Artigo originalmente publicado no livro: Damiani, Suzana; Hansel, Cláudia Maria; Quadros, Maria Suelena Pereira de. (Org.). Cultura de Paz: processo em construção. 1ed.Caxias do Sul: Educs, 2017, v. , p. 78-100.
Mateus Salvadori [1]
César Augusto Cichelero [2]
Resumo: O capítulo tem como temática a teoria social crítica proposta por Axel Honneth em sua obra Luta por Reconhecimento. O autor parte da filosofia hegeliana para resolver o déficit intersubjetivo identificado na teoria de seu antecessor, Habermas, como solução Honneth afirma que o motor da sociedade é o conflito, a luta pelo reconhecimento. Como as identidades são construídas neste conflito, é o reconhecimento que assume uma forma de restaurar as relações distorcidas entre os sujeitos evitando as patologias sociais. O reconhecimento acontece três esferas distintas, amor, direito e solidariedade, e, para Honneth ele é uma questão ética, ligado à ideia de realização plena de uma boa vida.
INTRODUÇÃO
Seguindo a tradição da Teoria Crítica, da mesma forma que Habermas apresentou sua teoria como solução para impasses de Adorno e Horkheimer, Axel Honneth propõe uma revisão dos problemas não solucionados por Habermas (NOBRE, 2003). Primeiramente, é importante ressaltar as observações que Honneth faz acerca da teoria de Horkheimer. Ele entende que a “estrutura conceitual utilizada por Horkheimer é tão centrada na noção de trabalho que não permite o desenvolvimento teórico de outros espaços de atividade humana”. (SOUZA, 2009, p. 31). A solução de Habermas [3], segundo Honneth, não foi suficiente, pois apenas alargou o conceito da racionalidade e ação social, não resolvendo o problema completamente. Afinal, o que vigorava na Teoria Crítica era uma concepção de sociedade em dois polos sem nada a mediá-los; esta concepção fundada em “estruturas econômicas determinantes e imperativas e a socialização do indivíduo, sem tomar em conta a ação social como necessário mediador. É o que Honneth denomina ‘déficit sociológico da Teoria Crítica’”. (NOBRE, 2003, p. 16).
1. Teoria Crítica e a superação do “déficit sociológico”
O que Honneth aponta é a “ausência de uma dimensão específica de ação social que dê conta de relacionar as motivações sociais para a ação com o movimento histórico de institucionalização de padrões sociais”. (SOUZA, 2009, p. 77). Dessa forma, ainda que Honneth concorde “com Habermas sobre as necessidades de se construir a Teoria Crítica em bases intersubjetivas e com marcados componentes universalistas” (NOBRE, 2003, p. 17), a crítica de Honneth é de que a teoria deste é incapaz de ver o sistema e sua lógica instrumental como resultado de permanentes conflitos sociais.
Assim, o que Honneth propõe é de que a base da interação é o conflito e a sua gramática, a luta pelo reconhecimento. Não que com essa abordagem Honneth desconsidere a importância da reflexão da linguagem, mas o que ele busca é uma nova abordagem antropológica diferente de Habermas, que permita aproximar a Teoria Crítica das questões sociais que são fruto de uma relação intersubjetiva. (CESCO, 2015, p. 17). Então, a construção de um novo modelo de teoria crítica que supere o “déficit sociológico” através de análise baseada no social resulta na obra estudada a seguir.
Vale ressaltar, nesse momento, para maior entendimento, que para Honneth a sua teoria do reconhecimento se encontra em um ponto mediano entre a proposta de Kant e os comunitaristas. Ela “(...) partilha com aquela moral kantiana o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha com estas comunitaristas a orientação pelo fim da autorrealização humana”. (HONNETH, 2003, p. 258).
A obra Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003) é a primeira tentativa de Axel Honneth sistematizar sua teoria crítica. Ainda que tenha muito da teoria de seus antecessores da Escola de Frankfurt, Honneth afasta-se das influências da primeira geração (Marx) e da segunda geração (Kant) e busca na associação da filosofia do jovem Hegel – período anterior à publicação de Fenomenologia do Espírito, associada com a psicologia social de Mead e Winnicott o desenvolvimento da categoria reconhecimento.
Para uma melhor compreensão do que significa a categoria reconhecimento para Honneth é necessário entender as origens que ele busca para a sua teoria. Honneth inicia o estudo do que se entende por luta por autoconservação, sendo assim, ele afirma que Maquiavel é o primeiro filósofo que manifesta a convicção de que o campo da ação social consiste numa luta permanente dos sujeitos pela conservação de sua identidade física. (HONNETH, 2003, p. 33).
A luta por autoconservação é uma mudança total do foco antropológico da filosofia política da época, que pela tradição aristotélica tinha as relações comunitárias da polis como o fundamento da ontologia social. Ao contrário, Maquiavel concebe o homem como um sujeito egocêntrico, atento somente ao próprio proveito e que é visto naturalmente em constante conflito. (CESCO, 2015).
É em Hobbes que a luta por autoconservação torna-se a base de uma teoria contratualista, afinal os sujeitos até podem viver em comunidade, mas não cabe a estes a constituição intersubjetiva das normas de convívio social e sim a um agente externo regulador, o Leviatã. A natureza humana torna-se, para Hobbes, uma situação problemática e ininterrupta, uma guerra de todos contra todos – pois são conduzidos pela autoconservação individual. O contrato social surge, então, como decisivo para interromper esta luta, ao mesmo tempo em que encontra nesta a justificativa para seu surgimento. (HONNETH, 2003). O que resta de similar entre Hobbes e Maquiavel é que “eles veem do mesmo modo como o fim supremo da práxis política impedir reiteradamente aquele conflito sempre iminente”. (HONNETH, 2003, p. 36). Honneth entende que esta luta por autoconservação é insuficiente para conceber uma sociedade justa, pois o que fundamenta o contrato não é a vontade interna dos sujeitos e sim algo externo a eles.
Honneth recorre a filosofia hegeliana e encontra nela o conceito de reconhecimento (Anerkennung) que possui uma perspectiva antropológica diversa da fornecida por Hobbes. Hegel acredita que o conflito entre os sujeitos é moralmente motivado, tendo como objetivo o reconhecimento da individualidade de cada um, ou seja, não a autoconservação, mas a luta pelo reconhecimento que explica os conflitos sociais. Hegel discorda do atomismo de Hobbes, como mostra Honneth (2003, p. 43), pois o povo é anterior ao indivíduo e assim, se o indivíduo não é nada de autônomo isoladamente, então ele tem de estar, qual todas as partes, em uma unidade com o todo. Hegel também não acredita que a ideia de um contrato interromperia o conflito, pois “um contrato entre os homens não finda o estado precário de uma luta por sobrevivência de todos contra todos, mas, inversamente, a luta como um médium moral leva a uma etapa mais madura de relação ética”. (HONNETH, 2003, p. 48).
Combatendo o formalismo kantiano e o empirismo de Hobbes e do contratualismo, Hegel afirma que a identidade do indivíduo é formada a partir de uma relação comunitária, onde são retomados os fundamentos da polis grega para superar o atomismo social de Hobbes. A filosofia política de Hegel afirma que uma sociedade integrada deve ter por alicerce uma totalidade ética. A configuração da substância ética, ou eticidade, é contrária à percepção formalista que não seria suficiente para compreender a totalidade orgânica da constituição comunitária do indivíduo. A crítica ao formalismo está expressa até mesmo na obra Princípio de filosofia do direito, de 1820, onde Hegel afirma que:
(...) na medida em que o próprio dever constitui, como consciência de si, a essência e o universal desta esfera, essência que, fechada em si, só a si refere, apenas contém ele a universalidade abstrata. É identidade sem conteúdo ou positividade abstrata; define-se por ausência de determinação. (HEGEL, 1997, p. 119).
E, segundo Honneth (2003, p. 39):
(...) as ações éticas em geral só podem ser pensadas na qualidade de resultado de operações mentais, purificadas de todas as inclinações e necessidades empíricas da natureza humana; também aqui a natureza do homem é representada como uma coleção de disposições egocêntricas, ou como diz Hegel, “aéticas”, que o sujeito primeiro tem de reprimir em si antes de poder tomar atitudes éticas, isto é, atitudes que fomentam a comunidade.
Ao rejeitar o modelo atomístico e formal da formação do Estado, Hegel adota o modelo da polis para a construção de uma totalidade ética, e para isso afirmar ser necessário três elementos fundamentais: a) a unidade entre liberdade universal e individual, que consiste em afirmar que o espaço social não é visto como uma restrição da liberdade individual mas o espaço que proporciona a liberdade de todos os sujeitos; b) o comportamento que os indivíduos partilham intersubjetivamente nos costumes da coletividade, que estão para além das leis do Estado; c) o terceiro elemento é o campo que contêm as atividades mediadas pelo mercado e pelos interesses dos indivíduos. Esses três elementos constituem um aprimoramento das teses de Aristóteles sobre a constituição política da polis. (HONNETH, 2003, p. 41).
Desse modo, afirma Hegel que o todo é anterior ao indivíduo, pois não é possível que os indivíduos sejam autônomos antes de agir conjuntamente com os outros. Isso significa afirmar que os processos de socialização, para Hegel, são processos éticos que são efetuados em sociedade, onde a base natural do processo de socialização pressupõe formas elementares de convivência intersubjetiva. É evidente a inspiração aristotélica nas teses de Hegel, onde a formação do Estado é natural ao homem por ter natureza política. Ao contrário das teses contratualistas que afirmam que o estado de natureza é superado pelo processo de transição para a sociedade civil, em que os efeitos civilizadores decorrem de uma razão prática, Hegel afirma que há um processo natural de organização social que se desenvolve gradualmente a partir das lutas pelo reconhecimento, a partir de interações intersubjetivas. A formação do Estado é, segundo Honneth (2003, p. 43), teleológica e pressupõe uma ontologia aristotélica que o conflito pelo reconhecimento desencadeia como desdobramento da Ideia.
O não-reconhecimento motiva os indivíduos a buscarem novas relações éticas em que sejam reconhecidos, não há somente uma luta por autopreservação física. O conflito, portanto, é o motor da dinâmica social e da formação da eticidade. Posteriormente, a ontologia aristotélica a qual Hegel usa como fundamentação de seu processo de socialização é substituída pela filosofia da consciência, na passagem do Sistema de eticidade para o texto Sistema da filosofia especulativa ou Realphilosophie de Jena. Nesse período de transição do pensamento hegeliano, há a passagem da “natureza” para o “espírito”, em que o espírito ou a consciência é elevado como o princípio estruturador do mundo social. O reconhecimento agora se refere a um conflito entre duas consciências, em que ambas se querem reconhecidas. Do conflito entre duas consciências, por fim, decorre o reconhecimento e o consequente respeito pelo outro. A filosofia política que Hegel buscava, então, era a possibilidade de desenvolver na teoria um estado de totalidade ética: “a ideia segundo a qual uma sociedade reconciliada só pode ser entendida de forma adequada como uma comunidade eticamente integrada de cidadãos livres”. (HONNETH, 2003, p. 40).
Vale ressaltar que Hegel argumenta no Sistema da eticidade que existem três formas de reconhecimento distintas, (1) Família, onde o indivíduo é reconhecido como ser carente concreto, (2) Sociedade Civil, a relação cognitivo-formal de reconhecimento do direito e (3) Estado, a relação esclarecida no plano emotivo, como universal concreto, isto é, como sujeito socializado em sua unicidade. (HONNETH, 2003, p. 59-60). O que Honneth propõe, então, é uma atualização do conceito hegeliano reconhecimento a partir destas três esferas, que ele nomeia de amor, direito e solidariedade.
Para dar conta dessa atualização, Honneth faz uso dos estudos sobre psicologia social no processo de reconhecimento recíproco de Mead. Tal fundamentação é útil para Honneth, pois este deseja uma fundamentação para a linguagem metafísica de Hegel. Desse modo, o objetivo de Honneth é utilizar a teoria de Mead para articular de que forma ocorre o processo emancipatório pelas lutas de reconhecimento e, portanto, a partir dessas lutas, analisar as mudanças sociais. Na mesma perspectiva de Hegel, Mead acredita que a construção da identidade está ligada as experiências de reconhecimento entre os sujeitos, além de que, a luta por reconhecimento motiva a evolução da sociedade.
De acordo com Mead, o indivíduo só toma consciência de sua subjetividade frente aos problemas da realidade. Afinal, é na busca pelas soluções para desafios que o sujeito aprende a criar novas interpretações dos fenômenos da realidade social. Assim, o foco de Mead é estudar como surge a consciência do significado das ações sociais. Para tanto, utiliza dos conceitos de Me e I. Logo,
A ideia central é que o indivíduo só toma consciência de si mesmo na condição de objeto. É aqui que Mead desenvolve o seu conceito de eticidade intersubjetiva. Só desenvolvo minha identidade quando aprendo minha própria ação na perspectiva do outro. O Me representa, portanto, a imagem que o outro tem de mim. Só desenvolvo o I quando sou capaz de colocar o meu julgamento sobre questões práticas na perspectiva do Me. (MATTOS, 2006, p. 88).
Além do exposto, o conceito de outro generalizado que Honneth busca em Mead é importante, pois “o processo de socialização se efetua pela generalização de expectativas de comportamento que nos permitem a percepção de que fazemos parte de uma comunidade que possui tarefas sociais cooperativas”. (MATTOS, 2006, p. 88). Portanto, quando um indivíduo assume a visão do outro generalizado, ele passa a ter a capacidade de entender reciprocamente quais são seus deveres e direitos em relação aos outros sujeitos. Com essa base teórica, Honneth inicia o estudo da primeira esfera de reconhecimento, afirmando que “para Hegel, o amor representa a primeira etapa de reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação os sujeitos se confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-se assim como seres carentes”. (HONNETH, 2003, p. 160).
Honneth considera que o amor é a forma mais elementar de reconhecimento, iniciando a sua teoria a partir da esfera dessa esfera que é a primeira forma de relação intersubjetiva. Buscando compreender como acontecem estas relações de reconhecimento Honneth utiliza como suporte teórico, além de Mead, a psicologia de Winnicott.
2. As três formas de reconhecimento em Honneth
A primeira etapa da formação da identidade dos indivíduos é o que Honneth chama de dimensão do amor. Esta deve ser compreendida como a esfera das relações primárias, a esfera das relações íntimas, da amizade e da família. É necessária essa pontuação, pois é claro para o autor que o reconhecimento amoroso não se aplica a todas as relações sociais, e sim é restrito a pequenos grupos sociais. É um comportamento, em essência, restrito a relações emotivas fortes, sendo assim a primeira etapa de socialização, de reconhecimento intersubjetivo. É uma relação recíproca de um reconhecimento que envolva afeto, afinal é, por exemplo, na “reciprocidade de um saber-se-no-outro: na forma sexual de interação, ambos os sujeitos podem reconhecer-se em seu parceiro, visto que desejam reciprocamente o desejo do outro”. (HONNETH, 2003, p. 77).
Nesta esfera têm-se como exemplo máximo as relações entre mãe e filho, pois é a esfera das ligações emotivas fortes e está intimamente relacionada ao reconhecimento corporal dos outros seres. Para entender como acontece esse reconhecimento o autor utiliza-se dos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. Na obra, Honneth inicia abordando uma fase de simbiose entre mãe e filho, que Winnicott denomina de dependência absoluta. Nesse estágio, mãe e o filho estão em um estado que não são capazes de se diferenciarem um do outro, os atos de um são percebidos pelo outro como uma ação de si mesmo, isso pode ser entendido como uma unidade de comportamento.
Entretanto, com o passar do tempo, estes dois sujeitos, que vivem como um, passam a romper esta ligação. De um lado, a mãe sente a necessidade de ampliar o seu campo social de atenção e, do outro, a criança começa a romper a sua ligação corpórea com a mãe, ao ver que ela é mais um ser em um grande mundo exterior. Aborda-se então a segunda fase que Winnicott denomina de dependência relativa. Nessa fase, a criança começa a desenvolver a capacidade para vínculos afetivos, pois é nesse momento que a criança reconhece o outro, no caso, a mãe, como alguém com direitos próprios e independentes. Winnicott entende que para a criança desenvolver essa independência da mãe são necessários dois fenômenos que possibilitam esse afastamento gradual, a destruição e a transição.
O primeiro fenômeno, da destruição manifesta-se nos atos que a criança pratica de forma a forçar sua independência da mãe, como, por exemplo, os arranhões, mordidas e puxões no cabelo. Ainda que estes fenômenos sejam vistos, a priori, negativos, para a psicologia de Winnicott eles são compreendidos de forma positiva, pois é desta forma que a criança forma a sua independência para com a mãe. Comportando-se dessa maneira, a criança compreende a mãe como um ser corpóreo diverso no mundo e que não está a todo tempo consigo. O segundo fenômeno é o de transição, este manifesta-se em objetos que a criança – estimulada ou não pela mãe – faz uso para superar o processo de distanciamento. Brinquedos, panos, chupeta e o ato de “chupar o dedo” são exemplos desse fenômeno de transição. Com esses dois fenômenos a relação simbiótica deteriora-se tanto na mãe quanto na criança, contribuindo para o desenvolvimento de uma percepção subjetiva positiva, a autoconfiança. A autoconfiança, então, surge devido ao entendimento que a criança possui de que a mãe, ainda que separada de si, é um ser diverso que a ama e é dedicada a essa relação. Nas palavras de Honneth (2003, p. 174),
A “capacidade de estar só” é a expressão prática de uma forma de auto-relação individual, [...] auto-confiança: a criança pequena, por se tornar segura do amor materno, alcança uma confiança em si mesma que lhe possibilita estar a sós despreocupadamente.
Honneth entende que o amor é base de desenvolvimento da autoconfiança, e é sobre este alicerce que o indivíduo constrói sua identidade e reconhece o outro como um ser independente que também clama por amor e reconhecimento. É nessa relação conflituosa e amorosa com o outro que o indivíduo constitui-se como um “ser-si-mesmo em um outro”. O desenvolvimento da autoconfiança é o que torna capaz o reconhecimento, sendo indispensável ao indivíduo essa confiança em si para o reconhecimento nas outras esferas,
(...) contudo, embora seja inerente ao amor um elemento necessário de particularismo moral, Hegel faz bem em supor nele o cerne estrutural de toda eticidade: só aquela ligação simbioticamente alimentada, que surge na delimitação reciprocamente querida, cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública. (HONNETH, 2003a, p. 178).
Retomando a psicologia de Mead, Honneth identifica na teoria do autor duas fases que possibilitam explicar a formação da identidade humana, o play e o game. A primeira fase, play, é compreendida com o momento em que a criança comunica-se com si, imitando o comportamento e movimento dos outros parceiros de interação. Já na segunda fase, game, a criança afirma sua posição, não apenas imitando seus parceiros de interação, mas sim compreendo seu papel diferenciado dos outros. Essas duas etapas são facilmente observáveis empiricamente em brincadeiras esportivas na infância, por exemplo, o futebol.
A segunda fase é essencial para a compreensão da evolução das esferas de reconhecimento, pois esta é um reconhecimento recíproco da criança com os outros jogadores, onde as regras assumem uma generalização que podem ser universalizadas. É reconhecido nessa fase, o momento do potencial de transição da esfera do amor para a esfera do direito. Conforme Honneth,
Na medida em que a criança em desenvolvimento reconhece seus parceiros de interação pela via da interiorização de suas atitudes normativas, ela própria pode saber-se reconhecida como um membro de seu contexto social de cooperação. (HONNETH, 2003a, p. 136).
Para Honneth, a esfera do amor é uma das manifestações da eticidade. Sendo tanto vital para a estruturação da personalidade do sujeito, quanto para a estruturação de um potencial normativo institucionalmente reconhecido na sociedade. Dessa forma, para Honneth, “sem o sentimento de ser amado, não poderia absolutamente se formar um referente intrapsíquico para a noção associada ao conceito de comunidade ética”. (HONNETH, 2003, p. 80). Para melhor entendimento, conforme Cesco (2015, p 44),
(...) a ação de amar exige esse reconhecimento de outro ser humano, ação essa que não pode ser motivada apenas pela observância de leis ou de um respeito à dignidade humana do outro da interação. Amar implica na satisfação do desejo motivador da ação que é esse reconhecimento de sua individualidade. É a afirmação de uma autoconfiança necessária para o desenvolvimento moral.
Na segunda dimensão os sujeitos podem compreender-se como portadores de direitos quando observam quais obrigações devem seguir em face dos direitos do outro. Como fundamento, Honneth demonstra que,
Para o direito, Hegel e Mead perceberam uma semelhante relação na circunstância de que só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um “outro generalizado”, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões. (2003, p. 179).
O autor irá tratar essa esfera como um conflito que evolui ao longo da história, com os indivíduos reconhecendo e respeitando novos direitos, construindo uma visão de si e de que os outros são titulares de direitos. Honneth realiza uma retomada da história do direito que demonstra como no século XVIII, existiam os direitos liberais da liberdade, no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. Essa evolução dos direitos demonstra o crescimento de socialização e participação do sujeito na sociedade e a ampliação de suas capacidades como sujeito de direito, Honneth entende que
A ampliação cumulativa de pretensões jurídicas individuais, com a qual temos de ligar em sociedades modernas, pode ser entendida como um processo em que a extensão das propriedades universais de uma pessoa moralmente imputável foi aumentando passo a passo, visto que, sob a pressão de uma luta por reconhecimento, devem ser sempre adicionados novos pressupostos para a participação na formação racional da vontade. (HONNETH, 2003, p. 189).
E também que
Reconhecer-se mutuamente como pessoa de direito significa hoje, nesse aspecto, mais do que podia significar no começo do desenvolvimento do direito moderno: entrementes, um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normais morais, mas também na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso. (HONNETH, 2003a, p. 193).
Esse conflito na relação jurídica é baseado em princípios morais universais, no qual
Um sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade; e a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo desse modo é o que podemos chamar de “auto-respeito”. (HONNETH, 2003, p. 197).
A relação jurídica gera no indivíduo o “auto-respeito”, uma consciência de poder se respeitar a si mesmo, porque se merece o respeito de todos os outros. Em outras palavras, viver sem direitos individuais significa para o indivíduo não possuir chance alguma de constituir um “auto-respeito”. Em transição a próxima esfera de reconhecimento, entende-se que
Diferentemente do reconhecimento jurídico em sua forma moderna, a estima social se aplica às propriedades particulares que caracterizam os seres humanos em suas diferenças pessoas: por isso, enquanto o direito moderno representa um médium de reconhecimento que expressa propriedades universais de sujeitos humanos de maneira diferenciadora, aquela segunda forma de reconhecimento requer um médium social que deve expressar as diferenças de propriedades entre sujeitos humanos de maneira universal, isto é, intersubjetivamente vinculante. (HONNETH, 2003, p. 199).
Desse modo, a dimensão da solidariedade diz respeito ao conflito onde os mais diversos agentes buscam afirmar o valor de suas capacidades associadas à sua forma de vida, ocorrendo a aceitação recíproca dessas capacidades individuais. Conforme Mattos,
O conceito de solidariedade social desenvolvida desenvolvido por Honneth, a partir da terceira etapa do reconhecimento de Hegel e Mead, tem como base a ideia de que os pilares da solidariedade moderna são as relações simétricas existentes entre os membros da sociedade. Por relações simétricas deve-se entender, segundo Honneth, a possibilidade de qualquer sujeito ter chances de ter suas qualidades e especificidades reconhecidas como necessárias e valiosas para a reprodução da sociedade. (2006, p. 93).
Nesse sentido, “para poderem chegar a uma auto-relação infrangível, os sujeitos humanos precisam ainda, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas”. (HONNETH, 2003, p. 198). Assim, a “solidariedade na teoria da luta pelo reconhecimento representa a síntese do reconhecimento jurídico e afetivo, do primeiro ela guardaria o ponto de vista cognitivo da igualdade universal entre os indivíduos, do segundo ela representaria o vínculo emotivo e da assistência”. (CESCO, 2015 p. 58). Para tanto,
A autocompreensão cultural de uma sociedade predetermina os critérios pelos quais se orienta a estima social das pessoas, já que suas capacidades e realizações são julgadas intersubjetivamente, conforme a medida em que cooperaram na implementação de valores culturalmente definidos; nesse sentido, essa forma de reconhecimento recíproco está ligada também à pressuposição de um contexto de vida social cujos membros constituem uma comunidade de valores mediante a orientação por concepções de objetivos comuns. (HONNETH, 2015, p. 200).
Nessa terceira dimensão é gerada a autoestima, que permite aos sujeitos referirem-se positivamente as suas propriedades e capacidades concretas perante o julgamento da sociedade. Essa esfera é solidária, pois não é uma questão de mera tolerância das particularidades dos sujeitos, “mas também o interesse afetivo por essas particularidades”. (HONNETH, 2003, p. 211). Quando a coletividade garante a indivíduo a oportunidade de realizar suas próprias capacidades de forma valiosa e benéfica para a sociedade os objetivos comuns de toda coletividade passam a ser realizáveis. Diante do exposto, “a passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade”. (SALVADORI, 2011, p. 191).
De acordo com Mattos (2006, p. 89), “nem Hegel nem Mead são capazes de explicitar de maneira sistemática as formas de desrespeito que tornam a experiência de não-reconhecimento um motor para os conflitos sociais”. Diante disso, a partir do estudo das três esferas de reconhecimento intersubjetivo, Honneth “toma para si a tarefa de discutir os diferentes tipos de desrespeito correspondente a cada uma dessas etapas de reconhecimento”. (MATTOS, 2006, p. 95). Visto que seu objetivo principal é “construir uma teoria crítica do reconhecimento que permita pensar em caminhos emancipatórios a partir do não-reconhecimento”. (MATTOS, 2006, p. 95). Para retomar,
Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. (SALVADORI, 2011, p. 191).
A primeira forma de desrespeito, correspondente à esfera do amor, é aquela que viola a disposição autônoma do indivíduo sobre o próprio corpo. Os traumas sobre o corpo do sujeito não se restringem aos ferimentos que deformam o corpo do sujeito, em um sentido literal. Qualquer forma de violência e maus-tratos são situações que atingem além do corpo, danificado a própria integridade do indivíduo. Portanto, o que Honneth afirma é que na primeira esfera de reconhecimento, quando este é negado, a confiança do sujeito em si mesmo é agredida da mesma maneira que é agredido o próprio corpo. Assim, esta agressão é entendida como uma agressão social, pois sem a capacidade constituída da autoconfiança dificilmente uma relação social pode ser confirmada, não ao menos se as observações da psicologia social aferidas por Honneth estiverem corretas. (CESCO, 2015, p. 64).
Desse modo, para Honneth (2003, p. 215), “os maus-tratos físicos de um sujeito representam um tipo de desrespeito que fere duradouramente a confiança aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo”. Afinal, um indivíduo privado de suas capacidades afetivas, que constituem elemento mínimo para a formação da sua autoestima, não tem condições de se relacionar com o outro, pois ele não o reconhece como outro. Assim, a violência é responsável pela destruição de laços afetivos, e sem esse impulso a vontade singular não encontra um reflexo de sua singularidade em um outro generalizado, pois é esse outro generalizado que deixa de existir. Não é uma exclusão de uma forma física do outro, mas é o não reconhecimento desse outro, ele deixa de existir como uma vontade singular. (CESCO, 2015, p. 64).
A segunda forma de desrespeito é o não reconhecimento na esfera do direito. Como foi observado, o direito constitui um sistema no qual as pretensões individuais são reconhecidas a partir do processo intersubjetivo, no qual todos os membros participam em condições de igualdade. Posto isso, o não reconhecimento de direitos a determinados grupos ou sujeitos gera uma diminuição no valor de auto-respeito. Em outras palavras, a sensação vivida pelos grupos não reconhecidos de privação de direitos e exclusão social fere o auto-respeito. Assim, estes indivíduos são feridos na expectativa intersubjetiva de serem reconhecidos como sujeitos de igual valor, capazes de formar um juízo moral. (MATTOS, 2006, p. 95). Como pontua Salvadori (2011, p. 191), “o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica”. Ou ainda, conforme Cesco (2015, p. 65),
A privação de direitos ou exclusão afeta a esfera que corresponde ao autorrespeito. Isso ocorre quando um sujeito fica estruturalmente excluído das disposições legais que lhe garantiriam seus direitos dentro de uma determinada comunidade. Não é uma exclusão apenas jurídica, mas uma exclusão dos princípios básicos da sociedade moderna. Conceitos como “dignidade humana”, “pessoa de direito”, não podem ser objetivados se essa categoria de desrespeito for perpetuada.
Na terceira etapa, o desrespeito na esfera da solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores. (SALVADORI, 2011, p. 191). Dessa forma, referir-se de maneira negativa a um grupo ou a um indivíduo constitui uma ofensa social, colocando em xeque a estima social do indivíduo. Este perde a capacidade de se entender como um ser estimado por suas características e propriedades. (MATTOS, 2006, p. 95).
O fenômeno de negação desenvolvida nessa esfera é a vergonha, para Honneth (2003, p. 222-223), “o conteúdo emocional da vergonha [...] consiste em uma espécie de rebaixamento do sentimento do próprio valor”. Esse fenômeno não deve ser entendido como mera timidez, e sim com o conteúdo que esta ocasiona no sujeito. Assim,
A vergonha é um sentimento oriundo, segundo Honneth, da experiência de um desrespeito para com as pretensões do ego do sujeito. É uma reação emocional que o sujeito tem ao se sentir humilhado ou não apreciado em suas potencialidades que ele julgaria ser fundamental para sua autorrealização prática pessoal. É essa relação ao fator emocional desencadeado pelo desrespeito que Honneth está interessado. Toda sua inflexão empírica à psicologia social e aos textos de Hegel tem como objetivo demonstrar que esses sentimentos morais negativos podem servir como impulso para uma luta por reconhecimento moralmente motivada. (CESCO, 2015, p. 67).
Ou conforme Honneth,
Simplesmente porque os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do reconhecimento recíproco têm uma certa possibilidade de realização no interior do mundo da vida social em geral; pois toda reação emocional negativa que vai de par com a experiência de um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém novamente em si a possibilidade de que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência política. (HONNETH, 2003, p. 224).
A partir do exposto acerca das experiências de não reconhecimento é importante frisar que para Honneth (2003, p. 227) “a experiência do desrespeito é a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes políticos”. Dessa maneira, Honneth busca uma reconstrução normativa da eticidade hegeliana, que analise e solucione essa barreira motivada pela negação do reconhecimento a todos os indivíduos. (CESCO, 2015, p. 68). Ou seja, o objetivo do autor é compreender a verdadeira motivação moral para os conflitos sociais, em suas palavras,
(...) quem procura hoje reportar-se a essa história da recepção do contra modelo hegeliano, a fim de obter os fundamentos de uma teoria social de teor normativo, depende sobretudo de um conceito de luta social que toma seu ponto de partida de sentimentos morais de injustiça, em vez de constelações de interesses. (HONNETH, 2003, p. 255).
Desse modo as três esferas de reconhecimentos expostas anteriormente se tornam a base teórica que, de forma conjunta, com o conceito de eticidade fundamenta os conflitos sociais a partir de um impulso moral. Afinal, “uma luta só pode ser caracterizada de “social” na medida em que seus objetivos se deixam generalizar para além do horizonte das intenções individuais, chegando a um ponto em que eles podem se tornar a base de um movimento coletivo”. (HONNETH, 2003, p. 256). O primeiro conceito, ainda preliminar, para Honneth, de uma luta social é que
Trata-se do processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento. (HONNETH, 2003, p. 257).
A teoria esboçada por Honneth tem o potencial de analisar e explicar as mudanças sociais por meio do sentimento de desrespeito, que é o gerador dos conflitos sociais. Em outras palavras, os conflitos sociais surgem a partir da experiência de desrespeito nas esferas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. Ademais, a identidade moral é formada por essas expectativas. Nesse sentido, cada confirmação da autorrealização prática interfere no modo como se constitui a identidade de cada indivíduo, seja este reconhecimento em qualquer uma das esferas abordadas (SALVADORI, 2011, p. 192; CESCO, 2015, p. 71).
A mobilização social e política somente ocorre quando as relações de desrespeito afetam não apenas um indivíduo, mas sim a visão de uma comunidade. Logo, a lógica da ação social é que uma relação de desrespeito gera a luta por reconhecimento na esfera atingida ocasionando uma mudança social. Com o intuito de estudar esse processo, Honneth aborda a teoria de E. P. Thompson, entendendo que,
A investigação das lutas sociais está fundamentalmente ligada ao pressuposto de uma análise do consenso moral que, dentro de um contexto social de cooperação, regula de forma não oficial o modo como são distribuídos direitos e deveres entre os dominantes e os dominados. (HONNETH, 2003, p. 263).
E, complementando com a concepção de Barrington Moore, Honneth aponta que
(...) os sentimentos de injustiça e as experiências de desrespeito, pelos quais pode começar a explicação das lutas sociais, já não entram mais no campo de visão somente como motivos de ação, mas também são estudados com vista ao papel moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento das relações de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 265).
Resta claro para o autor a necessidade de um critério normativo que permita apontar uma direção evolutiva com a antecipação hipotética de um estado último. Compreendendo que as três formas de reconhecimento – amor, direito e estima –, conjuntamente, criam as condições sociais pelas quais os indivíduos são capazes de alcançar uma atitude positiva para com si; e de que é graças ao ganho cumulativo de autoconfiança, auto-respeito e autoestima que um sujeito é capaz de se conceber como um ser autônomo e individuado, além de se identificar com seus objetivos e seus desejos. (HONNETH, 2003, p. 266).
O significado que cabe às lutas particulares se mede, portanto, pela contribuição positiva ou negativa que elas puderam assumir na realização de formas não distorcidas de reconhecimento. No entanto, um tal critério não pode ser obtido independentemente da antecipação hipotética de um estado comunicativo em que as condições intersubjetivas da integridade pessoal aparecem como preenchidas. Desse modo, enfim, a doutrina hegeliana de uma luta por reconhecimento só poderá ser atualizada mais uma vez, sob pretensões mitigadas, se seu conceito de eticidade alcançar novamente validade numa forma alterada, dessubstanciada. (HONNETH, 2003, p. 268).
Honneth (2003, p. 269) sugere já ter visualizado tal estado último nas teorias de Hegel e Mead, afirmando que este estado último não pode ser apreendido somente com conceitos atinentes a uma compreensão estreita de moral. Por isso, para o autor,
A abordagem da teoria do reconhecimento, na medida em que a desenvolvemos até agora na qualidade de uma concepção normativa, encontra-se no ponto mediano entre uma teoria moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha com estas a orientação pelo fim da auto-realização humana. (HONNETH, 2003, p. 271).
Portanto, para sustentar essa posição, Honneth objetiva desenvolver um conceito de eticidade por meio da categoria reconhecimento, não se contentando em somente repetir o que Hegel escreveu. Dessa forma, a partir da presentificação, o autor utiliza os resultados obtidos através deste estudo da lógica dos conflitos sociais nas esferas do amor, do direito, e da solidariedade, para, então, ampliar seu significado. O conceito da teoria do reconhecimento “refere-se agora ao todo das condições intersubjetivas das quais se pode demonstrar que servem à autorrealização individual na qualidade de pressupostos normativos”. (HONNETH, 2003, p. 271-272).
Os padrões que o autor esboça a partir das experiências nas esferas do reconhecimento são suficientes, em sua visão,
Abstratos ou formais o suficiente para não despertar a suspeita de incorporarem determinados ideias de vida; de outra parte a exposição dessas três condições é, sob o ponto de vista do conteúdo, rica o suficiente para enunciar mais a respeito das estruturas universais de uma vida bem-sucedida do que está contido na mera referência à autodeterminação individual. (HONNETH, 2003, p. 274).
Contudo, como expõe Cesco (2015, p. 71), “não é ainda uma institucionalização dos resultados da afirmação do reconhecimento, mas uma referência direta aos resultados das categorias expressas no amor, no direito e na solidariedade”. Importante ressaltar que Honneth percebe o potencial das esferas do reconhecimento jurídico e social, sendo estes mais abertos as mudanças sociais. Diante disso, Honneth afirma que por meio da característica destas duas esferas, de uma luta por reconhecimento de igualdade em uma esfera e individualidade na outra, eleva a construção de um ideal de vida boa, de vida ética.
Assim, Honneth, fundamentando-se nas teorias de Hegel, desenvolve seu conceito de eticidade como o conjunto de condições normativas entre os indivíduos necessárias para a sua autodeterminação e autorrealização. Logo, como explica Salvadori,
A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. (2011, p. 192).
É necessário pontuar que a identidade dos sujeitos é construída na – e pela – socialização, ou seja, é construída na eticidade, dentro de um contexto de valores e obrigações intersubjetivas. Para o autor,
O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. (HONNETH, 2003, p. 272).
Entende-se a reatualização realizada por Honneth nesse ponto como parte fundamental da sua teoria do reconhecimento. O objetivo que deve ser realçado nesse momento é que o autor lança a proposta de um conceito formal de eticidade aberto à possibilidade de sempre revisar seu conteúdo. É um conceito formal de eticidade democrática, no qual as necessidades individuais encontram nesse conjunto conceitual a possibilidade de realização de sua autodefinição, seja ela afetiva, jurídica ou social.
A partir desse novo conceito formal de eticidade se compreende a experiência nas relações da esfera do amor, como o quadro mais profundo de todas as formas de relação que podem ser tidas como éticas. A autoconfiança constitui o pressuposto elementar de toda forma de autorrealização, na medida em que possibilita o indivíduo alcançar aquela liberdade interior que o possibilita articular suas carências próprias. Nesse ponto, Honneth aproxima o conceito a esfera do amor da jurídica, estabelecendo como elo entre essas duas esferas o desejo do sujeito em ver confirmadas as condições de igualdade para a autorrealização pessoal. Em suas palavras,
(...) uma concepção formal de eticidade pós-tradicional tem de estar delineada de modo tal que possa defender o igualitarismo radical do amor contra coerções e influências externas; nesse ponto, a exposição do padrão de reconhecimento do amor toca naquela da relação jurídica, que deve ser considerada a segunda condição da integridade pessoal. (HONNETH, 2003, p. 276-7).
O direito nessa proposta de reatualização honnethiana assume um potencial moral duplo, tanto de ampliação da possibilidade de universalização das condições de igualdade, quanto uma característica de sensibilização das representações da igualdade. A autorrealização individual depende do pressuposto social de uma autonomia juridicamente assegurada, afinal, somente com essa base de proteção jurídica o indivíduo tem a capacidade de se conceber como um sujeito que, voltando-se a si mesmo, é capaz de entrar em uma relação de exame reflexivo dos próprios desejos. Entretanto, Hegel e Mead acabaram por conceber a relação jurídica à mera existência destes direitos de liberdade expostos acima, não percebendo outro potencial inscrito nessa esfera. Assim, a sensibilização é entendida no sentido de ela englobar os sentimentos morais para essa luta por reconhecimento de condições de igualdade. Pois,
O indivíduo precisa ser protegido do perigo de uma violência física, inscrito estruturalmente na balança precária de toda ligação emotiva: consta das condições intersubjetivas que possibilitam hoje a integridade pessoal não somente a experiência do amor, mas também a proteção jurídica contra as lesões que podem estar associadas a ela de modo causal. Mas a relação jurídica moderna influi sobre as condições da solidariedade pelo fato de estabelecer as limitações normativas a que deve estar submetida a formação de horizontes de valores fundadores da comunidade. Por conseguinte, a questão sobre em que medida a solidariedade tem de entrar no contexto das condições de uma eticidade pós-tradicional não pode ser explicada sem uma referência aos princípios jurídicos. (HONNETH, 2003, p. 278).
Por fim, na reatualização da solidariedade, Honneth percebe que, na modernidade, os indivíduos precisam se saber reconhecidos também em suas capacidades e propriedades particulares para estar em condições da autorrealização. Portanto, os sujeitos necessitam de uma estima social que só pode se dar na base de finalidades partilhadas em comum. A eticidade de Honneth representa a comunidade de valores que os sujeitos buscam; esses valores comuns almejam contemplar o desejo de todos os sujeitos se perceberem estimados em suas particularidades, além disso, esses valores precisem ser compatíveis com as condições legitimadas pela esfera do reconhecimento jurídico. Aqui, Honneth reconhece que,
Tanto o jovem Hegel quanto Mead quiseram pensar o futuro da sociedade moderna de modo que ela suscitasse um sistema de valores novo, aberto, em cujo horizonte os sujeitos aprendessem a se estimar reciprocamente em suas metas de vida livremente escolhidas. Com isso, ambos avançaram até o limiar em que começa a se entrever um conceito de solidariedade social que aponta para uma estima simétrica entre cidadãos juridicamente autônomos. Mas, na resposta à questão de como essa ideia moderna de solidariedade deveria ser preenchida no plano do conteúdo, não só as vias de solução dos dois pensadores se separaram, como ambos, cada qual ao seu modo, fracassaram. (HONNETH, 2003, p. 279).
Portanto, como expõe Salvadori,
(...) não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento. Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento. Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna. (2011, p. 192).
É necessário para o autor que sua concepção formal de uma eticidade pós-tradicional não está concluída se não for possível ao menos indicar em que lugar teriam de entrar os valores materiais. Para Honneth (2003, p. 280), as transformações socioestruturais nas sociedades desenvolvidas ampliaram objetivamente as possibilidades da autorrealização que a experiência de uma diferença individual ou coletiva se converteu no impulso dos movimentos políticos. O autor entende que estas exigências só podem ser cumpridas a longo prazo quando ocorrem mudanças culturais que acarretam uma ampliação radical das relações de solidariedade. Essa concepção pode resolver o fracasso de Hegel e Mead, pois ela não pode renunciar à tarefa de introduzir os valores materiais ao lado das formas de reconhecimento do amor e do direito, os quais devem estar em condições de gerar uma solidariedade pós-tradicional. Contudo, essa concepção tampouco pode preencher por si mesma o lugar traçado como local do particular na estrutura das relações de uma forma moderna de eticidade,
Pois saber se aqueles valores materiais apontam na direção de um republicanismo político, de um ascetismo ecologicamente justificado ou de um existencialismo coletivo, saber se eles pressupõem transformações na realidade econômica e social ou se se mantêm compatíveis com as condições de uma sociedade capitalista, isso já não é mais assunto da teoria, mas sim do futuro das lutas sociais. (HONNETH, 2003, p. 280).
Nesse ponto, após o estudo da teoria de Honneth é de interesse, para maior compreensão, apresentar o quadro sinótico das esferas de reconhecimento elaborado pelo autor.
Modos de reconhecimento
Dedicação emotiva
Respeito Cognitivo
Estima social
Dimensões da personalidade
Natureza carencial e afetiva
Imputabilidade moral
Capacidade e propriedades
Formas de reconhecimento
Relações primárias (amor, amizade)
Relações jurídicas (direitos)
Comunidade de valores (solidariedade)
Potencial evolutivo
Generalização, materialização
Individualização, igualização
Auto-relação prática
Autoconfiança
Auto-respeito
Auto-estima
Formas de desrespeito
Maus tratos e violação
Privação de direitos e exclusão
Degradação e ofensa
Componentes ameaçados da personalidade
Integridade física
Integridade social
“Honra”, dignidade
(HONNETH, 2003, p. 211)
CONCLUSÃO
A esfera da eticidade, para Honneth, deve abranger uma série de ações intersubjetivas nas quais os sujeitos podem encontrar tanto a realização individual quanto também o reconhecimento recíproco, e a conexão entre esses dois elementos tem de ser representada de tal forma que seja possível entendê-los como formas de interação social nas quais um indivíduo somente pode alcançar a autorrealização se ele expressar, de um modo determinado, reconhecimento em face do outro. Portanto, uma teoria crítica da justiça deveria estar orientada para os recursos materiais e as circunstâncias institucionais necessárias para o exercício da autonomia pessoal, tais como a necessidade de educação, de alimentação adequada e de abrigo, as oportunidades reais de participação da vida social. Mas, além disso, deve permitir que o indivíduo desenvolva um senso interno de autonomia, expresso nas relações positivas consigo mesmo (a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima) somente alcançáveis em relações de reconhecimento não distorcidas. (MELO, 2013, p. 326).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESCO, Marcelo Lucas. Reconhecimento em Axel Honneth. 2015. 80 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Caxias do Sul, 2015.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: M. Fontes, 1997. 329 p.
HONNETH, Axel. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (Trad. Luiz Repa). São Paulo: Ed. 34, 2003.
MATTOS, Patrícia. A Sociologia política do reconhecimento: As contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablumme, 2006.
MELO, Rúrion (org). A Teoria Crítica de Axel Honneth: Reconhecimento, Liberdade e Justiça. São Paulo: Saraiva, 2013.
NOBRE, Marcos. “Luta por reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica”. In: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 07-19.
SALVADORI, Mateus. “Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”. Resenha. Conjectura: filosofia e educação / UCS. v. 16. n. 1 (jan./abr. 2011). – Caxias do Sul, RS: Educs, 2011.
SOUZA, Luiz Gustavo da Cunha de. Reconhecimento como teoria crítica? A formulação de Axel Honneth. 2009. 154 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2009.
Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (2005), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente é graduando em Direito (2012) e professor de Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. ↑
Possui graduação em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) em 2016. Mestrando em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) no período de 2017/2018 e taxista da CAPES. Integrante do grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Advogado. E-mail: [email protected]. ↑
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Habermas argumenta que as formulações originais de Marx deveriam ser abandonadas, pois os conceitos originais da Teoria Crítica não são suficientemente críticos à realidade, afinal, ignoram aspectos decisivos das relações sociais (NOBRE, 2003). A solução apontada por Habermas é diferenciação da racionalidade humana em duas espécies, a instrumental – identificada na obra de Adorno – e a comunicativa. ↑