas;
d) estudar as estruturas sociais nas quais os ambientes estudados estão inseridos;
e) especializar variadamente nosso trabalho segundo o tópico e segundo o problema, sem nos encerrarmos em jargão estéril nem fetiche da especialização, sabendo que nosso objetivo é entender estruturas sociais e podemos usar qualquer estudo das áreas de humanas;
f) desenvolver nossas opiniões sobre as variedades de individualidade e
g) orientar nosso trabalho para compreender estrutura, tendências e sentido de nosso período histórico e social.
Referência bibliográfica
MILLS, Charles Wright. A Imaginação Sociológica Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969