A reconstrução das memórias da (ex) cidade do sexo

03/01/2023 às 20:46

Resumo:


  • O pesquisador visitou a cidade de Três Rios-RJ para estudar a prostituição e descreveu a rua da zona, local onde o trabalho sexual é realizado, observando as mudanças físicas e sociais ao longo do tempo.

  • Em conversa com o taxista Sr. L., o pesquisador aprendeu sobre o passado histórico da cidade como um ponto de referência para bordéis e turismo sexual, que contrasta fortemente com a realidade atual da rua.

  • O relato destaca a resistência à mudança, a memória coletiva dos tempos áureos e como as gerações mais velhas transmitem suas percepções do passado para as novas gerações, criando uma narrativa de declínio e nostalgia.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

            Nas andanças para colheita de material para minha pesquisa sobre prostituição, em certo dia do mês de março de 2022, optei por ir à cidade de Três Rios-RJ, em uma rua da cidade, que é reduto do trabalho sexual.

            Muito conhecida na região, a rua da zona, fica no trecho de uma rua localizada atrás da rodoviária da cidade. Na entrada da rua e em seu seguimento, de aproximadamente 600 ou 700 metros, há alguns poucos comércios, todos referentes ao ramo automotivo, sendo lojas de peças, acessórios e similares, e um único bar, situado logo na entrada da rua.

            No trecho inicial há casas de padrão médio a baixo, até o ponto em que há uma curva relativamente acentuada, de tal forma que só é possível ver o que há em seu segmento após transpassá-la.

            No dito dia, preferi ir até o centro de Três Rios, deixar meu carro, e ir até a rua de táxi, para fazer um reconhecimento do local, uma prévia observação de como a rua está disposta. Ao entrar no táxi e dar meu destino ao motorista, engatamos em uma conversa, onde descrevi meus objetivos científicos de forma sucinta e me surpreendi com o seguimento da conversa com o Sr. L., motorista de 68 anos, que trabalha no táxi da cidade há mais de 40 anos, e que trouxe valorosas informações e percepções sobre aquele lugar e a relação das pessoas com ele.

            Em nossa conversa, L. me contou que em um tempo passado, inimaginável para as pessoas que hoje passam pela rua da zona, cujo nome oficial é Avenida do Contorno, a cidade de Três Rios-RJ já foi referência em bordéis no final da década de 40, já que havia se transformado um importante entroncamento rodoferroviário, por sua privilegiada estação, de parada obrigatória do poder que circulava pelo eixo Rio-São Paulo-Minas, da chamada política café-com-leite.

            Nesse contexto, a cidade de Petrópolis-RJ resistia em receber bordéis por imposição da realeza e Juiz de Fora, tradicionalíssimo reduto da família mineira, preferia exportar suas mulheres. Assim, turismo sexual se impôs e acabou sendo a primeira grande atração da cidade.

            O início da zona de meretrício que hoje ainda existe na cidade está localizada  após uma curva acentuada, onde há um espaço para festas, desde aniversários, confraternizações e casamentos, e ao chegar-se ao fim da curva, a sensação é de ter ultrapassado uma fronteira, à frente vários bares de ambos os lados da rua, vários carros estacionados, muitas mulheres caminhando pela rua e observando atentamente os carros que passam, buscando possíveis clientes, algumas vestidas com roupas chamativas e outras somente com lingerie.

            As imagens contrastam com os relatos fornecidos por L. que indicam que, no período entre 1945 e 1958, a cidade possuía nada menos de 8 casas noturnas, iluminadas por uma enigmática luz vermelha, e eram disputadas por clientes de toda a região.

            Havia o glamour daquela época, mulheres de vestidos longos, de tafetá, de rabos-de-peixe, muito usados, que reinavam nas noites trirrienses, despertando desejos de empresários conhecidos, tradicionais chefes-de-família locais, que deixavam seus lares para viverem noites de luxúria e prazer. Alguns dos poderosos pediam para fechar os cabarés para ficarem, tal como os califas de Bagdá, com todas elas por sua conta. Dançavam tango cruzado, bebiam Cuba-libre com muito limão, e não raro, se apaixonavam por algumas delas a ponto de adquirir sua exclusividade abrindo um novo bordel, todo decorado, para sua amada.

            Todo esse glamour deu lugar a uma realidade muito diferente com o declínio da exploração do transporte sobre trilhos. A esquina do Brasil, conforme a cidade foi apelidada pelo então presidente Juscelino Kubitschek, foi deixando de ser uma referência do trabalho sexual e foi adquirindo nova identidade, o que afetou, por óbvio, a conhecida rua da zona ou Avenida do Contorno.

            Hoje, muitos homens ficam dentro e nas portas dos bares localizados na rua, ou encostados nos carros estacionados jogando conversa fora, negociando com as mulheres ou mesmo só bebendo e observando. Um público muito distante de ser renome social ou figuras de poder político dentro da cidade. A Avenida do Contorno, naquele específico trecho, se tornou um reduto de trabalhadores de classes econômicas baixa a média-baixa.

            O Sr. L. comenta com certa tristeza as mudanças que ocorreram na rua, o modo com as pessoas se comportam, as músicas que tocam e, principalmente, as mudanças na paisagem da rua. Nesse momento, a reação do meu interlocutor, remeteu-me às lições de Halbwachs (1990), onde as expressões de L., junto com sua forma de falar, mostravam a quebra entre a memória do que para ele eram tempos áureos daquela rua, e de sua juventude, associados a paisagem e ao estado das construções que não mais existem o que, se ainda existiam, apresentavam-se deterioradas ou muito modificadas. Foi então que foi possível notar a resistência que permanece ao longo dos anos, especialmente nas cidades pequenas, mencionadas pelo autor:

 

Os hábitos locais resistem às forças que tendem a transformá-los, e essa resistência permite perceber melhor até que ponto, em tais grupos, a memória coletiva tem seu ponto de apoio sobre as imagens espaciais. (HALBWACHS, 1990)

 

            Continuando a passar calmamente pela rua, do lado direito, há três bares, o primeiro possui dormitórios nos fundos, onde algumas das prostitutas trabalham, mas também dormem, e pagam aluguel fixo por isso; o segundo bar tem um espaço um pouco mais amplo, sem possuir nada nos fundos, seguindo-se por uma área vazia onde carros estacionam e, por fim, um terceiro bar um pouco mais humilde, cuja pequena área disponível aos clientes é uma varanda feita de bambus, após um grande trecho livre para carros estacionarem, tudo muito distante do nível alto por meu interlocutor.

            Do lado esquerdo da rua, temos seis bares, o primeiro deles bem pequeno, uma espécie de trailer, onde se sentam, no máximo, duas pessoas, seguindo há um maior bar da rua, que possui uma entrada relativamente estreita, toda de azulejos brancos bem envelhecidos, onde várias mulheres ficam sentadas e de pé, olhando para todos os homens que entram, esperando um chamado ou mesmo correspondência de olhares como um indicativo de que uma conversa inicial para um possível programa pode ser iniciada. Ao entrar, um salão relativamente amplo, com um balcão à frente, três mesas de plástico com cadeiras no salão e, a sua esquerda, dois banheiros e uma jukebox. Esse bar possui vários quartos em seu segundo andar, que são alugados para as prostitutas fazerem seus programas, o valor pago é por programa realizado; seguindo, o bar vizinho é o segundo maior, possui um pequeno lance de escadas, que dá acesso a uma varanda acima do nível da rua, onde algumas das mulheres observam quem entra no bar, mas também os carros que passam em frente a ele.

            Se conseguirmos imaginar os detalhes descritos por meu interlocutor, podemos construir uma espécie de Moulin Rouge em nossas mentes, que mais uma vez contrastará com a realidade atual: os longos vestidos deram lugar a lingeries mínimas e a captação de clientes que ocorria somente dentro dos cabarés, agora ganha o asfalto da rua da zona, e é interessante como esse choque de realidade parece ter sido o principal agente para o afastamento do Sr. L. daquela rua, que já parecia não mais remeter a seus tempos áureos de juventude, diferente de outros bares que ainda existiam na cidade e que ele se orgulhou em dizer que frequentava desde de seus vinte e poucos anos. Mais do que a resistência à mudança da paisagem, descrita por Halbwachs, as pessoas mais antigas da cidade parecem ter desenvolvido uma forma de desviar do contraste, simplesmente ignorando aquela rua, deixando de frequentá-la, e fazendo uma propaganda negativa em comparação com o passado, a fim de transmitir essa sensação de resistência para as novas gerações.

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            Seguindo a esquerda da rua, na sequência, há um trailer pequeno, seguido por uma casa, onde há várias mulheres hospedadas e, na sequência, mais dois bares pequenos, até o ponto onde há mais uma curva e uma decida, com um matagal em ambos os lados da rua, acabando a descida fica um último estabelecimento, com aspecto velho, de estrutura e acabamentos totalmente deteriorados, seu salão é pouco iluminado, de forma que quem olha da rua não consegue ver o que há lá dentro. Esse trecho da rua é, inclusive, pouco iluminado, e é nessa parte da rua onde ficam a imensa maioria das travestis.

            Na sequência há mais uma curva acentuada, onde se localiza uma espécie de ferro-velho do lado direito e, saindo da curva, a sequência da rua, com diversas casas humildes, que vai sair em uma avenida principal.

            Essa estrutura de localização dos trechos da rua parece ter sido estrategicamente pensada, pois as curvas fechadas, em ambas as extremidades, dão a ideia de separação do mundo exterior, criando um território onde tudo é permitido do ponto de vista sexual, a construção da atmosfera de ingresso no local proibido parece ser um fator fundamental para a libido.

            Observa-se que, a parte da rua onde fica o estabelecimento descrito por último fica numa espécie de subfronteira dentro desse território, já que fica localizada também entre dois pontos onde não é possível ver o restante da rua sem que se tenha que passar por uma das curvas fechadas, o que não permitirá a visão do local anterior onde se estava.

            Nessa rua, estão presentes homens de diversas cidades da região, que são muito próximas, como Areal, Comendador Levy Gasparian, Paraíba do Sul e Sapucaia.. Há uma certa cumplicidade entre esses homens, que, por morarem em cidades de portes razoáveis a pequenos, muitas vezes se conhecem, ainda que só de vista, mas não se sentem ameaçados à exposição pública, apesar disso. Andam livremente sem qualquer pudor ou tentativa de disfarçar-se. Esse talvez seja o único ponto em comum entre os tempos gloriosos em que a esquina do Brasil poderia muito bem ter se chamado esquina sexual do Brasil.

            Hoje funks e pagodes tocam em alto volume, de forma desencontrada, nos dois maiores bares da rua, ambos possuidores de jukebox, as mulheres pedem trocados aos homens para colocar músicas a todo tempo, sendo raro ver um homem escolhendo músicas nessas máquinas, o que provoca mais reações críticas do Sr. L.

            Ao ir embora no último dia me chamou atenção uma cena específica, no trailer que fica entre os dois bares maiores um homem amarrou um burrinho e tomava sua cerveja de forma sossegada, despertando um misto de ironia e revolta em meu interlocutor, que afirmava a contradição até dos meios de transporte utilizados pelas pessoas que frequentavam a rua no passado e no presente.

 

Conclusão

            Ao longo das observações, em um contexto do diálogo com o Sr. L., é possível notar, sensivelmente, como a resistência a significativas mudanças na paisagem são mais do que concepções isoladas que permanecem nos indivíduos por pouco tempo.

            Foi possível notar que a reprovação à certa mudança pode permanecer por décadas, com um confronto da antiga paisagem, viva na memória, e a nova paisagem, sendo inclusive transmitida das pessoas mais velhas para as mais novas que, devido ao decurso dos anos, não tiveram a oportunidade de conhecer a imagem anterior de um determinado local.

 

Referências Bibliográficas

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva e o espaço [capítulo]. In: _____. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura, Um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001

MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril S.A. Cultural. 1978.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In NUNES, Edson de Oliveira. A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978.


Sobre o autor
Manuel Flavio Saiol Pacheco

Pesquisador, Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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