Estupro marital: uma análise histórica, social e regional

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Resumo: O estupro marital consiste na violência sexual praticada de um cônjuge para com outro na constância da união conjugal, mediante violência física ou moral. O presente trabalho teve como objetivo realizar uma breve análise histórica, social e regional acerca deste tema, tendo em vista a discussão não ser recente e ainda sofrer fortes influências a depender da condição social e inserção regional da vítima desse delito. Além disso, de forma secundária foi abordada a violência de gênero voltada para a mulher, bem como o papel desta na sociedade. A metodologia aplicada foi o da ciência social, método estatístico e pesquisas bibliográficas através de doutrinas e demais artigos de cunho científicos com o auxílio de buscadores de dados e das plataformas Google Acadêmico e Academia.edu. Ao final, percebeu-se que mesmo após a criminalização dessa conduta e dos avanços legislativos, ainda perdura na sociedade a ideia de que à mulher resta o papel de serva sexual e doméstica aos seus maridos, sustentada por ideias de uma cultura retrógrada que incide diretamente nas relações sociais que insistem em inferiorizar a figura feminina.

Palavras-chave: Estupro Marital; Liberdade Sexual; Violência de Gênero; Patriarcado.

1. INTRODUÇÃO

O estupro marital é um delito que foi reconhecido e tipificado no Código Penal apenas em 2009, segundo a Lei n. 12.015/20094 que versa sobre os crimes contra a dignidade sexual, anterior a isso, havia a crença de que o sexo era uma das obrigações matrimoniais. Apesar de atualmente haver o reconhecimento desta conduta como um crime, no âmago social ainda existe uma grande parcela que acredita não ser possível incluir o cônjuge como sujeito ativo do crime de estupro, tendo em vista o patriarcalismo enraizado na sociedade brasileira, que põe a figura da mulher à mercê da submissão das vontades do marido ou companheiro.

Ainda em 1860, Elizabeth Cady Stanton, ativista estadunidense, já abordava a figura do contrato de casamento, como instrumento que deveria ser interpretado de forma igualitária e sem discriminação de gênero ou sexo, em suas palavras: “há somente um tipo de casamento que não foi tentado, onde o contrato seria feito por partes iguais entre si que conduziriam a vida em igualdade, com as mesmas obrigações e privilégios para ambos os lados”. Hoje, apesar de muitas discussões e avanços, ainda é possível vislumbrar um país preso a ideias ultrapassadas e à cultura primitiva machista, sendo esta propulsora de diversas formas de violência contra a mulher, inclusive o estupro. A vontade masculina foi considerada por muito tempo enquanto a única necessária para realização do sexo (DIAS5).

De acordo com os dados apresentados pelo IPEA6 em 2009, 2.530.410 pessoas sofreram agressões físicas no país, sendo 42,7% das vítimas mulheres. Esse número se mostra ainda mais expressivo no quesito cor/raça, onde o maior alvo destas agressões são as negras, quando observadas as regiões sudeste e centro-oeste, os dados revelam-se ainda maior entre a incidência de violência contra mulher por quesito cor/raça. Tais dados demonstram que elas sofrem inúmeras violências conjugadas, por razões preconceituosas e machistas, que insistem em colocá-las em posição inferior ao homem. Nessa perspectiva, podemos vislumbrar a concepção social de que homens deveriam ter livre acesso aos corpos das mulheres – como fator de forte influência utilizado por muitos para justificar as agressões sofridas por estas, conforme retrata a cientista política Carole Pateman7.

Após décadas de discussões e lutas do movimento feminista, tornaram-se visíveis diversas agressões dentro do lar, como o estupro marital, fazendo com que essa conduta virasse alvo de discussões. Devido à crença, hoje já ultrapassada, de haver débito conjugal da mulher para com o marido, esta deveria submeter-se a vontade do mesmo, no que diz respeito às relações sexuais, onde sua vontade não era levada em consideração. O próprio Código Penal não previa a conduta específica de estupro dentro de uma relação conjugal, o que dificultava mais ainda a condição da vítima e invalidava as discussões sobre. Atualmente, mesmo após a criminalização da conduta, os desafios para identificar o crime dentro do matrimônio continuam, isso porque há uma forte crença social de que o casamento pressupõe a existência de relações sexuais.

O crime de estupro é caracterizado pela ausência do consentimento da vítima, sobre consentimento Maria Clara Sottomayor8 entende que:

O consentimento frente ao ato sexual possui características específicas que devem ser levadas em consideração. Em primeiro lugar, o consentimento deve ser voluntário e livremente expresso, sendo específico para cada ato sexual. Ademais, é revogável a qualquer tempo, visto que o consentimento dado antes da prática do ato sexual não se coaduna a um consentimento infindo e invariável.

A manifestação do consentimento, segundo Sottomayor, pode ocorrer de forma verbal ou não verbal, por gestos ou expressões de medo ou de repulsa. Nesse sentido, verifica-se que o marido ou companheiro que força a esposa para com ela sexualmente se relacionar utilizando-se de violência ou grave ameaça, comete crime. Entretanto, muitas mulheres não conseguem se quer identificar que estão sendo vítimas desta conduta, acerca do tema, Leonardo Barreto Ferraz Gominho9 relata que:

Muitas mulheres são violentadas sexualmente por seu próprio marido ou companheiro e nem sabem que estão sendo vítimas do crime de estupro, outras até sabem, mas têm vergonha de procurar ajuda, por se tratar de seu marido ou companheiro, e ficam convivendo com essa situação por muitos anos.

Considerando esse contexto, este artigo propõe entender as dificuldades ainda enfrentadas pelas mulheres mesmo após o reconhecimento do crime de estupro dentro das relações conjugais e como a sociedade encara essa conduta apesar da influência do patriarcado. O estudo restringe-se a vítima mulher, não fazendo menção a perspectiva masculina, tendo em vista o gênero feminino configurar o maior número de vítimas desse delito.

2. O ESTUPRO E OUTRAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

O objetivo geral dessa pesquisa consiste em fazer um levantamento bibliográfico e estatístico acerca dessa espécie de estupro e da violência contra a mulher em seu aspecto histórico, social e regional. Para tanto, foi-se utilizado a análise de dados conforme dispostos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Fórum Brasileiro de Segurança Pública e no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Conforme será demonstrado, a obtenção de alguns dados restou-se comprometida tendo em vista o silêncio das vítimas quanto as denúncias. Assim, faz-se necessário evidenciar que o estupro também pode estar presente dentro das relações matrimoniais, e reafirmar a necessidade de encorajar as vítimas desse delito a denunciarem, assegurando-as ao acesso pleno as garantias encontradas nas leis, onde é vetado fazer distinções entre homens e mulheres.

De acordo com o IBGE10, são diversos os quesitos que tornam mulheres ainda mais vulneráveis quando configuradas no polo passivo da violência, entre eles a faixa etária e o fator econômico. Em 2009 após o Instituto realizar um levantamento estatístico, pode-se concluir que mulheres na faixa salarial de até um salário-mínimo são as que possuem as maiores incidências de agressões físicas. Dessa forma, torna-se necessário demonstrar que as relações conjugais dentro de uma sociedade patriarcal são marcadas pelo poder e hierarquia, como uma forma de denominação, sendo o fator econômico uma das formas de reafirmar a perpetuação do poder masculino.

2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS

A mulher desde os primórdios é colocada em papel inferior ao homem, seja em atividades profissionais ou nas tarefas de casa, pois enquanto ao homem é destinada o sustento financeiro, à mulher fica encarregada da complementação desta renda, mais também com as responsabilidades domésticas e sobre a criação dos filhos. Com isso, a sociedade costuma normalizar certas condutas, atribuindo a dupla jornada e papeis desgastantes como “função da mulher”. Como menciona Annanda Santana11 em seu estudo sobre a temática:

O patriarcado é um fator que deu origem a essa segregação. Trata-se de um sistema sociopolítico que põe os homens em situação de poder e inferioriza as mulheres, as colocando como seres mais fracos, o que, consequentemente, as incentiva a acreditar que não possuem capacidade de decisão e estão subordinadas às decisões masculinas.

Assim, ao observar o estupro marital sob a perspectiva do patriarcado, conclui-se que as relações íntimas eram uma forma de escravização das mulheres onde satisfaziam exclusivamente as vontades dos seus maridos, reduzindo a sexualidade feminina como algo ultrajante. Diante disso, a população feminina é dividida em dois polos: as santas, dignas de respeito, ou as prostitutas, desvirtuadas, indecentes ou promíscuas, que possuem postura sexual ativa (LANA12). O primeiro polo, ou seja, a castidade e pureza, era a conduta na qual a sociedade esperava das mulheres, sendo então o bem jurídico tutelado, a sexualidade recatada, com base em interesses masculinos.

As autoras Vanessa Chiari Gonçalves13 e Marina Nogueira de Almeida14, em seu artigo “A exposição pública não consentida da intimidade sexual: entre a tipificação e a culpabilização da vítima” demonstram como o Direito Penal brasileiro possui o histórico de escancarar o machismo, quando mencionam os códigos penais de 1890 e 1940, que traziam termos como “mulher honesta” em oposição ao termo “mulher pública”. Tais distinções faziam a sociedade acreditar que apenas a mulher considerada “pura” merecia ser protegida pela lei. Atualmente, como bem mencionam Renato Marcão e Plínio Gentil15, em sua obra “crimes contra a dignidade sexual”, a dignidade que se entende ser tutelada no rol desses crimes, é a dignidade da pessoa humana, aquela oriunda da Constituição Federal. Portanto, é superada a ideia de que apenas mulheres vistas como “dignas” para a sociedade merecem proteção, apesar desta afirmação restar encontrada na legislação apenas, uma vez que no âmbito social ainda perdura um entendimento machista.

O código civil de 1916 trazia em seu bojo a obrigação da mulher casar-se virgem, caso o marido descobrisse em até 10 (dez) dias que a esposa não havia se casado virgem, era possível pedir a anulação do casamento, com a concepção do sexo enquanto obrigação marital. Atualmente, ainda permeia na sociedade a ideia de que o esposo deve cobrar o “pagamento” por ter casado, sendo este, o sexo. Conforme retrata Marcelle Queiroz de Almeida16, ainda existe dificuldade de enxergar o matrimônio como uma extensão da afetividade, um vínculo criado de maneira livre, desprovido da mera intenção de manutenção da espécie ou um fardo a ser carregado para sempre. Acerca da temática Maria Berenice Dias17 leciona:

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Portanto, de todo desarrazoado e desmedido pretender que a ausência de contato físico de natureza sexual seja reconhecida como inadimplemento de dever conjugal. Forçar o exercício do “direito” ao contato sexual pode, perigosamente, chancelar a violência doméstica. É bom lembrar que, por muito tempo, prevaleceu a tendência de desqualificar o estupro conjugal.

Richards18, mencionava que a concepção de indissolubilidade do casamento reforça a ideia do permanente vínculo entre a esposa e o marido. Dessa forma, verifica-se que o intuito primordial da união conjugal era procriar, assim, ficava em segundo plano qualquer discussão acerca do desenvolvimento sexual, principalmente feminino, de forma a normalizar a submissão de mulheres a seu marido e não haver o reconhecimento social para a conduta do estupro marital como crime.

2.2 DÉBITO CONJUGAL: ANÁLISE SOCIAL

Antônio Chaves define o débito conjugal como o direito-dever do marido e da sua mulher de realizarem entre si o ato sexual19. Do ponto de vista social o débito conjugal perdura na atualidade com a crença de que o casamento presume a realização de relações sexuais entre os parceiros, o que coaduna com boa parte da doutrina civilista que defendem que o termo “coabitação” previsto no Código Civil está além da simples convivência comum dos cônjuges. Nas palavras de Orlando Gomes a coabitação representa mais que a simples convivência sob o mesmo teto, não só convivência, mas união carnal. (...) Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito20.

O tema divide opiniões, doutrinárias e sociais. Com o reconhecimento dos direitos sexuais femininos, muitas são as pessoas que compreendem como teoria superada o débito conjugal, não sendo, portanto, justificativa para tolerar o abuso de companheiros para com suas esposas. O estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal21. Para Ferraz, este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontrando inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, deste modo não podendo o marido forçar ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa.22Nesse sentido, defende Mirabete que embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar.23

Uma pesquisa realizada em 2015 pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada – IPEA revelou que 27% dos brasileiros entrevistados admitem que a mulher deva servir sexualmente o marido, independentemente da vontade dela. Conseguinte, a mesma pesquisa demonstra que 9% dos estupros praticados contra mulheres adultas, têm como agressor, o cônjuge. Dessa maneira, fica evidente que mesmo após a longa discussão doutrinária, legislativa e social, ainda persiste a ideia de que a figura feminina corresponde a um objeto de exploração sexual de seus maridos, desprovidas de vontade e de direitos sexuais.

2.3 TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA

Com o advento da Lei n. 12.015/2009 a norma penal modificou seu texto legal, onde antes continha a expressão “mulher” agora passara a ter “alguém”, caracterizando dessa forma um marco quanto a liberdade sexual, pois antes dessa lei o crime de estupro só ocorreria se houvesse a figura feminina como sujeito passivo. A adoção do preceito amplia a configuração do tipo penal, resguardando agora a condição da mulher vítima dessa violência no próprio lar.

O crime em questão possui em comum as características do delito previsto no artigo 213 do Código Penal – qual seja, o estupro. Nesse caso, o cônjuge ou companheiro compele sua vítima – sendo esta sua parceira, a ter relação sexual ou outro ato libidinoso, com o uso de violência ou grave ameaça. O estupro marital necessita de uma característica específica da vítima, que ela seja esposa, ex-esposa ou namorada. Segundo Júnior Araújo24, na união estável também pode acontecer o crime.

Apesar do patriarcado inserir na sociedade a ideia de que a mulher deve corresponder a vontade do homem dentro da relação matrimonial, é compreendido pela legislação que nenhum vínculo, permita ou justifique qualquer que seja a espécie de violação, inclusive a sexual, tendo em vista ser uma escolha de caráter pessoal, dispor ou não do próprio corpo. Para a configuração desta infração é importante compreender a falta de consentimento da vítima, no entanto, é dificultoso comprovar o dissenso da vítima nas relações sexuais íntimas, vez que inexiste a figura de testemunhas ou meios de prova capaz de identificar o momento que a mulher deixou de consentir o ato sexual ou outro ato libidinoso, (SANTOS25).

Renato Floriano de Sousa26 esclarece que, mesmo com a ampliação da norma, objetivando abarcar outras condutas, como o estupro marital, existe no imaginário social a ideia de que o crime só ocorra em becos ou vielas, nunca no ambiente familiar, o que dificulta a constatação do mesmo.

Apesar de atualmente o crime de estupro marital restar amparado pela legislação, ainda existem diversas discussões doutrinárias sobre existir ou não estupro, dentro das relações conjugais. Juristas como Hungria e Noronha27, entendem que não é possível o homem cometer crime de estupro contra sua companheira, tendo em vista o débito conjugal desconfigurar a conduta para exercício regular do direito. Para a segunda corrente, esta adotada nos dias de hoje, tendo como adeptos Damásio de Jesus e Celso Delmanto, onde reconhecem o marido como sujeito ativo no crime de estupro.

Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. (Celso Delmanto 28).

A ONU29 expediu um relatório do Fundo de População, onde afirma que 22% (vinte e dois por cento) dos países não existem lei contra o estupro dentro do casamento. Apesar de o Brasil coibir essa conduta, aspectos sociais, econômicos, e culturais, atrelados à desigualdade de gênero podem dificultar as denúncias e a responsabilização dos agressores.

2.4 OMISSÃO DAS VÍTIMAS

O ordenamento jurídico deve acompanhar as mudanças sociais. A relação entre Direito e Sociedade é bilateral. Anteriormente às mudanças trazidas no âmbito dos crimes contra a dignidade sexual, era possível, como uma forma de reparar o dano, o casamento do agressor sexual com sua vítima. Na tentativa de atender aos anseios da comunidade e abarcar as novas condutas, a prática não é mais reconhecida como exclusão da ilicitude.

Em 2019 o Anuário Brasileiro de Segurança Pública demonstrou que 76% das violências sexuais sofridas por mulheres aconteciam dentro do lar, entretanto apenas 7,5% formalizavam a denúncia. Esses dados se confirmam quando a pesquisa se delimitou na busca para o âmbito da violência doméstica sexual, não sendo encontrado nenhum dado específico, demonstrando a dificuldade da captação de informações acerca do crime de estupro marital e a omissão de suas vítimas.

O DataSenado em 2009, limitou-se a buscar informações acerca do que levava as vítimas a se omitirem quanto as denúncias, sendo apontados: medo da violência em casa aumentar, dependência financeira e emocional, como os principais motivos.

2.5 DOS OBSTÁCULOS PARA REALIZAÇÃO DA DENÚNCIA

Dado a escassez dos dados estatísticos sobre a temática, restou-se percebido que as denúncias desse tipo de estupro não ocorrem com frequência. Por diversos motivos as vítimas deixam de denunciar seus parceiros às autoridades, o que dificulta o registro estatístico desse crime. As vítimas se sentem envergonhadas em denunciar o crime de estupro pela repercussão que poderia gerar diante da sociedade e ainda, muitas delas depende financeiramente dos maridos, como discorre Ivânia Teixeira30. Ademais, outro fator que dificulta a denúncia nessa espécie de estupro, decorre do fato de que muitas mulheres se querem sabem que estão sendo vítimas de um crime, em razão da crença de que com o matrimônio deve ceder aos desejos sexuais do marido, nesse sentido, esclarece Juliane Silva Siqueira31:

Tem-se também que tirar da cabeça das pessoas a ideia de que quem pratica estupro é necessariamente um doente mental que vive nas ruas em busca de uma vítima. O estupro pode acontecer dentro de casa e não só cometido por conhecidos como também por parentes e até pelo próprio marido ou companheiro, não necessariamente é preciso de agressão física para ocorrer o estupro a agressão psicológica também conta e dentro do casamento a vítima está muito mais vulnerável por se tratar de ser seu marido ou companheiro, pai dos seus filhos que comete tal ato ilícito.

Em um estudo realizado por TAVARES32, foi possível observar como o crime se desenvolve no Distrito Federal, através de dados fornecidos pela Polícia Civil da região. Na ocasião, a autora constatou que dos 13% de denúncias em que conseguiram identificar o agressor dos crimes de estupro tentados e consumados, 12% referem-se ao cônjuge ou companheiro da vítima. Os dados presentes na pesquisa da autora não estão distantes do restante do país, pois em 2019, uma pesquisa realizada pelo Dossiê Mulher revelou que no ano antecedente, 4.543 mulheres foram vítimas de estupro no estado do Rio de Janeiro, sendo que 9,7% foram vítimas por seus próprios companheiros. Entretanto, apesar dos números alarmantes de vítimas do estupro marital, estima-se que há ainda mais, em razão de muitas mulheres não realizarem a denúncia dessa agressão.

Dessa forma, fica claro que o estupro marital, em sua grande maioria, é desconhecido pelas autoridades, encorajando o autor a prática do delito.

3. ESTUPRO MARITAL: UMA DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Rahellen Santos33 descreve a violência de gênero como qualquer tipo de agressão contra alguém em situação de vulnerabilidade devido a sua identidade de gênero ou orientação sexual. O gênero contribui para a violência ao atrelar a sexualidade da mulher a uma forma de subordinação, a colocando como submissa e fraca. A socióloga marxista brasileira Heleieth Saffioti, lecionava que “ao ditar as regras da sexualidade, homens e mulheres são classificados pelo gênero e separados em duas categorias: uma dominante, outra dominada [...] A sexualidade, portanto, é o ponto de apoio da desigualdade de gênero”.

Reconhecer o estupro marital como uma das formas de violência de gênero, é afirmar que a sexualidade construída pelo gênero apoia a desigualdade e a supremacia de um sexo sobre outro. No estupro não existe o desejo sexual, mas sim o exercício de domínio, controle e subjugação34. SAFFIOTI, escreve acerca do espaço privado – este destinado a privacidade e intimidade. No entanto, essa privacidade se vê violada quando o que se tem são inúmeras mulheres violentadas dentro do casamento35. Caroline Placca36 sobre o tema recordava que ceder a relação sexual, independentemente do desejo sexual, para satisfazer a vontade do parceiro, é a realidade de inúmeras mulheres, que acreditam ser um dever ceder ao desejo dos seus companheiros.

3.1 A CULTURA DO ESTUPRO E A CULPABILIZAÇÃO DAS VÍTIMAS

A cultura em sua grande maioria nos remete a algo positivo, de maneira que torna incômodo para muitos o termo “cultura do estupro”. Dessa forma, afirmar que na sociedade brasileira persiste a cultura do estupro, não quer dizer que esta seja conivente com essas condutas criminosas, mas sim que há uma aceitação de determinados comportamentos ruins. Conforme o texto de cunho jornalístico publicado por Dominique Maia e Letícia Medeiros:

O termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos tanto sutis, quanto explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” reforça a ideia de que esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, podemos mudá-los.37

A cultura do estupro reforça a ideia de que a vítima seria a principal culpada pela conduta do seu cônjuge. Quanto a isso a doutrina chama de culpabilização da vítima, quando o foco é retirado do agressor e a responsabilidade recai sobre a vítima. Essa inversão da culpa normaliza ou duvida da veracidade acerca da denúncia de violência sexual reportada por mulheres, levando em consideração suas vestimentas, ambientes que frequenta ou vida sexual da mulher, dessa forma, o machismo sustenta a cultura do estupro e a culpa da figura feminina pela agressão.

Dessa forma, é preciso assegurar que a cultura não seja utilizada como justificativa para normalizar condutas ilícitas e violentas, sobretudo praticadas contra mulheres.

4. A REGIÃO NORDESTE E O MACHISMO

A obra de Jorge de Lyra e Benedito Medrado “De guri a cabra macho: masculinidades no Brasil38” aborda que existem relações de poder no âmbito cultural, o qual são bases para a formação da identidade de gênero. Dessa forma, tanto a ficção como a realidade reforçam os papeis distintos de mulheres e homens nordestinos, quando desde os primórdios é atribuído ao homem nordestino a ideia de “cabra-macho” para impor violência em suas relações de poder e dominação para com as mulheres.

A jornalista Adriana Negreiros39 narra como o estupro era arma de dominação feminina no cangaço. Em uma análise da obra, a revista Marie Claire publicou:

O primeiro estupro coletivo descrito no livro é o de uma jovem casada com um homem de 80 anos. Inconformado com a união, Lampião degolou o marido e, na sequência, estuprou a menina. Foi seguido por seus asseclas, em um ritual que se repetiria com as mulheres, mães e filhas de inimigos e delatores, muitas vezes na frente deles, como instrumento de humilhação. Lampião, o chefe, era sempre o primeiro a penetrar as vítimas. 40

Devido à abordagem masculina que perpetuaram na história acerca de Maria Bonita, muitos acreditavam e ainda acreditam que com as mulheres dos cangaceiros era diferente, no entanto a dominação masculina era ainda pior com suas companheiras, às elas restavam os afazeres domésticos, assim como os de servas sexuais, quando estas ficavam viúvas eram destinadas a outro “dono” pertencente ao bando, como retrata Adriana Negreiros. Devido a forte influência da história, ainda hoje perdura na sociedade nordestina a ideia que à mulher resta à função de doméstica e submissão a seus maridos, que devem sustentar o estereótipo de “cabra-macho”.

Nesse viés, após estudo divulgado pela ONU em parceria com a Universidade Federal do Ceará, ficou constatado que em média 17,2% das mulheres que vivem em capitais nordestinas sofreu violência física pelo menos uma vez na vida. Os dados coletados pela Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, revela a predominância de violência doméstica do tipo sexual contra mulheres nos estados de Aracaju, Fortaleza e João Pessoa.

Uma pesquisa realizada pelo Tribunal de Justiça do Piauí a partir da aplicação de questionários em vítimas de violência doméstica, entre os anos de 2019 e 2022, revela que em 26% desses questionários, as mulheres relataram que foram obrigadas uma ou mais de uma vez a fazerem relações sexuais com os autores da violência doméstica – seus cônjuges. Para Nadine Gasman, da ONU Mulheres Brasil, o machismo enraizado no Nordeste é uma das causas do índice alto de violência doméstica na região. A juíza Keylla Ranyere, Coordenadora Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJPI, ressalta que:

Existe essa cultura de que a mulher tem a obrigação de estar disponível sexualmente para o marido e para companheiro, e isso não é verdade. Existe a necessidade de permissão. Se a relação sexual for forçada de qualquer modo, é estupro, não importa se é a esposa ou a companheira, isso é crime e deve ser punido.

Dessa forma, é necessário desmistificar que o papel da mulher é de servir ao homem, mesmo que em uma relação matrimonial. E ainda, impedir que seja utilizada como justificativa os resquícios culturais já ultrapassados de uma determinada região como forma de validar a violência.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório como o advento da Lei n. 12.015/2009 configura um grande avanço legislativo quanto à proteção aos direitos das mulheres, uma vez que criminalizou a conduta coercitiva do marido para com sua esposa com a intenção de com ela manter relação sexual, como crime.

Atualmente, ainda são muitas as mulheres que silenciam acerca das violências sofridas dentro do próprio lar, levando em consideração a escassez de dados estatísticos sobre denúncias quanto o crime de estupro marital, apesar de ser um fato sua existência. É inadmissível considerar como justificativa para a prática de uma conduta ilícita, especulações acerca dos deveres matrimoniais, em razão desta teoria ser considerada superada para a legislação. Assim, é fato que quando uma esposa se negar a ter conjunção carnal com o marido deverá ter sua escolha respeitada e fará jus de toda e qualquer proteção disposta em lei. No entanto, leva muito tempo para que determinadas condutas, ora reconhecidas como crime para as normativas, sejam socialmente reprováveis.

Apesar de importante todos os avanços até aqui conquistados pelas mulheres, ainda há um longo caminho a ser superado, em razão do contexto machista que a sociedade brasileira está inserida, o que demonstra que mesmo apesar da criminalização de práticas que ataquem os direitos femininos, estas ainda sofrem com a forte influência do fator social que coaduna com a objetificação e inferiorização feminina.

Dessa forma, este artigo buscou demonstrar que mesmo apesar do crime de estupro marital ser uma conduta passível de tanto homens quanto mulheres serem vítimas, em sua grande maioria é a figura feminina que se encontra no polo passivo desse ilícito, devido à predominância de uma cultura machista, de forma que dificulta a efetivação da denúncia pelas mulheres. Bem como pontuar que mesmo após a criminalização da conduta se faz necessário continuar em busca de formas eficazes para evitar que o machismo continue fazendo vítimas pelo país, tendo em vista que a responsabilização criminal por si só não é capaz de mudar uma sociedade.

Apesar de íntimo e delicado o tema, é necessário que seja promovido mais discussões dentro da sociedade sobre, como uma forma de enfraquecer a ideia de que existe um débito o qual a mulher casada deve ao marido, e ainda garantir que seja de conhecimento de todos que o direito a liberdade sexual não faz qualquer distinção, sendo passível de punição qualquer ato atentatório a esse direito, ainda que praticado por um cônjuge/companheiro.

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Sobre os autores
Jairo de Sousa Lima

Advogado. Professor da FAESF-PI. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bacharel em Direito pela Faculdade de Ensino Superior de Floriano. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, pela Uninovafapi. Advogado da ABECS-PI (Associação beneficente de cabos e soldados e bombeiros militares). Membro da ANACRIM. Presidente da Subcomissão de Relacionamento com o Poder Judiciário da OAB/PI. Palestrante. Autor de dois livros e mais de 70 artigos jurídicos publicados no Canal Ciências Criminais e outros portais e revistas. WhatsApp (89) 9 9474 4848

Érica Mirele dos Santos Rocha

Graduanda do curso de Direito pela Faculdade de Ensino Superior de Floriano – FAESF

Maria Eduarda Feitosa Fontinele

Graduanda do curso de Direito pela Faculdade de Ensino Superior de Floriano – FAESF

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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