Uma análise da vinculação dos precedentes e a aproximação do sistema civil law brasileiro ao sistema common law anglo-saxônico

10/01/2023 às 12:29
Leia nesta página:

Djeymes Amélio de Souza Bazzi[1]

  1. Introdução

Observa-se uma nítida aproximação do sistema civil law brasileiro aos institutos sistemáticos do common law, principalmente pela criação do sistema de precedentes judiciais vinculantes dentro da sistemática processual brasileira. Essa miscigenação é aceitável em sistemas mistos, como se parece caminhar o sistema brasileiro, devido a elevação das decisões como uma fonte do direito, embora não conste, expressamente, no rol das fontes subsidiárias aquelas que são utilizadas em caso de lacuna legislativa, expostos no art. 4º do Decreto-Lei 4.657/42[2] , até a presente data.

Apesar da omissão na legislação quanto aos precedentes, é conhecido sua importância para o ordenamento jurídico pátrio, basta olhar o efeito vinculante das decisões em controle abstrato de constitucionalidade e em recursos extraordinário e especial repetitivos.

Fato é que a aproximação entre as modalidades dos direitos ocidentais (common law e civil law) não ocorre de pouco tempo. Essa mistura, remete-se, efetivamente, aos tempos de Rui Barbosa, quando adotado na Constituição Republicana de 1891 o controle incidental de constitucionalidade (judicial review).[3] Pode-se identificar, portanto, a gênese da influência anglo-saxônica no ordenamento jurídico pátrio, com a Constituição de 1891. Posteriormente, na vigência da Emenda Constitucional n. 16/65 a definição do efeito vinculante (erga omnes) quanto a introdução do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, que à época, havia como único legitimado ativo o Procurador-Geral da República, permanecendo nas Constituições posteriores (1967 e 1969), e em nossa atual (1988), apenas houve o aumento do rol dos legitimados.

Seguindo a linha de evolução histórica, se observa a introdução da Ação Declaratória de Preceito Fundamental, dada pela vigência da Lei 9.882/99, possuindo caráter vinculante e eficácia erga omnes. Ainda, na reforma ocorrida, posteriormente, foi introduzido a sistemática dos recursos repetitivos e de repercussão geral, tais elementos foram incorporados com a finalidade de ampliar a vinculação dos juízos com os tribunais superiores.

  1. Aproximação entre os sistemas e suas características

Cria-se, ainda, na conhecida reforma do judiciário em 2004[4], a súmula vinculante. Tal evolução não cessou, essa tendência surtiu efeito na elaboração do Código de Processo Civil de 2015, coadunando com a aproximação dos sistemas common law e civil law.

Acontece que antes do CPC/15, a implementação desses institutos, antes visto em sistemas alienígenas, ocorria de forma gradual. A elaboração e publicação do, até então, Novo Código Processual, veio no sentido de sedimentar a incorporação dos precedentes elevando-os ao status de fonte do direito.

Observa-se a consolidação nas alterações ocorridas no CPC/15 como por exemplo, i. necessidade de realização de audiências preliminares (conciliação e mediação)[5], ii. maior pró-atividade dos advogados ao poder interrogar as testemunhas diretamente[6], iii. a opção de as partes poderem convencionar sobre prazos peremptórios nos negócios jurídicos os quais estejam inseridos[7], iv. a liberdade para que as partes escolham mediadores ou peritos[8], v. realizar limitações as questões objeto da cognição[9], vi. havendo, ainda, a cláusula geral de convenções processuais[10]. Essa maior liberdade atribuída as partes é demasiadamente conhecida no sistema common law.

Busca-se como efeito positivo dessa aproximação dos sistemas, não somente, mas principalmente, a isonomia e segurança jurídica. Essa busca não é sem propósito, basta observar o Preâmbulo da Constituição Federal, de 1988, sobre a igualdade como um dos valores supremos "de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos", reafirmando o já exarado no art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de que "os homens nascem e são livres e iguais em direitos". Entende-se que tal isonomia se norteia na maior liberdade negocial/processual dada as partes para buscar soluções de seus conflitos.

Dessarte, além dessa maior autonomia para com as partes, a isonomia vincula as decisões judiciais, ou seja, essa busca de igualdade atrelada ao judiciário se norteia para que decisões judiciais tenham o potencial de dar a mesma resposta para casos diferentes, porém com similitude de seus objetos.

Isso transmite uma certa previsibilidade do comportamento dos tribunais. Essa uniformização dos julgados devido ao respeito aos precedentes gera como consequência, a consagração da segurança jurídica[11].

Dessa forma, segundo Regina Helena Costa, decidir de forma uniforme proporciona estabilidade, irretroatividade e uniformidade. Pois seria muito difícil o "desenvolvimento da sociedade que não esteja ancorado num quadro institucional baseado em regras estáveis e legítimas, que propiciem segurança jurídica e recebem aceitabilidade social".[12]

Assim, a busca da uniformização da jurisprudência para mantê-la estável, íntegra e coerente, é garantida pelo CPC/15[13], não deixando dúvidas acerca do papel dos Tribunais.

Em suma, a aproximação do ordenamento jurídico brasileiro do sistema anglo-saxônico (common law), se baseia em vários institutos dentre eles estão: o julgamento de improcedência sem a citação do réu, julgamento monocrático nos Tribunais, incidente de assunção de competência, incidente de resolução de demandas repetitivas e a suspensão de processos por afetação de recurso extraordinário ou especial repetitivos.

Diante disso , relaciona-se, brevemente, cada um desses institutos e sua relevância por respeito aos precedentes, veja-se que o julgamento de improcedência sem a citação do réu, tipificado no art. 332, do CPC/15, permite que o juiz, antes mesmo de citar o réu, possa julgar a improcedência do pedido, de forma liminar, desde que contrarie enunciados de súmulas do STF, do STJ; acórdão proferido pelo STF, STJ em julgamentos de recursos repetitivos; entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; além de súmula de Tribunal de Justiça sobre direito local. Portanto, observa-se a importância e a relevância concedida aos precedentes neste caso.

Nessa mesma linha, compete também ao desembargador decidir, de forma monocrática, os recursos que sejam contrários a súmulas do STF, STJ ou do próprio Tribunal, admitindo-os ou negando-os provimento.

Quando se fala em incidente de assunção de competência, o CPC/15[14] inovou ao trazer o tema, permitindo que fosse realizado tal recurso na hipótese de envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, mas que não possui múltiplos processos, ou seja, temas jurídicos que não são vistos com tanta frequência pelo judiciário. Ocorre, por exemplo, nos casos de ações coletivas. Sendo assim, após remetido a um colegiado maior, apenas será julgado caso seja reconhecido o interesse público na questão, como se observa no §3º do art. 947: "O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese".

Outra novidade trazida pelo CPC/15[15] foi o incidente de resolução de demandas repetitivas, sendo tal recurso cabível quando houver, de forma simultânea, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Para realizar o pedido são legitimados ativos o juiz relator, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Admitido o recurso pelo colegiado maior, os processos pendentes ficarão suspensos pelo prazo de 1 ano, aguardando julgamento do recurso. Uma vez decidido, a tese jurídica vinculará todos os processos individuais ou coletivos que possuir similitude de objeto, e mais, tornará vinculante aos casos futuros que envolvam a mesma questão de direito. Esse procedimento possui como escopo, também, a segurança jurídica.

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Consta ser possível a suspensão de todos os processos pendentes sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento de idêntica questão de direito[16], assim o atual CPC, utiliza-se da suspensão de processos por afetação de recursos extraordinário ou especial repetitivos, em nítida busca de uma uniformização entre os julgados, afastando as divergências jurisprudenciais, de forma que após julgado o mérito do recurso, a fixação da tese seja no STF ou no STJ vinculará todas as demandas.

Diante do até então explanado, é possível afirmar que o CPC/15, não representa um salto ou uma reforma abrupta de paradigma, "mas um passo naquele longo caminho trilhado em busca de uma interpretação uniforme das leis".[17]

De sorte se busca uma uniformização nos julgados a fim de alcançar uma isonomia e, por consequência, alcançar a segurança jurídica. A aplicação da respeitabilidade aos precedentes pelos juízos não é algo relativamente simples, pois todas as mudanças implicam em consequências. Há quem diga que a atribuição da vinculação das decisões entraria em conflito com a independência funcional do juiz, já que este estaria "obrigado" a seguir entendimento diferente de suas convicções.

Em posição contrária a essa vinculação dos precedentes, Nelson Nery Junior[18], em entrevista sobre a vigência do Novo Código de Processo Civil, disse que o "núcleo duro do novo CPC é inconstitucional" que o judiciário estaria ampliando demasiadamente sua competência ao ponto de legislar, em suas palavras:

Discutimos durante nove anos para chegar ao regramento que temos hoje na Constituição que diz quando o Supremo pode baixar uma súmula vinculante. Porque isso é tarefa legislativa, baixar um texto normativo vinculativo com eficácia geral e abstrata - isto é lei. Então para o Judiciário legislar, desculpe, precisa de autorização da Constituição. Aí vem o CPC com a mão do gato, de contrabando, bota algo na lei ordinária que deveria ter previsão constitucional.

  1. Conclusão

Não é sem razão que há inúmeros argumentos para a discussão sobre o tema, porém é inegável a ocorrência da aproximação entre os sistemas ocidentais. Observa-se que os precedentes vinculantes passaram a ter uma respeitabilidade maior pós EC.45/2004, vindo a ser ampliada e aperfeiçoada pelo CPC atual.

Embora possa caracterizar uma certa função atípica do judiciário ao olhar para o modelo originário da civil law, não podemos deixar de vislumbrar que a uniformização de decisões, de fato, traz uma sensação de segurança jurídica através da isonomia aplicada aos casos semelhantes.

De sorte, coadunamos com essa aproximação, onde torna a sistemática brasileira uma espécie de sistema misto. Essa elevação do status dos precedentes em ser fonte do direito caminha no mesmo sentido da valoração dos princípios gerais do direito que, em determinadas situações, se sobrepõe a Lei.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Brasília, DF. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>. Acesso em: 29 mai. 2022.

HASELOF, Fabíola Utzig. Jurisdições Mistas: Civil Law & Common law. Revista de Processo. Vol. 270/2017, p. 385-406. 2017.

MARTINS, Marcelo Guerra;GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa;MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Influência da common law na implantação dos precedentes judiciais vinculantes no brasil na era da sociedade da informação. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 13, n. 3, p. 1098-1133, dez. 2018. ISSN 1981-3694. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/31054 >. Acesso em: 29 mai. 2022. doi: http://dx.doi.org/10.5902/1981369431054.

JR, Fredie Didier. Precedentes / coordenadores, Fredie Didier Jr .... [et al.). - Salvador: juspodivm, 2015. 780 p. 91. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC, v. 3; coordenador geral, Fredie Didier Jr.)

Sobre o autor
Djeymes Amelio de Souza Bazzi

Advogado. Possui graduação em Direito pela Universidade de Cuiabá/MT. Mestre em Direito da Empresa e dos Negócios - UNISINOS/RS. Pós-graduado em Direito Processual - PUC/Minas. Pós-graduado em Prática Trabalhista Avançada com capacitação para o Ensino no Magistério pelo Instituto Damásio de Direito - IBMEC/SP. Pós-graduado em Direitos Humanos e Constitucional pelo Ius Gentium Conimbrigae/Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal Aplicados - Ebradi. Pós-graduando (MBA) em Direito Penal Econômico - Galícia Educação. Cofundador do escritório Bazzi Advogados. Site: www.bazziadvogados.com.br. E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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