O caso das terras de marinha da ilha de São Luís

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Este pequeno artigo crítico tem a intenção de trazer à baila a condição de extensão e possibilidades, trazidas sobre bens públicos, frente a alteração constitucional havida no rol de bens da União, introduzidas pela EC 46/2005, que trouxe uma nova redação do inciso IV do Art. 20 da Constituição Federal, e propiciou a mudança no enunciado de bens públicos da União, ao excluir, como bens da União, as terras de marinha de ilhas oceânicas e as costeiras, que contenham sede de Municípios. Assim, se destaca que a restrição que havia ao direito de propriedade, em várias regiões de ilhas, como a ilha de São Luís, em razão de se constituírem em áreas de marinha, portanto, de propriedade da União, foi profundamente alterada.

Pela Constituição Federal de 1988, os bens imóveis pertencentes à União são aqueles mencionados no Art. 20, incisos II, IV, VII, X e XI, a saber: (…) IV- as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de municípios (grifo nosso), exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no Art. 26, II. Ao mesmo tempo, o Art. 49, § 3º, do ADCT, da CF/88, manteve o regime de enfiteuse aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança. Ora, os terrenos de marinha são terras da União no litoral, situados entre a linha imaginária da média das marés registrada no ano de 1831 e 33 metros para o interior do continente. Apesar do nome, terrenos de marinha nada têm a ver com a Armada Marinha. O seu conceito foi instituído ainda no tempo do Império, com a vinda de D. João VI e da família real. As terras eram destinadas à instalação de fortificações de defesa contra invasões marítimas. A medida de 15 braças, equivalente a 33 metros, era considerada a largura suficiente para permitir o livre deslocamento de um pelotão militar na orla e assegurar o livre trânsito para qualquer incidente do serviço do rei e defesa do país. Foi o Aviso Imperial de 12.7.1833 que definiu terrenos de marinha.1 Quem vive nos imóveis em terrenos de marinha é obrigado a pagar o laudêmio (uma taxa de 5% sobre o valor do imóvel quando comercializado) e o foro (taxa anual correspondente a 0,6% do valor da edificação). Há ainda a taxa de ocupação, de 2% ou 5%, cobrada de quem ainda não firmou um contrato de aforamento, uma espécie de arrendamento, com a União.

Fazendo-se uma digressão sobre o conceito, pode-se dizer que bens públicos são bens de titularidade do Estado, necessários ao desempenho de funções públicas, submetidos a um regime jurídico de direito público. São titulares de bens públicos a União, Estado e Municípios. É o Código Civil de 2002, no seu artigo 98, que estatui que são públicos os bens do domínio nacional pertencentes as pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Ou seja, bens públicos são os que pertencem ao domínio nacional, qual seja, à União, aos Estados ou aos Municípios. De modo que, conforme a pessoa jurídica de direito público interno a que pertencerem os bens públicos serão federais, estaduais, municipais. Os bens particulares são os que tiverem como titular de seu domínio pessoa natural ou jurídica de direito privado. Assim, também, dispõe o Art. 99, do CC, que são bens públicos os de uso comum do povo, tais como rios, mares estradas, ruas e praças; os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; e os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Já os bens dominicais são os que compõem o patrimônio da União (CF, arts. 20,1 a XI, e 176), dos Estados (CF, art. 26,1 a IV) ou dos Municípios, como objeto do direito pessoal ou real dessas pessoas de direito público interno (CC, art. 99, III). Se a lei não dispuser o contrário, são dominicais os que pertencerem a pessoa jurídica de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado (CC, art. 99, parágrafo único). Os bens públicos dominicais podem, por determinação legal, serem convertidos em bens de uso comum ou especial.2

Observa-se que a maioria da doutrina administrativista aponta que as expressões bens dominicais e bens dominiais são sinônimas3. Portanto, como bens públicos dominicais, os terrenos de marinha podem ser alugados, cedidos, aforados e, em regra, alienados (artigos 64 e 110, CC), salvo os terrenos de marinha situados na faixa de segurança, aos quais é imposto regime obrigatório de enfiteuse, nos termos, como já citado, do Art. 49, § 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e que, por conseguinte, são excluídos das hipóteses de remissão de terrenos da União aforados (Art. 103 e 122 a 124 do Decreto-Lei nº 9.760/1946). Demarcados, cadastrados e registrados, os terrenos de marinha estão aptos a ser aforados, pois a proibição de constituição de aforamento de que trata o Art. 2.038 do Código Civil não alcança a enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos, por ser regulada em lei especial, conforme ressalva o § 2º do mesmo artigo do Código Civil. Em razão dessa alteração restaram no patrimônio da União, nas ilhas costeiras, apenas as áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, posto que, ao excetuar as áreas referidas no Art. 26, II, o dispositivo explicita que os bens da União não integram as áreas pertencentes aos Estados, aos municípios e aos particulares nessas ilhas. Um dos principais meios de utilização de bens públicos por particulares é o anfiteuse/aforamento. E por meio dessa figura são cobrados, o laudêmio, o foro e a taxa de ocupação. A taxa de ocupação é aquela paga pelo ocupante. É de 2% a 5% do valor do domínio pleno. Foro é o equivalente a 0,6% sobre o valor do domínio pleno, de acordo com o artigo 88 da CF88. É pago anualmente. O aforamento é constituído pela transcrição no cartório do registro de imóveis. Pode-se ver por consectário, e por extensão da alteração constitucional, que foi alterada a dominialidade dos terrenos de marinha situados nas ilhas costeiras, tais como São Luís/MA, Vitória/ES e Florianópolis/SC, que passaram a não mais pertencem à União.4

Bem, aqui se destaca o caso em tela de como a extensão dessa alteração constitucional afetou a discussão das terras da Ilha de São Luís, na qual ficam localizados os municípios de São Luís, Paço do Lumiar e S. José de Ribamar. Por extensão, a mudança constitucional afetou algumas terras de marinha, ali localizadas, e a propriedade foi transferida para o Estado do Maranhão e em seguida deste para o município de São Luís, mediante arredamento da União, para efeitos de urbanização municipal.5 Durante muitos anos, houve uma disputa entre a União e os municípios da Ilha de São Luís sobre a cobrança de impostos de competência dos Municípios, como o IPTU, ITBI, ISS, e a cobrança de foro, laudêmio e taxa de ocupação pela União, por meio do SPU. Isso causava contenciosos judiciais que abalavam, inclusive, a receita municipal. Depois de 2005, então, coube ao judiciário e ao próprio STF se pronunciarem sobre várias questões. É o que demonstram decisões no âmbito dos tribunais regionais e os tribunais superiores (STF/STJ). É o caso da RE 636199 de Tema 676 Repercussão Geral - Situação dos terrenos de marinha localizados em ilhas costeiras com sede de município, após o advento da Emenda Constitucional 46/2005. Relator: MIN. ROSA WEBER que veio resolver a dúvida sobre se esses terrenos eram bens da União, portanto, cabendo ao SPU a cobrança de laudêmio e foro anual nos terremos das ilhas onde estão os municípios das capitais do Maranhão, Santa Catarina e Espírito Santo.

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Para melhor compreensão transcreve-se a decisão:

“1. Recurso extraordinário em que se pretende ver reconhecida a inexigibilidade do pagamento de foro, laudêmio e taxa de ocupação, tendo em vista o aproveitamento, por particulares, de terrenos de marinha e acrescidos localizados nas ilhas costeiras do Município de Vitória, Espírito Santo. Tema nº 676 de repercussão geral. Controvérsia sobre a situação dominial dos terrenos de marinha e seus acrescidos localizados em ilha costeira com sede de Município, à luz do art. 20, IV, da Constituição da República, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 46/2005. 2. O domínio da União sobre as terras situadas nas ilhas litorâneas (art. 20, IV) foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ACO 317 (Relator Ministro Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, DJ 20.11.1992), resguardada a legitimidade de eventual transferência da titularidade para os Estados, pelos meios regulares de direito (art. 26, II). 3. A alteração introduzida pela Emenda Constitucional nº 46/2005 criou, no ordenamento jurídico, exceção à regra geral então vigente sobre a propriedade das ilhas costeiras. Com a redação conferida ao art. 20, IV, da Constituição da República pelo constituinte derivado, deixaram de pertencer à União as ilhas costeiras em que sediados entes municipais, expressamente ressalvadas, no novo comando constitucional, as “áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal e as referidas no art. 26, II”, que remanesceram no patrimônio federal. 4. Antes da Emenda Constitucional nº 46/2005, todos os imóveis situados nas ilhas costeiras que não pertencessem, por outro título, a Estado, Município ou particular, eram propriedade da União. Promulgada a aludida emenda, deixa de constituir título hábil a ensejar o domínio da União o simples fato de que situada determinada área em ilha costeira, se nela estiver sediado Município, não mais se presumindo a propriedade da União sobre tais t [...]”. 6

Para o STF, restou consolidado que se a integralidade do território das ilhas costeiras sedes de Município antes pertencia à União, agora não mais pertence, essa a única modificação perpetrada pela EC 46/05. No entanto, existindo nessas ilhas terrenos de marinha (…) no caso concreto, a jurisprudência da Corte ratificou o reexame da legislação infraconstitucional (mormente dos Decretos-leis nºs 9.760/46 e 178/67, dos Decretos nºs 66.227/70 e 71.206/72, do Código Civil e das leis atinentes a registros públicos) e do conjunto fático e probatório dos autos a controvérsia relativa à aferição, para efeito de cobrança de foro, laudêmio ou taxa de ocupação após a EC nº 46/05, dos elementos hábeis a corroborar a prévia existência de justo título de propriedade por parte da União das terras localizadas na gleba Rio Anil, nos moldes do art. 20, inciso I, da Constituição Federal. Tudo isso foi, após a EC 46/2005, disciplinado pela Lei 13.240 de 2015, cujos principais comandos passaram a permitir tratar da política de conversão dos domínios úteis dos particulares ao domínio pleno através, principalmente, da alienação. Novas possibilidades surgiram, assim, para o município e munícipes da Ilha de São Luís.


  1. SILVA JUNIOR, João José. TV Justiça - STF - Programa Saber Direito Aula. O laudêmio e sua juridicidade. 2012.

  2. Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: volume 1; teoria geral do direito civil. São Paulo:Saraiva, 2012.

  3. Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro. Forense. 2021

  4. Milhomem de Costa, Valestan. Bens públicos - Imóveis da União - Terrenos de marinha - Problemas gerados pelas enfiteuses. Boletim do IRIB em Revista Edição 345.

  5. Albuquerque, Pedro Joaquim da Silva. A restrição ao direito de propriedade da gleba Rio Anil: a (in)constitucionalidade da taxa de ocupação, do foro e do laudêmio. UFMA. 2017.

  6. Brasil. STF. Disponível em:https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=RE%20636199&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true&origem=AP. Acesso em: 24 abr 2021.

Sobre o autor
Israel Fernando de Carvalho Bayma

Advogado; Engenheiro eletricista, com especialidade em eletrônica e telecomunicações; Especialista em Regulação de Telecomunicações pela UnB; Especialista em Assessoria Parlamentar pela UnB. Foi engenheiro do setor elétrico por mais de 40 anos; Diretor de Planejamento e Engenharia da Eletrobrás-ELETRONORTE e Conselheiro Consultivo da ANATEL; Graduado em Direito na Escola de Direito e Administração Pública (EDAP) do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília); Conciliador e Mediador Extrajudicial. Além da Advocacia e da Engenharia, desenvolve atividades de consultoria especializada nas áreas de conhecimento. ORCID 0000-0002-2248-3627.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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