Tatuagem nazista pode caracterizar crime de racismo

02/02/2023 às 13:31
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Recentemente, um homem foi detido no Rio de Janeiro e encaminhado à Delegacia de Polícia pelo fato de ostentar uma tatuagem da cruz suástica, talvez o mais conhecido símbolo nazista. O sujeito também trazia tatuado em seu corpo, tudo em locais expostos, a frase “white proud”, que significa “orgulho branco” em inglês1. Segundo a reportagem sobre o ocorrido2, o agente teria sido liberado em virtude da atipicidade do fato.

O caso naturalmente causou repercussão no meio jurídico, havendo vozes concordando com a atipicidade da conduta e outras defendendo que se tratava de crime de racismo. Neste texto objetivamos, justamente, dar a nossa contribuição ao debate, sendo este o papel da doutrina, auxiliando a jurisprudência na solução dos casos mais complexos à luz do ordenamento jurídico. Passemos então à análise do tema!

Primeiramente, deve-se ponderar que a Lei 7.716/89, mais conhecida como a Lei do Racismo, pune no seu artigo 20, §1º, as condutas de fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Nesse cenário, vislumbramos que ao tatuar o símbolo nazista em seu corpo, o agente possa, sim, ser responsabilizado pelo crime de racismo.

Para tanto, devemos analisar a parte do corpo em que foi feita a tatuagem. Como já deixarmos transparecer, se a cruz suástica for tatuada em local em que as pessoas possam ver, como nos braços, pernas etc., parece-nos que o agente pratica o crime do artigo 20, §1º, da Lei. Isto, pois, o núcleo do tipo, “veicular”, tem o sentido de “difundir” ou “propagar”, o que, de fato, ocorre na hipótese em apreço, pois o símbolo é exposto como se fosse uma bandeira no corpo do agente, difundindo a ideologia nele contida perante as pessoas com quem ele tem contato.

Mister registrar, todavia, que o crime também exige um elemento subjetivo específico, consistente na finalidade do agente em divulgar o nazismo. Ora, nos parece claro que ao tatuar o principal símbolo nazista em uma parte exposta de seu corpo, a pessoa tem a inequívoca finalidade de propagar a sua ideologia preconceituosa e segregadora, como se estivesse transmitindo um recado à sociedade.

Historicamente, o significado de uma tatuagem está diretamente atrelado aos indivíduos que a ostentam. No antigo Egito, por exemplo, algumas mulheres tinham tatuagens que simbolizavam a fertilidade. Já na América do Norte, a tatuagem se associou a práticas religiosas. No antigo Império Romano as tatuagens eram utilizadas como forma de punição e marcação de escravos, prisioneiros e ladrões. Focando no tema discutido neste estudo, é imperioso destacar que, durante o Holocausto, o complexo de Auschwitz, onde foram assassinadas milhões de pessoas, tinha como regra a demarcação de presos, tatuando um número em seus braços com a finalidade de facilitar a identificação após a morte, bem como para enquadrá-los em determinados grupos raciais ou étnicos.

Percebe-se, portanto, que a tatuagem, por si só, já traz toda uma carga simbólica, traduzindo uma ideologia ou um significado especial para aquele que a ostenta, representando, não raro, o sentimento de pertencimento a um grupo. Nesse cenário, entendemos que a tatuagem de uma cruz suástica significa, a toda evidência, que o agente se identifica com a ideologia nazista de tal forma que objetiva propagá-la em seu meio, ostentando-a em seu próprio corpo. Em reforço, no caso em questão o dolo segregador do agente fica ainda mais evidente pelo fato de ele também ter tatuado a frase “orgulho branco”, que traduz uma forma velada de racismo, destacando uma suposta superioridade dos brancos em relação ao povo negro.

Outro aspecto importante e que não pode ser olvidado neste debate, se refere ao fato de que o nazismo de Hitler representa, ao lado da escravidão, uma das maiores expressões de racismo da história da humanidade, sendo responsável pelo assassinato de milhões de pessoas, notadamente os judeus, tidos como inferiores, assim como homossexuais, ciganos e deficientes físicos. Registre-se, ainda, que uma das características do nazismo era a propagação dos seus ideais, razão pela qual o governo censurava e controlava a imprensa e a classe artística, tudo com a finalidade de enaltecer o regime.

Justamente por isso, considerando a relevância deste triste episódio da história da humanidade, nosso legislador entendeu por bem criar, na Lei de Racismo, um tipo penal específico para a punição de condutas que, de qualquer forma, promovam a ideologia nazista, citando, expressamente, os seus símbolos, tais como a cruz suástica e a gamada. Daí por que não temos dúvidas de que a conduta em análise neste texto caracteriza, sim, um crime de racismo.

Ainda com o objetivo de subsidiar nossas conclusões, lembramos que a recente Lei 14.532/2023, alterou a Lei 7.716/89, acrescentando o artigo 20-C, cujo conteúdo apresenta uma regra de hermenêutica ao estabelecer que o juiz deverá considerar discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida e que não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

Com efeito, só se pode concluir que a atitude de tatuar em seu corpo a cruz suástica e a frase “white proud”, deve ser compreendida como discriminatória, causando não apenas constrangimento, humilhação e vergonha ao povo judeu e negro, mas, no caso específico do símbolo nazista, um verdadeiro sentimento de medo, afinal, estamos falando de uma ideologia que pregava o extermínio de pessoas.

Firmado o entendimento pela tipicidade da conduta, passamos à análise de outros aspectos jurídicos relevantes. Primeiro, pontuamos que em analogia ao regramento trazido pelos §§3º e 4º, do artigo 20, da Lei 7.716/89, onde se prevê, de um modo geral, a cessação do conteúdo racista propagado na sociedade, assim como, após o trânsito em julgado, a sua “destruição”, entendemos que, na sentença condenatória, o juiz poderá determinar, sob pena de multa, a “cobertura” ou “remoção” das tatuagens.

Saliente-se, contudo, que não se trataria de “pena corporal” ou “aflitiva”, mas de uma coação ao condenado, com o fim de constrangê-lo a fazer cessar a violação ao bem jurídico tutelado, no caso, a dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade. Na hipótese de o agente insistir na manutenção da tatuagem, além do pagamento de multa, considerando a natureza permanente do crime, entendemos que, uma vez recebida a denúncia, o autor poderia responder por outro crime de racismo sem que se possa cogitar em “bis in idem”. Em tal situação nos valemos do mesmo raciocínio já aplicado pela doutrina e jurisprudência ao crime de Associação Criminosa, em que o agente mantém o vínculo associativo, podendo, nessas circunstâncias, ser novamente punido pelo crime do artigo 288, do CP.

Em conclusão, destacamos que, ao menos em tese, aquele que é responsável por fazer a tatuagem racista (o tatuador), poderá ser punido pelo crime do artigo 20, §1º, da Lei, na qualidade de partícipe, nos termos do artigo 29, do CP, na medida em que concorre para a propagação da ideologia nazista. Evidentemente, seria preciso avaliar o dolo do tatuador, comprovando-se que ele tinha ciência do caráter racista da tatuagem e, sobretudo, que teve a intenção de divulgar o nazismo.


  1. Registre-se que a expressão correta em inglês seria “white pride”.

  2. Disponível: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/01/28/homem-com-tatuagens-nazista-e-racista-e-levado-para-delegacia-mas-liberado.htm . Acesso em 02.02.2023.

Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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