A Constituição da República Portuguesa[1] dispõe no artigo 103.º, n.º 1 acerca do sistema fiscal, que visa à satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Ademais, a lei geral tributária portuguesa[2] - artigo 5.º, n.º 1 - estabelece os fins da tributação, que têm por objetivo a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. Assim, no intuito de alcançar os fins visados pela tributação, é necessário que a arrecadação tributária seja realizada em conformidade com os aludidos princípios.
O princípio da capacidade contributiva tem por fundamento o princípio da igualdade para a justa repartição do encargo fiscal entre os cidadãos. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva visa assegurar a igualdade na distribuição do ónus fiscal. Assim, a “tributação igualitária de hoje é aquela em que cada cidadão paga de acordo com a sua capacidade.”[3] Importa ressaltar que “capacidade contributiva e capacidade económica não se confundem”, pois, a “capacidade contributiva é a capacidade do contribuinte, relacionada com a imposição especifica ou global, sendo, portanto, dimensão económica particular da sua vinculação ao poder tributante, nos termos da lei”, ao ponto que “a capacidade económica é a exteriorização da potencialidade económica de alguém, independentemente da sua vinculação ao referido poder.”[4]
No que concerne ao princípio da igualdade tributária, este se encontra implícito no princípio geral da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, e integra o princípio da universalidade, previsto no artigo 12.º da CRP. Este princípio, quando perspectivado no domínio fiscal, implica que todas as pessoas – singulares e coletivas – estejam adstritas ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, exigindo-se que este dever seja aferido pelo mesmo critério, ou seja, da capacidade contributiva. De acordo com este critério, deve-se tributar igualmente os cidadãos que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e de maneira diferente (em termos qualitativos ou quantitativos) “os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical).”[5]
O Tribunal Constitucional Português pronunciou-se no sentido de que, “no âmbito dos impostos fiscais a sua repartição deve obedecer ao princípio da igualdade tributária, fiscal ou contributiva que se concretiza na generalidade e uniformidade dos impostos, sendo que a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu caráter universal (não discriminatório), e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há - de obedecer a um critério idêntico para todos, que é o da capacidade contributiva.”[6]
Assim, a imposição fiscal deve estar em consonância com o princípio da igualdade tributária, de modo que impõe ao legislador, “A) discriminar adequadamente os desiguais, na medida de suas desigualdades; B) não discriminar entre os iguais, que devem ser tratados igualmente.”[7] Deve fazê-lo tendo em consideração a capacidade contributiva das pessoas singulares e coletivas. A capacidade contributiva pressupõe a capacidade de pagar tributos. Posto isto, a Lei Geral Tributária Portuguesa, prescreve no artigo 4.º, n.º 1, que os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.
No Brasil, o princípio da capacidade contributiva encontra-se previsto na Constituição de 1988[8]. Nos termos do artigo 145.º, § 1º - "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão atribuídos segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte." Segundo Calmon, o princípio da capacidade contributiva traduz a aptidão de o individuo ser sujeito passivo de tributos e, com isso, contribuir para os gastos públicos. Desta feita, a capacidade contributiva visa a realização da justiça fiscal, através da efetivação do próprio princípio da igualdade na esfera tributária. O princípio da capacidade contributiva distingue-se entre a capacidade económica objetiva (absoluta) e a capacidade económica subjetiva (relativa e pessoal). A capacidade objetiva é verificada, tão somente, por meio daqueles fatos que evidenciem indícios de capacidade económica. Trata-se de uma aptidão abstrata, pois leva em consideração manifestações objetivas da pessoa (possuir casa, carro). Ao revés, a capacidade subjetiva “refere-se à concreta e real aptidão de determinada pessoa – consideradas suas despesas pessoais e inafastáveis, como alimentação, vestuário, moradia, saúde, educação - para o pagamento de certo imposto[9]”.
Neste contexto, Baleeiro esclarece que “a tributação somente pode incidir sobre a renda líquida do contribuinte, vale dizer, sobre o montante efetivamente disponível para o livre consumo de bens e serviços não essenciais à sua sobrevivência e à de sua família de maneira digna[10]”. Pode-se, assim, dizer que a capacidade contributiva no seu aspecto subjetivo (capacidade económica real) tem por intuito verificar se o contribuinte possui capacidade económica para suportar o ónus tributário, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com a dignidade humana.
Para que a arrecadação tributária se perfaça em consonância com um ideal de justiça, é necessária a observância dos limites ao poder de tributar.
Primeiramente, deve-se respeitar o direito ao “mínimo existencial vital”, que é o direito que assegura ao cidadão a existência digna, antes que seja realizada qualquer imposição tributária. Neste contexto, é necessário verificar quem é o contribuinte do imposto e se este “tem recursos materiais para suportar a carga fiscal e ainda subsistir digna e autonomamente.”[11] É preciso assegurar a cada pessoa o mínimo de rendimento que lhe permita viver com dignidade e que atenda às necessidades vitais básicas. Entende-se que o mínimo vital deve englobar os custos mínimos de moradia, vestuário, alimentação, entre outros direitos imprescindíveis para a manutenção de uma vida digna. A título de exemplo, no que concerne ao direito à alimentação, se o cidadão não dispõe de recursos para se alimentar, desprovido, o mesmo será de capacidade contributiva. Assim, “o tributo só pode incidir quando o contribuinte tiver alguma disponibilidade financeira, ou seja, o valor de sua renda conseguir satisfazer sua subsistência mínima e ainda lhe sobrar disponibilidade (maior ou menor) sobre a qual é possível a incidência de tributação.”[12] Segundo Hack, “aqueles que estão acima da faixa mínima de subsistência, em que já existe capacidade contributiva, devem contribuir com valor proporcional ao que ultrapassa a faixa mínima. Até essa faixa, não têm essa capacidade (...).”[13] Krieger assevera que “(…) a capacidade contributiva não é automaticamente comparada com a capacidade aquisitiva, pois as pessoas que não têm recursos materiais nem para ter o mínimo vital não podem suportar uma carga tributária criada mediante um imposto indireto indiscriminado que incide sobre a totalidade de bens e serviços imprescindíveis para sua sobrevivência digna e autônoma.”[14]
A título de exemplo, “temos a cobrança do ICMS sobre a venda de produtos de primeira necessidade (…) sem diferenciação para quem é o consumidor final destes produtos, o que por muitas vezes faz com que famílias paupérrimas, que não tem sequer o mínimo subsistência respeitado, paguem tributos na condição de contribuintes de fato, mesmo inexistindo por completo capacidade contributiva nestes casos.”[15]
Dentre das limitações ao poder de tributar, tem-se o princípio do não confisco, que veda o excesso na tributação a ponto de se esgotar a capacidade contributiva. O texto Constitucional[16] estabelece:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
V - utilizar tributo com efeito de confisco;
O princípio nada mais exige do que razoabilidade na arrecadação da receita fiscal.
Em conclusão, a igualdade fiscal que se pretende alcançar relaciona-se com uma tributação que permita igual impacto na renda dos contribuintes. A capacidade contributiva para fins de igualdade obedece a dois critérios: o da progressividade[17] das alíquotas em razão da base de cálculo, relativamente aos tributos incidentes sobre a renda e patrimônio; e o da seletividade das alíquotas em razão da essencialidade, em relação aos tributos incidentes sobre o consumo.
Precisamente no que respeita aos tributos “indiretos” ou de “mercado”, incidentes sobre o consumo, a capacidade contributiva não é concretizada de forma plena, e manifesta-se através do consumo realizado pelo contribuinte no ato de aquisição de bens e serviços. Contrariamente ao que se observa no contexto da tributação direta, no consumo, as características particulares do contribuinte não são levadas em consideração para fins de imposição fiscal (aspecto subjetivo). O imposto integra o preço do produto adquirido e é repassado ao consumidor final. Assim, os impostos indiretos tendem a ocasionar injustiças na tributação. Apesar da seletividade ser o meio de se verificar a capacidade contributiva nos tributos indiretos, ela por si só não é apta a realizar a justiça social, pois apenas leva em consideração o aspecto objetivo, ou seja, consideram-se, tão somente, os factos presuntivos de riqueza para fins de tributação. Posto isto, “a capacidade contributiva é hoje aplicada considerando-se tão somente seu aspecto objetivo, por meio da seletividade, haja vista a suposta impossibilidade de se analisar as particularidades de cada consumidor.”[18] Para tanto, é necessário “considerar também o aspecto subjetivo da capacidade contributiva para que a realização do princípio seja efetiva”[19], distribuindo-se a carga tributária igualmente entre os contribuintes.
Fachin entende que, atualmente, há a possibilidade de se considerar o aspecto subjetivo da capacidade contributiva, através de sistemas tecnológicos e informáticos que permitem a identificação do contribuinte no ato de aquisição, bem como verificar o consumo realizado. A ideia é efetuar o registo de cada contribuinte, de forma a possibilitar o armazenamento e o cruzamento de dados. Assim, a partir do registo de contribuintes e do cruzamento de dados executados pelo fisco, “será possível aferir a capacidade subjetiva do adquirente de bens e serviços no ato da compra, bem como quantificar o que foi por ele consumido.”[20] Nesse sentido, entende-se que uma forma de corrigir as desigualdades, ocasionadas por uma tributação objetiva, seria proceder à devolução dos tributos incidentes sobre vendas as famílias de baixa renda. Este tema será abordado na secção reservada à reforma brasileira da tributação do consumo.
[1] Cf. Assembleia da República, “Constituição da República Portuguesa”, texto disponível em https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx [05.09.2022].
[2] Price waterhouse Coopers Portugal, “Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro”, texto disponível em https://www.pwc.pt/pt/pwcinforfisco/codigos/lgt/dl-398-98.html [05.09.2022].
[3] Cf. Érico HACK, “Princípio da capacidade contributiva: limites e critérios para o tributo”, Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, vol. 21, n.º 39, 2014, p. 85.
[4] Cf. Aline KRIEGER, “ICMS e Regressividade Tributária: Alternativas para uma Tributação Mais Justa”, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019, p. 82.
[5] Cf. José NABAIS, “Direito fiscal”, 10.ª edição, Lisboa, Almedina, 2017, p. 154.
[6] Divisão de Gestão da Segurança e Infraestruturas, “Acórdão do Tribunal Constitucional proferido no processo n.º 96-0063”, texto disponível em http://www.dgsi.pt/atco1.nsf/904714e45043f49b802565fa004a5fd7/edd3f30a2e800e7d8025682d0063f8a8?OpenDocument&Highlight=0,principio,da,igualdade,fiscal [14.02.2022].
[7] Cf. Sacha COÊLHO, “Curso de direito tributário brasileiro”, 17.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 162.
[8] Cf. Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, “Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”, texto disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm [05.09.2022].
[9] Cf. Sacha COÊLHO, “Curso de direito tributário brasileiro”, 17.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 52.
[10] Cf. Aliomar Baleeiro, citado por Sacha COÊLHO, “Curso de direito tributário brasileiro”, 17.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 52.
[11] Cf. Aline KRIEGER, “ICMS e Regressividade Tributária: Alternativas para uma Tributação Mais Justa”, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019, p. 85.
[12] Cf. Érico HACK, “Princípio da capacidade contributiva: limites e critérios para o tributo”, Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, vol. 21, n.º 39, 2014, p. 86.
[13] Cf. Érico HACK, “Princípio da capacidade contributiva: limites e critérios para o tributo”, Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, vol. 21, n.º 39, 2014, p. 85.
[14] Cf. Aline KRIEGER, “ICMS e Regressividade Tributária: Alternativas para uma Tributação Mais Justa”, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019, p. 85.
[15] Cf. Aline KRIEGER, “ICMS e Regressividade Tributária: Alternativas para uma Tributação Mais Justa”, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019, p.90.
[16] Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, “Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”, texto disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm [25.08.2022].
[17] A progressividade é instrumento técnico e também princípio, na dicção constitucional, que conduz a elevação das alíquotas à medida que cresce o montante tributável, indicativo da capacidade econômica do contribuinte[...]”. Cf. Sacha COÊLHO, “Curso de direito tributário brasileiro”, 17.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 15.
[18] Cf. Laura FACHINI, “Capacidade contributiva subjetiva e tributação indireta: conciliação necessária à justiça fiscal”, Revista de Direito Tributário e Financeiro, vol. 4, n.º 2, 2018 p. 60, doi:10.26668/IndexLawJournals/2526-0138/2018.v4i2.4777
[19] Laura FACHINI, “Capacidade contributiva subjetiva e tributação indireta: conciliação necessária à justiça fiscal”, Revista de Direito Tributário e Financeiro, vol. 4, n.º 2, 2018, p. 61, doi:10.26668/IndexLawJournals/2526-0138/2018.v4i2.4777
[20] Cf. Laura FACHINI, “Capacidade contributiva subjetiva e tributação indireta: conciliação necessária à justiça fiscal”, Revista de Direito Tributário e Financeiro, vol. 4, n.º 2, 2018, p. 60, doi:10.26668/IndexLawJournals/2526-0138/2018.v4i2.4777