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Possibilidade de autorização da eutanásia, frente a uma interpretação conforme a Constituição

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06/02/2023 às 18:59
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Até que ponto vale a pena manter a vida humana diante da ausência de dignidade de existir?

RESUMO: Este estudo ocupa-se sobre a possibilidade de legalização da eutanásia no Brasil partindo das premissas constitucionais. O seu objetivo principal é discutir o princípio constitucional da vida versus o princípio da dignidade humana e a preponderação destes em casos de doenças incuráveis ou em estágio terminal, bem como analisar se, ainda que na ausência de previsão expressa na Constituição Federal de 1988, há a possibilidade de se falar em um direito de liberdade à morte digna. Para alcançar o objetivo foi realizada uma pesquisa bibliográfica em textos, livros, periódicos e na legislação brasileira. Como problema norteador dessa pesquisa, indaga-se: até que ponto vale a pena manter a vida humana diante da ausência de dignidade de existir? Desde o ano de 2008 tem-se a visão e o entendimento de que a matéria, além de possuir caráter científico no que diz respeito ao médico se deparar com pacientes em estado terminal, ou, com doenças degenerativas em estado avançado; a matéria possui, também, o entendimento remetido à ordem jurídica, pois, envolvem fatores de direito constitucionalmente amparados. Ressalta-se ainda que, desde o ano supracitado, tramitam nas Casas Legislativas projetos de lei - com base na discussão alardeada em 2006 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e com a publicação da Resolução nº 1.805 de 28 de novembro de 2006. Partindo dessa premissa, propõe-se uma análise que se alinhe pelos ensinamentos publicados acerca do tema com o intuito de lidar com a morte de maneira digna, atentando-se para o maior postulado da democracia, o fundamento de toda existência ética do ordenamento jurídico: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chaves: Direito à vida. Morte digna. Dignidade humana. Eutanásia.


INTRODUÇÃO

Este estudo volta-se para a temática em torno da possiblidade de acolhimento da eutanásia pelo ordenamento jurídico brasileiro. O seu principal objetivo é o de fazer a preponderância entre os princípios da dignidade humana e o princípio constitucional à vida, nos casos em que a eutanásia entra em discussão, principalmente, pelo fato de que a Constituição Federal de 1988 não prevê o seu Instituto Jurídico. Dessa forma, indaga-se: até que ponto impossibilitar a morte honrada de pacientes com doenças graves e incuráveis considera-se priorizar a vida digna?

Norteando o presente estudo, realizou-se um levantamento de alguns tópicos inerentes à eutanásia, especialmente, no que diz respeito a sua legalização no ordenamento brasileiro. Para o desenvolvimento da revisão bibliográfica, foi realizado uma busca nas seguintes bases de dados eletrônicos: Scientific Electronic Library Online (SCIELO), livros, artigos, legislação esparsa e periódicos publicados sobre o tema, decretos lei, além da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), Código Civil (CC), Código de Processo Civil (CPC), Código Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP), Leis Complementares (LC), e julgados recentes. A busca de dados ocorreu nos meses de julho a outubro de 2022, utilizando os descritores: eutanásia, morte digna e dignidade da pessoa humana.

O assunto evidencia uma série de pontos controvertidos, polêmicos, dovidosos e interrogações: estuda o direito de morrer e de matar, quando e quais direitos devem prevalecer e quem pode figurar como sujeito ativo desses direitos, principalmente nos casos em que há divergência de vontades entre os coadjuvantes destes. Diante de tantos debates, resta saber não apenas quanto tempo uma pessoa poderá viver, mas também a qualidade de vida que essa pessoa terá. Envolto nisso, advém o problema no que diz respeito ao fim da vida e ao uso de tratamentos variados para prolongá-la, os quais envolvem questões éticas, religiosas, morais, culturais e jurídicas. Portanto, esse é um assunto de difícil tratamento, visto que suscita argumentos diversos e, muitas vezes, conflitantes.

Ressalva-se que não se pretende esgotar este tema, seja por sua complexidade e abrangência, seja porque não há o intuito de imposição quanto ao certo e errado, notadamente pela subjetividade envolvida; centrando-se, entretanto, o estudo em contribuir para reflexões a respeito do assunto, e a viabilidade técnico-jurídico de uma futura inserção do Instituto no ordenamento brasileiro.

Desse modo, busca-se estudar a possibilidade de se acolher a eutanásia na legislação brasileira, não no sentido da defesa de ser ou não implantada no Brasil, mas sim, no sentido de começar a amadurecer sobre o que seria necessário em termos de legislação - pois, no Brasil, o atual Código Penal não tipifica a prática da eutanásia, alocando a conduta no art. 121, §1º, homicídio privilegiado - considerando a garantia da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III/CRFB/88, a liberdade e proteção à vida, art. 5º, caput/CRFB/88, em que pese haver uma nítida colisão de princípios quando relacionado a esse assunto.

Logo, com o devido respeito a qualquer vertente religiosa, cultural e moral, o presente artigo não visa adentrar nessas esferas, o foco é discutir como seria a legislação brasileira abarcando tal Instituto, dado que o Brasil é um país amplo, com um sistema de saúde abalizado, o qual careceria de uma legislação que disciplinasse uma série de cuidados e critérios para a terminação da vida frente aos direitos fundamentais de cada pessoa.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os debates acerca da eutanásia e outras formas de interrupção da vida estão intrinsecamente ligados a uma questão de suma importância: o sentido da vida quando esta se encontra imersa em sofrimento e dor, bem como na incerteza de um futuro longo e feliz do Ser em estado de enfermidade.

Ao Supremo Tribunal Federal (STF) coube definir o conceito de vida quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.510, que tratava da análise do art. 5º da Lei nº 11.105/2005 - Lei de Biossegurança (LENZA, 2017). Com isso, abandonaram-se os conceitos científicos e passou a se preocupar somente pela ótica do direito, definindo, como prioridade e coerência do pensamento jurídico, o início da vida, no estado laical.

A terminologia eutanásia vem do grego eu (boa), thanatos (morte); e foi utilizada a primeira vez pelo filosofo inglês Francis Bacon no século XVII. Etimologicamente, o sentido da palavra eutanásia é empregada para os termos: “morte boa” e/ou “morte doce” sem sofrimentos, logo, não significa morte provocada ou antecipada.

A partir da análise dos textos publicados sobre o assunto, percebe-se que os povos antigos praticavam a eutanásia em ampla escala, inclusive a eutanásia social ou mistanásia, também conhecida por eugenia. Trata-se de uma técnica de “higienização” ou profilaxia social, cujo objetivo final seria o de eliminar pessoas portadoras de deficiência, doenças graves ou idosas em fase terminal (CANO et al., 2020).

Inicialmente, a eutanásia não visava apressar o processo da morte, buscava-se, apenas, amenizá-la, tornando-a menos dolorosa possível. Consoante ao que Borges (2001) ensina, seriam medidas eutanásicas, no sentido originário, os cuidados paliativos do sofrimento, como o acompanhamento psicológico do doente e outros meios de controlar a dor. No entanto, a definição da eutanásia mudou com o passar dos anos e, nos dias atuais, é tida como uma forma de antecipação da morte (ALMEIDA; MELO, 2018). Nos tempos atuais, a ação humana em dar fim ao sofrimento da pessoa em estado terminal teve cenário alterado, conforme se menciona o seguinte:

[...] a nomenclatura eutanásia vem sendo utilizada como ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de pessoas. É a morte da pessoa – que se encontra em grave sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora – produzida por médico, com o consentimento daquela. A eutanásia, propriamente dita, é a promoção do óbito. É a conduta, por meio de ação ou omissão do médico, que emprega, ou omite meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, dando-lhe a vida (SÁ, 2008, p.301-302).

É a partir dessa mudança de foco que surge o chamado consentimento informado, em que, conforme Pessini (2001, p.290), o paciente tem o direito “a decidir [...] a respeito das intervenções a se realizam no próprio corpo, isto é, a respeito da saúde e da enfermidade”, incluindo também o direito à própria morte.

Diante da necessidade de respeitar a autonomia da vontade do paciente, o direito à prática da eutanásia é resguardado em lei por vários países, entre eles: os Estados Unidos, Canadá, França, Japão, Inglaterra e Itália e, em 2006, no Brasil, regulamentou-se a ortotanásia (braço da eutanásia) por meio da Resolução nº 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina. Tanto a ortotanásia, quanto as demais subdivisões dos procedimentos que incidem em adiar a morte e/ou amenizar a dor ou o sofrimento de um paciente terminal serão tratados no tópico seguinte.

PRINCIPAIS CONCEITUAÇÕES QUANTO À TEMÁTICA

O tema proposto é carreado de subdivisões: como é o caso da eutanásia propriamente dita, mistanásia, ortotanásia, distanásia e, ainda, do suicídio assistido. Todos esses temas ligados ao assunto morte podem acarretar confusão entre si. Por este motivo, entende-se que é importante traçar um paralelo entre os conceitos, como forma de se visualizar o assunto com maior clareza.

Eutanásia

A eutanásia, de acordo com Barbosa et al. (2020), pode ser entendida como uma maneira de proporcionar o descanso àquele paciente que sofre de doença incurável, dando a ele uma morte digna. Com esse mesmo entendimento, corroboram os autores Pazinatto & Pujol (2019), quando afirmam que a eutanásia funciona como uma forma de atenuação dos sofrimentos, podendo ser resumida em morte que liberta.

Partindo desta premissa, pode-se concluir que o Instituto Jurídico da eutanásia se justifica numa forma de evitar um sofrimento arrastado, provocado por uma doença considerada incurável. Pensar que a eutanásia é apenas uma questão ética é um grave engano, uma vez que o assunto se envereda pelos caminhos da moral, da religião e, de maneira específica, do direito, na medida em que se trata da disponibilidade do maior bem tutelado pela ciência: a vida, condição sine qua non do direito.

Distanásia

A distanásia possui o conceito contrário ao de eutanásia, assim sendo, compreende-se o Instituto como a morte lenta, prolongada e sofrida. Tal Instituto defende que é necessário esgotar todas as possibilidades de se prolongar uma vida, mesmo que as hipóteses de cura não mais existam. Por esta razão, os autores Menezes & Ventura (2013) defendem que a distanásia seja o antônimo da eutanásia. Nesse sentido, tem-se o seguinte entendimento cabível para a distanásia:

Morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento. Alguns autores assumem a distanásia como sendo o antônimo de eutanásia. Novamente surge a possibilidade de confusão e ambiguidade. A qual eutanásia estão se referindo? Se for tomado apenas o significado literal das palavras quanto a sua origem grega, certamente são antônimos. Se o significado de distanásia for entendido como prolongar o sofrimento ele se opõe ao de eutanásia que é utilizado para abreviar esta situação. Porém se for assumido o seu conteúdo moral, ambas convergem. Tanto a eutanásia quanto a distanásia são tidas como sendo eticamente inadequadas (GOLDIM, 2015, p. 769).

De qualquer forma, nesse cenário, o paciente servirá, tão somente, de laboratório para cientistas e estudiosos, e, em alguns casos, para a própria família, que permite intervenções cada vez mais degradantes, negando ao enfermo as condições mínimas de vida digna em seus últimos dias.

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Mistanásia

Alguns doutrinadores, tais como Barbosa & Losurdo (2018), chamam este braço do processo de morte de “eutanásia social”, devido ao fato da mistanásia estar ligada à condição social, cujas pessoas se encontram e vivem. Assim, o termo mistanásia pode ser compreendido como a morte provocada por problemas de infraestrutura da saúde pública, atingindo direta e conscientemente a parcela mais pobre da sociedade, ou seja, aquela que possui acesso mais escasso aos recursos.

A mistanásia é uma prática que não demanda muito esforço, no sentido de não se atribuir a devida importância ao estudo desse procedimento, nem mesmo, a busca pela doutrina mais atualizada está disponível para que se possa entender a sua prática, corriqueira até em muitos hospitais do mundo afora.

Como consequência de tal fator, é importante ressaltar sobre os inúmeros casos de pacientes que se encontram amontoados em macas, nos corredores dos hospitais ou centros de saúde, os quais, muitas vezes, vão a óbito sem sequer receber os primeiros atendimentos - quadro típico este que se constata, principalmente, nos países em desenvolvimento.

Ortotanásia ou ortanásia

A ortotanásia surge entre os extremos da eutanásia e da distanásia e, caso fosse um termo usado corriqueiramente, estaria facilmente associada aos cuidados paliativos prestados ao enfermo nos seus últimos dias de vida. Assim, corrobora Mota et al. (2021) dizendo que a ortotanásia ocorre quando o doente já está em seu processo natural de morte, mas, esse processo recebe atenção apenas no sentido de permitir que esse estado percorra seu curso natural.

Na prática, o médico deixa de usar os recursos e as técnicas, que possuem somente o intuito de prolongar o sofrimento, para se concorrer a uma morte natural. Ensina Almeida et al. (2021) que a ortotanásia dar-se-ia nos seguintes casos: a) quando não houvesse mais nenhuma possibilidade de cura; b) quando não existisse mais vida humana pessoal, com a exceção de uma vida biológica ou vegetativa; e, c) quando houvesse eliminação dos meios extraordinários para manter a vida do paciente.

Diferentemente da eutanásia, a ortotanásia nunca foi considerada como infração ética. Como dita em linhas passadas, em 9 de novembro de 2006, o Conselho Federal de Medicina

aprovou, por unanimidade, com publicação no dia 28 do referido mês, uma resolução que regulamenta a prática da ortotanásia no Brasil.

Suicídio assistido

O suicídio assistido ocorre quando uma pessoa solicita ajuda a um terceiro para por fim à sua vida, seja por qual for o motivo: pode ser em detrimento de uma debilidade ou por conta de uma doença que lhe deixe incapaz de cometer suicídio por si só. Entretanto, esse terceiro não mata o indivíduo, apenas presta assistência com o intuito de alcançar o fim almejado: a morte, uma vez que quem põe fim à vida é o próprio enfermo (CONCEIÇÃO et al., 2020).

Dessa forma, o suicídio assistido é caracterizado pela facilitação ao suicídio do paciente, no qual o agente, normalmente pessoa próxima, põe alguma droga fatal ou outro meio congênere ao alcance do enfermo em estado terminal.

DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO À VIDA

Para que seja possível determinar se há um direito de morte em condições de prevalência da dignidade humana, primeiramente, se faz necessário realizar uma abordagem dos direitos fundamentais como elementos essenciais para compreensão de uma vida digna.

Assim, assumindo a importância que se deve dar à vida digna, é possível constatar na Declaração de Helsinque (1964), que o médico tem o dever de proteger a vida e a dignidade do seu paciente, colocando o bem estar deste acima de qualquer interesse científico. Dessa forma, nenhum outro direito pode ser maior que o princípio da dignidade.

Visando ter um entendimento mais amplo a respeito da estrutura dos direitos fundamentais, é preciso destacar a diferença existente entre direitos fundamentais e direitos humanos. Enquanto o primeiro consiste no conjunto de direitos reconhecidos e positivados pelo Direito Constitucional de determinado Estado, os direitos humanos estão relacionados a documentos de Direito Internacional.

Faz-se necessário ressaltar que não existe uma identidade entre esses direitos, de maneira que os direitos humanos sejam, também, fundamentais, se comparados aos Direitos Constitucionais dos Estados e ao Direito Internacional, vez que ambos possuem o objetivo de assegurar as dimensões dos direitos do homem. Fato este diplomado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata da dignidade do homem como uma das maiores premissas fundamentais, devendo servir de subsídio para a construção de novos diplomas legais, sendo reconhecida mundialmente.

Nesse sentido, houve promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, elaborada após um período de ditadura militar, num afã de civilidade. Em seu artigo primeiro, como base, fundamento e objetivo de todo o ordenamento, a CRFB/88 ampara a dignidade como condição fundamental:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III – a dignidade da pessoa humana.

Corroborando com isso, Conceição et al. (2020) contribui para a discussão afirmando o seguinte: para entender a questão dos direitos fundamentais do homem, não é suficiente que os justifique, mas os protejam à luz da própria política do Estado e não apenas sob um aspecto filosófico utópico.

Direitos humanos

A admissão dos direitos fundamentais está intrinsecamente relacionada com a percepção de direitos humanos, direitos do homem, naturais e inatos, presentes e preexistentes à sua própria noção de existência. Assim, da mesma forma que o homem não pode deixar de ser homem, este também não pode ser livre para ter ou não a dignidade. Isso determina que o direito imponha ao Estado não permitir que o homem se prive da sua dignidade.

Embora exista uma resistência inflexível da norma jurídica, o atual estado de direito nos leva a perceber que, diariamente, surgem novas tutelas desafiantes à percepção no âmbito dos direitos humanos e, essas novas perspectivas, ainda não amparadas constitucionalmente, poderão estar fadadas ao empobrecimento da discussão a respeito de temas como a bioética. Assim:

É neste cenário que se manifesta a grande crítica e repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinados à ótica meramente formal [...] Sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos, no pós-guerra, há, de um lado, a emergência do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e, por outro lado, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto aos princípios e valores (KASSAMAYER, 2014, p. 17).

É possível observar, diante dessa nova axiologia do direito, em especial, dos direitos humanos, que o texto positivado da lei, como afirmam Almeida et al. (2021), é uma emergência, à qual, como surgimento de questões ligadas à bioética e ao biodireito, surge a necessidade de que o Estado as discuta e ampare.

A afronta existente entre as inovações tecnológicas e as garantias constitucionais, cada vez mais, vem aumentando a complexidade em torno dos direitos humanos, e é certo que se faz necessário estabelecer um limite de até qual ponto a ciência pode interferir, de maneira a resguardar, ainda que de forma ínfima, a ética do livre arbítrio: do direito de optar pela sublimação da condição perpétua da dignidade.

Na contramão do que se pode esperar, os avanços tecnológicos representam novas perspectivas para a humanidade, em todos os aspectos. Entretanto, a acentuada sede tecnológica e a instrumentalização do homem compõem o ímpeto de que os juristas necessitam para propor medidas legislativas, às quais visem os direitos humanos e os princípios fundamentais do homem, de forma a prevalecer uma condição de dignidade acima de qualquer evolução, inclusive da científica. Nesse sentido:

Como não existem direitos absolutos, em se tratando de Direitos Fundamentais, os choques havidos entre os direitos personalíssimos e os direitos da comunidade científica devem ser resolvidos pelo princípio da proporcionalidade, de forma que o exercício de um direito não anule o exercício do outro, pois, uma vez que ambos devem ser protegidos e garantidos, ambos devem guardar um mínimo de efetividade (SCHEIDWEILER, 2006, p. 525).

Diante dessas informações, tem-se a importância de se resguardar os direitos fundamentais inseridos na norma constitucional, diante do perigo de violação e afronta aos princípios já existentes, podendo a CRFB/88 ser moldada de acordo com tais necessidades, buscando a adaptação com a realidade.

Desse modo, pode-se concluir que os princípios constitucionais são regras axiológicas imperativas, pertencentes à composição do valor da própria norma, às quais dão vazão ao entendimento do texto de lei; e este, por sua vez, quando se fizer necessário, norteará o jurista no uso de outros mecanismos que virão a ser úteis para o raciocínio final.

Princípios constitucionais: um amparo aos direitos fundamentais

A jurisprudência e os costumes, assim como a lei positivada, configuram os princípios gerais do direito e, são fontes de interpretação e aplicação da norma ao caso concreto, podendo ainda ser levado em consideração a regra de que nenhuma interpretação será bem feita se um princípio for menosprezado.

A CRFB/88 garante a preservação máxima aos direitos do homem, enquanto os princípios são o pressuposto que o ordenamento usa como instrumento para todo o sistema normativo, se valendo, portanto, que: “os princípios constitucionais dão estrutura e coesão ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper” (NUNES, 2003, p. 170).

Não é à toa que, no ordenamento jurídico pátrio, exista a possibilidade expressa do aplicador do direito lançar mão dos princípios sempre que a situação os exigir, como pode ser verificado no parágrafo quarto da CRFB/88, que preleciona: “quando a lei for omissa o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

A dignidade humana: um princípio fundamental

Há uma dificuldade imensurável em conceituar ao certo o que seria a dignidade humana, em razão desta ser abstrata, permitir várias definições e enfoques diferenciados. Por esse motivo, alguns doutrinadores, defendem que a dignidade é um direito como tantos outros garantidos pela CRFB/88. Para Grego (2015), por exemplo, a dignidade humana está para além de um princípio fundamental. Corrobora com esta ideia Adoni (2003), e, em suas palavras:

A dignidade da pessoa humana é o sol de valores, onde os demais gravitam ao seu redor. Constitui o valor dos valores. A dignidade da pessoa humana é a célula mãe de todos os demais valores, assegurando o direito à vida, e não o dever à vida a qualquer custo e condição, mesmo porque, nas sendas do quanto preconizada pela Constituição Federal, é direito fundamental da pessoa não ser submetida a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), como sói possível ocorreu em um sem número de circunstâncias de enfermidade incurável e dolorosa, em que a pessoa é submetida a um tratamento fútil e desnecessário, sob o empunho cruel da bandeira erguida em defesa do direito à vida, fazendo recrudescer a vulneração teratológica à sua dignidade, além do tolher ao exercício de uma liberdade individual legalmente garantida.

Em suma, o autor defende que a dignidade humana é uma cláusula geral, assim sendo, uma norma jurídica; ele acrescenta ainda a dignidade a partir de dois polos: um positivo e um negativo. Por um lado, o polo negativo diz respeito ao fato de que a pessoa não pode estar passível de humilhações e ofensas, já, por outro, o lado positivo conceitua sobre a possibilidade do indivíduo ser livre para exercer a sua autodeterminação e autonomia, inclusive perante o Estado. Por esta razão, a dignidade humana:

[...] é um verdadeiro supra princípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas. [...] não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação (NUNES, 2010, p. 50-51).

Posto isso, o argumento supracitado poderá ser o critério para a sua solução, nos casos em que houver um conflito entre um subprincípio e o princípio da dignidade humana.

O direito fundamental à vida

Partindo-se da premissa de que a dignidade é um princípio fundamental e a sua aplicabilidade é algo imperioso, cabe, então, relacioná-la ao direito constitucional à vida, conforme preceitua a CRFB/88, em seu artigo primeiro. Diante dessa realidade, e, para efeito do presente estudo, a vida é o direito que está em discussão no plano jurídico como sendo um direito indisponível. Assim, é possível constatar, segundo Lenza (2017):

[...] vida, em seu sentido constitucional [...], não será considerada apenas em seu sentido biológico, de incessante atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza é de difícil compreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, deixando, então, de ser vida para ser morte.

No mesmo sentido é o posicionamento de Barbosa et al. (2020) quando assumem o direito à vida por meio de duas significações, sendo: no que diz respeito a ambas, cabe ao Estado salvaguardá-las. Desse modo, os autores asseveram que:

A inviolabilidade do direito à vida, como consta no caput do art. 5º da Constituição Federal brasileira de 1988, retrata a proteção da vida como bem jurídico indisponível. Se a dignidade humana é a norma-valor que inspira a interpretação de todo o ordenamento jurídico, cabe analisar o direito à vida, juntamente com a noção de dignidade – podendo-se falar do direito à vida digna (BARBOSA et al. 2020).

Diante das colocações acima, não obstante à máxima imperativa da proteção constitucional do direito à vida, é possível perceber que esta só poderá ser exercida com dignidade, de nada bastando um direito sem que o seu fundamento não tenha caráter de verdade. Isso se efetiva quando, por exemplo, se permite ao cidadão, no caso de um paciente terminal, o direito de realizar escolhas, quando as mesmas influenciarem o seu modo de viver e de agir com dignidade.

A vida e a dignidade compõem-se como substratos constitucionais que, apesar de correlacionarem-se no texto constitucional, são direitos e, ao mesmo tempo, garantias - que possuem parcela de validade, conjunta e separadamente, perfazendo requisitos essenciais para a existência dos demais direitos.

Vida digna: conceito

O conceito de vida digna, inevitavelmente, leva ao conceito de morte digna. Considerando-se, especificamente, o fato do presente estudo envolver questões relacionadas à condição de morrer com dignidade, convém destacar que a preocupação aqui é identificar e estabelecer um parâmetro para a ‘vida com dignidade’, no momento ao qual esta deve prevalecer em relação ao próprio direito à vida. Nesse sentido, Fonte (2019) ressalta:

O direito do paciente de não se submeter ao tratamento ou de interrompê-lo é consequência da garantia constitucional de sua liberdade, autonomia jurídica, inviolabilidade de sua vida privada e intimidade e, principalmente, da dignidade da pessoa, erigida como fundamento no art. 1º da Constituição Federal. O inciso XXXV do art. 5º garante, inclusive, o direito de o paciente recorrer ao Judiciário, para impedir que qualquer intervenção ilícita em seu corpo e contra a sua vontade. A inviolabilidade à segurança envolve a inviolabilidade à integridade física e mental.

Dessa forma, para haver a efetiva proteção do direito constitucional à vida é necessário, também, que haja uma reflexão, levando-se em consideração a possibilidade de relativização do direito à vida, diante da necessidade de se tutelar o princípio da dignidade humana, ainda que, com isso, seja preciso se abdicar de viver, a fim de se manter íntegro.

Assim, mesmo diante da possibilidade do impedimento de viver diante da “escolha pela morte”, pretende-se manter a dignidade vista sob a óptica aqui tratada.

REGULAMENTAÇÃO DAS QUESTÕES RELATIVAS AO DIREITO BRASILEIRO

Quando se trata de questões médicas, o direito atua em três áreas específicas, a saber: o Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Penal; atuação essa que possui o objetivo principal de garantir a dignidade humana, atuando, principalmente, diante de novas tecnologias e por meios que possam colocar tal princípio em risco.

De maneira geral, a legislação brasileira continua omissa quanto à positivação do assunto eutanásia. Percebe-se que há uma movimentação no parlamento brasileiro sobre a temática, especialmente ao se analisar os projetos de lei de tramitam na Câmara e no Senado, como são os casos dos Projetos de Lei: nº 3.002/2008, nº 5.008/2009, nº 6.544/2009 e nº 6.715/2009, todos de autoria de deputados federais. Além desses, inclui-se também, o anteprojeto do novo Código Penal.

Salienta-se, de um lado, que: no Brasil, existem amplas discussões sobre esse contexto, às quais percorrem os corredores dos hospitais, cujas influências incidem, direta ou indiretamente, na edição de normas. Por outro lado, uma lei de ordem federal ainda é um direito a ser alcançado, uma vez que depende da aprovação do Congresso Nacional.

Assim, é notório observar que o direito evoluiu ao longo da sua história, de modo a alcançar o homem em sua subjetividade, dando vasão à objetividade da norma; contudo, essa evolução ainda se mostra insuficiente, em especial, no caso da discussão tratada neste artigo.

Diante desses fatos, é ponderável acolher o entendimento de que existe a necessidade de relativização de alguns conceitos, assim como é necessário a reavaliação da ordem pré- estabelecida, bem como da forma pela qual os direitos e as garantias do homem são tratados, uma vez que muitos destes já são considerados antiquados diante da perspectiva global.

Seguindo esse raciocínio, percebe-se a necessidade do direito voltar um pouco mais o seu olhar técnico para aquilo que o avanço científico propõe, a fim de que as mudanças jurisdicionais possam se realizar como possibilidade de relativização de conceitos e paradigmas, quando assim for necessário.

Notadamente, a sociedade não é estanque, muito pelo contrário, é mutável à medida que a informação é disseminada. Nesse sentido, não perceber ou permitir que o direito também evolua, e com ele a nova visão do que é direito e justo, torna esta ciência temerária e inócua.

De maneira assertiva, por maior que seja a tutela à vida imposta pelo Estado, como direito e garantia mínima, esta precisa receber uma nova roupagem, principalmente quando ela se encontra em evidência e contraposta aos demais direitos e fundamentos intrínsecos ao homem.

Verifica-se, diante disso, que existe a necessidade de se coadunar um direito à perspectiva de garantia, limitados ao tempo e ao espaço em que se encontre, de maneira a ser possível garantir uma eficácia dos princípios, dos direitos e dos fundamentos de dignidade; pois, um direito só é absoluto à medida que o espaço e o tempo impuserem tal condição. É somente nessa ordem que os anseios bioéticos terão o respaldo merecido, e será possível a desmitificação dos seus conceitos na prática, como é o caso da eutanásia na ordem jurídica brasileira.

4.1 Morrer com dignidade: um direito fundamental

Sendo um direito da personalidade, a vida se inicia com o nascimento. Sua dignidade é garantida pela CRFB/88 como requisito para uma existência democrática. No entanto, muitos brasileiros vivem à mercê do Estado, à míngua de uma sociedade consumista e, visivelmente egoísta, essencialmente, quando o assunto é a morte.

Como analisado em tópicos anteriores, a vida digna possui uma parcela de divergências. Entretanto, com maior complexidade, tem-se a experiência de vivenciar o morrer com dignidade, num contexto de padrões culturais e sociais em contínua geração de perspectivas científicas que, a cada dia, fazem surgir novas técnicas de longevidade (Nucci, 2019). Assim, após definir a vida como o início, é possível dizer que:

A morte é definida como a cessação definitiva da vida no corpo. O morrer pode ser demarcado como o processo que se dá no intervalo entre o momento em que a doença se torna irreversível e aquele em que o indivíduo deixa de responder a qualquer medida terapêutica, progredindo inexoravelmente para o final de sua existência (NUCCI, p. 102, 2019).

A evolução da ciência é motivo de grande obstinação terapêutica que acarreta maiores sofrimentos ao ser humano que, desprovido de sua saúde, vê-se privado também da sua autonomia para decidir pela sua própria dignidade e, não mais, enfrentar um tratamento doloroso que, ao invés de lhe trazer cura, causa ainda mais sofrimento. Nesse norte, o Estado

e o legislador têm reticências a respeito de procedimentos que interrompam a agonia de tratamentos infrutíferos, mesmo quando o paciente assim o deseja.

A perspectiva de morte digna, não amparada constitucionalmente como a vida, precisa ser revista, e, enquanto as conjecturas filosóficas e deontológicas buscam esclarecimento para esse impasse, as organizações de classe, como o CFM e outras, abriram discussões sobre o tema, cujo fio da razão foi tecido no sentido de buscar amparar o homem na sua completude como ser humano.

A eutanásia precisa ser vista e amparada sob a ordem de preservação dos fundamentos constitucionais do princípio da dignidade da pessoa humana, da preservação imanente do ser humano na sua subjetividade, mas, não apenas a partir de um elemento definido pelo Estado. O legislador infraconstitucional tem se deparado com o avanço tecnológico e, em decorrência disso, o Estado, bem como a legislação, necessitam englobar também as questões que são, ao mesmo tempo, peculiares e distintas da rotina dos corredores dos tribunais de justiça.

Dessa maneira, o consentimento livre e esclarecido, a não maleficência, a autonomia e a dignidade humana são os princípios norteadores que impulsionam o judiciário na busca incessante de resguardar a prevalência da condição do ser humano, ora como indivíduo, ora com obrigações e deveres, mas, acima de tudo, dotado de personalidade e capacidade de decidir sobre os seus atos e sobre a sua vida.

Assim, resta chamar o direito a vislumbrar a necessidade de que o Estado tutele, não só a morte digna, mas o direito de morrer com dignidade, à luz de todas as questões anteriormente levantadas, de forma que o cidadão possa receber o amparo, e, consequentemente, o direito à vida venha a ser garantido a ele como condição inerente à humanidade, resguardada em sua plenitude. E, diante disso, o ciclo iniciado com o nascer se encerre com a morte, dentro dos parâmetros legais, sem desvincular-se do direito fundamental à dignidade e a todos os direitos que lhe sejam garantidos para o pleno exercício e gozo de sua cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou adentrar nos aspectos jurídicos que envolvem o tema eutanásia e todos os desdobramentos dele decorridos no âmbito da dignidade humana, aplicando, especificamente ao paciente terminal, alguns princípios como diferenciação das outras práticas que findam a vida.

É possível observar o conflito existente entre a medicina e os juristas brasileiros no que diz respeito aos pontos de vista quanto à prática da eutanásia. Dessa forma, é preciso que haja um aprofundamento em matérias constitucionais com relação ao princípio da autonomia da vontade e do direito à vida.

No mesmo sentido, é possível constatar que, embora o direito à vida seja a pilastra sustentadora de todos os outros princípios, ele não pode ser considerado o mais importante ou ser colocado numa posição acima dos demais princípios constitucionais, pois, esta valoração, em concorrência de princípios, precisa ser avaliada levando-se em consideração a situação fática aos quais aqueles estão inseridos.

Apesar da complexidade do tema e das polêmicas levantadas, a eutanásia precisa ser debatida no plano jurídico com respaldo das ciências médicas e de seus profissionais. Os direitos constitucionalmente amparados tornam-se, dessa forma, amplos; principalmente, quando é levada em consideração a falta de reconhecimento de um novo direito que merece respaldo jurídico, através das dimensões do direito e da transcendência normativa, é uma atrofia do Estado de Direito, da ordem democrática livre, justa e igualitária em que se vive.

Para tanto, é preciso que a morte seja vista com outros olhos, não somente como uma derrota ou uma história que chega ao fim, mas como a autolibertação do paciente, cujo ideal da dignidade como autonomia prevalece.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Andressa Menez. Possibilidade de autorização da eutanásia, frente a uma interpretação conforme a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7159, 6 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102097. Acesso em: 5 nov. 2024.

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