A pecha social que insiste em remanescer: o resgate de 2.575 trabalhadores de condições análogas às de escravo em 2022

27/01/2023 às 13:56
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Adriano Marcos Soriano Lopes1

Solainy Beltrão dos Santos 2

Em Les Rêveries du promeneur solitaire, obra inacabada, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) versou que “c'est la force et la liberté qui rendent les hommes vertueux. La faiblesse et la servitude n'ont jamais fait que de mauvaises personnes”, em tradução livre, “são a força e a liberdade que fazem os homens virtuosos. A fraqueza e a escravidão nunca fizeram nada além de pessoas más.”

A liberdade é um valor inerente à condição humana, todavia, como já havia sido reconhecido pelo filósofo genebrino no Contrato Social, “l’ homme est né libre, et partout il est dans les fers.”3,4

Raconta o art. 5.º, caput, da Carta de outubro que a liberdade, assim como a vida, a igualdade, a segurança e a propriedade são direitos fundamentais que assumem no ordenamento pátrio expressiva relevância.

Nesse tom, o texto jurídico-político de 1988 desempenha papel essencial na valorização do indivíduo ao elevar, também, a dignidade humana ao status de princípio fundamental constitucionalmente garantido e, em tempos de neoconstitucionalismo, em que todo o ordenamento jurídico é interpretado à luz da Constituição, exalta-se a dignidade humana, o que não dispensa a sua incursão sob a perspectiva dos direitos fundamentais do homem que nela são alicerçados.

O respeito aos direitos mínimos do ser humano enquanto trabalhador é manifestação da chamada eficácia horizontal ou diagonal dos direitos fundamentais. Isso porque a tutela da dignidade do trabalhador vai ao encontro do ideário kantiano de que a dignidade não tem preço e converge ainda para a ideia propagada na Constituição da OIT como princípio fundamental de que o “trabalho não é uma mercadoria”.

Contudo, a busca pelo lucro desmedido gerou, ao longo da história da humanidade, a coisificação do trabalhador ao ponto de um indivíduo escravizar o outro e essa instrumentalização do ser humano representa grave violação ao princípio da dignidade humana e ao seu direito à liberdade.

A Constituição elegeu o Estado Democrático de Direito como modelo estatal e tem como fundamento e fim o ser humano, além de construir-se sobre os valores do trabalho e da livre iniciativa. (art. 1°, IV, da CF). Em razão disso, pode-se dizer que o Direito do Trabalho é um valioso instrumento para a superação da desigualdade social e para a inclusão do homem na sociedade capitalista, garantindo os meios necessários para a asserção do ser humano enquanto merecedor de respeito por ser peça basilar da vida em sociedade.

Dessa forma, enumera-se como direitos mínimos do homem trabalhador, dentre outros, o direito ao trabalho, a liberdade de trabalho, a igualdade de oportunidades e de condições justas de trabalho, o direito à segurança e à justa remuneração no trabalho e, por essa vereda, o exercício de trabalho que de alguma forma viole tais direitos comezinhos do homem trabalhador é antítese àquilo que se considera como trabalho digno e decente.

O mais importante texto sobre os direitos do homem trabalhador, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, trata, em diversas passagens, de disposições que compõem o mínimo defendido. Tais direitos encontram-se concentrados, essencialmente, nos arts. XXIII e XXIV.5

As convenções fundamentais também trazem um rol numerus apertus de direitos mínimos do trabalhador a exemplo das Convenções n. 87 e 98 (que tratam da liberdade sindical), das Convenções n. 27 e 105 (que tratam da proibição de trabalho forçado), das Convenções n. 110 e 111 (que tratam da proibição de discriminação), bem como as Convenções n. 138 e 182 (que tratam da proibição do trabalho abaixo de idade mínima). Esse rol, inclusive, é o mesmo preconizado no item 2 da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho.6

Nesse contexto, revela-se que as piores formas de exploração do trabalho humano são o trabalho em condições análogas de escravo, o trabalho com discriminação ou exclusão, o trabalho precário e o trabalho infantil.

E, ainda que seja considerado uma das piores formas de exploração do trabalho humano, a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego na semana alusiva a 28 de janeiro (Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo) divulgou em 24/01/2023 que o Grupo Especial de Fiscalização Móvel realizou 32% do total das ações fiscais, encontrando trabalho análogo ao de escravo em 16 dos 20 estados onde ocorreram ações. A Inspeção ainda resgatou 2.575 trabalhadores de condições análogas às de escravo em 2022, resultando em mais de R$ 8 milhões de reais em direitos trabalhistas.7

Dentre os Estados brasileiros, Minas Gerais é o ente da federação com mais ações fiscais ocorridas no ano de 2022, tendo 1.070 trabalhadores resgatados. O maior resgate de trabalhadores ocorreu em Varjão de Minas/MG onde 273 trabalhadores foram resgatados de condições degradantes de trabalho na atividade de corte de cana-de-açúcar.

Conquanto sejam deferidas indenizações, anotações de CTPS, recolhimento de FGTS e condenação de pagamento de outros direitos trabalhistas, é certo que a mácula que atinge esses trabalhadores é indelével. Trabalhar em condições sub-humanas e, muitas vezes, viver em ditas condições em virtude do trabalho a que são submetidos, requer políticas públicas de acolhimento e encaminhamento desses trabalhadores resgatados para tratamento psicológico e de assistência social.

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O apequenamento das condições de trabalho e da consequente dignidade humana dessas vítimas do trabalho escravo deixa entrever que essa precariedade é inimiga do progresso da humanidade e, amiúde, a prática está atrelada a outras condutas criminosas como o tráfico humano, principalmente de migrantes. Nesse relatório do Grupo Especial de Fiscalização Móvel mencionado, por exemplo, identificou-se que entre os resgatados haviam 101 paraguaios, 25 bolivianos, 14 venezuelanos, 4 haitianos e 4 argentinos.

O trabalho escravo contemporâneo não se dá apenas no meio rural, posto que esse seja a maior seara de resgate de trabalhadores. Desde a passagem do modo artesanal de produção para o têxtil com a Revolução Industrial, verifica-se que remanesce a adoção do modelo deletério denominado sweating system em que há a subcontratação de trabalhadores em locais de trabalho que se misturam, muitas vezes, com residências, havendo condições excessivas de opressão e pagamento de salários ínfimos. Isso pode, inclusive, ser observado pelos dados do relatório do GEFM (Grupo Especial de Fiscalização Móvel) que afirma terem sido resgatados 68 trabalhadores nas atividades da construção civil, 63 trabalhadores setor de serviços, especificamente em restaurantes e 39 trabalhadores na confecção de roupas, sem contar os 10 casos de trabalho escravo doméstico identificados.

A pobreza e a falta de oportunidades, indubitavelmente, desempenham papel decisório no aumento da suscetibilidade dos trabalhadores à escravidão moderna, mas, além disso, não se olvide da xenofobia e da discriminação de gênero como contributos para a prática no Brasil.

A redução do próximo à condição análoga de escravo é uma realidade em muitas localidades do Brasil e essa prática precisa ser combatida por todos. Pelo Estado através de políticas públicas e pela sociedade através de conscientização e solidariedade.

Dessa forma, a luta pela erradicação do trabalho escravo deve ser uma constante, pois permite que se respeite os direitos mínimos do ser humano, já que, tal como dito pelo estoico Sêneca “não pode haver bem moral onde não há liberdade; medo é sinônimo de escravatura!”


  1. Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Especialista em Ciências do Trabalho pela Faculdade Lions. Autor de diversos artigos jurídicos e coautor dos livros “O Direito Autônomo à proteção dos dados pessoais: uma análise constitucional-trabalhista” e “Sentença trabalhista descortinando a teoria e facilitando a prática.”

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  2. Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Especialista em Inovações em Direito Civil e seus Instrumentos de Tutela pela Universidade Anhanguera. Autora de diversos artigos jurídicos e coautora do livro O Direito Autônomo à proteção dos dados pessoais: uma análise constitucional-trabalhista” e “Sentença trabalhista descortinando a teoria e facilitando a prática.”

  3. Tradução livre: “o homem nasceu livre e por toda parte está acorrentado”.

  4. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat Social. TV5MONDE, 2022, p. 40.

  5. Artigo XXIII 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. Artigo XXIV Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

  6. Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.

  7. Informação disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/noticias-e-conteudo/trabalho/2023/janeiro/inspecao-do-trabalho-resgatou-2-575-trabalhadores-de-trabalho-analogo-ao-de-escravo-no-ano-passado. Acesso em: 25 jan. 2023.

Sobre a autora
Solainy Beltrão dos Santos

Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Especialista em Inovações em Direito Civil e seus Instrumentos de Tutela pela Universidade Anhanguera. Autora de diversos artigos jurídicos e coautora do livro “O Direito Autônomo à proteção dos dados pessoais: uma análise constitucional-trabalhista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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