A omissão do estado do Rio Grande do Sul na cobrança pelo uso dos recursos hídricos

16/02/2023 às 09:45
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Artigo originalmente publicado na REVISTA DE DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL, v. 10, p. 326-356, 2019.

Rio Grande do Sul state’s omission in the charging for water resources use

Resumo: A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é de um dos instrumentos de gestão das bacias hidrográficas prevista pelas políticas de recursos hídricos. Primordialmente tem a função de obtenção de valores para o para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de bacia que, por sua vez, devem estar vinculados à recuperação e proteção desse importante bem, a água. O objetivo desse artigo é apresentar o caso da omissão do estado do Rio Grande do Sul ao não instituir uma cobrança constitucionalmente permitida, considerando que esse fato se vincula a uma maior fragilidade tanto dos ecossistemas hídricos, quanto do ambiente e da população, na medida em que existe uma relação de dependência da sobrevivência e da qualidade de vida do ser humano com os recursos hídricos. O método utilizado é analítico, buscando apresentar os valores que o Estado deixa de perceber ao não instituir a cobrança. Como resultado, verifica-se que a inércia estatal ofende ao princípio da eficiência, devendo a cobrança ser implementada de forma a suprir as necessidades financeiras para o abastecimento da população e, consequentemente, cessar a destinação de receitas de tributos a setores que poderiam ser financiados por receitas diretamente provindas dos usuários do recurso.

Palavras-chave: cobrança; recursos hídricos; omissão; Rio Grande do Sul; gestão.

Abstract: The charging for water resources’ use is one of the management instruments of the watersheds foreseen by the water resources policies. Primarily it has the function of obtaining values ​​to finance programs and interventions contemplated in the watersheds plans that, in turn, must be linked to the recovery and protection of this important good, the water. The objective of this article is to present the case of the omission of the Rio Grande do Sul state when doesn’t institute a constitutionally allowed charge, considering that this fact is linked to a greater fragility of the water ecosystems, the environment and the population, as far as that there is a relationship of dependence on the survival and quality of life of the human being with the water resources. The method used is analytical, seeking to present the values ​​that the State fails to perceive when not institute the charge. As a result, it is verified that the state inertia offends the principle of efficiency, and the charge should be implemented in order to provide the financial needs to the population water supply and, consequently, cease the allocation of tax revenues to sectors that could be financed by revenue directly from users of the resource.

Keywords: charging; water resources; omission; Rio Grande do Sul; management.

Sumário: 1. Introdução; 2. Cobranças pelo uso de recursos hídricos; 3. Arrecadação percebida pela cobrança e o caso do Rio Grande do Sul; 4. Considerações finais; Referências

Introdução

O estado do Rio Grande do Sul vive uma crise financeira que atinge todos os níveis sociais, impedindo investimentos básicos em saúde, educação e segurança, atrasando salários de servidores públicos, obstaculizando o progresso de empresas e empresários, dentre tantos outros problemas decorrentes.

Como estabelecido constitucionalmente e ratificado pela Lei nº 11.445/2007, cumpre ao Poder Público o dever de propiciar saneamento básico à população, incluindo o essencial direito à água potável. E também é notório que as rubricas para a desincumbência do Poder Público de seu ônus constitucional são elevadas.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 – CRFB/88, bem como o Código Civil de 2002 (precedido do Código Civil de 1916, que também contava com tal previsão) e a Lei nº 9.433/97, a qual instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, preveem que o uso dos recursos hídricos não necessita se dar de forma gratuita, podendo haver cobrança por parte dos outorgados para a exploração dos recursos hídricos.

O estado do Rio Grande do Sul, em consonância à CRFB/88 e à própria Constituição Estadual, instituiu, através da Lei Estadual nº 10.350/94 o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, o qual prevê, expressamente, que o Estado perceberá contrapartida pelo fornecimento dos recursos hídricos à sua população.

Ocorre, entretanto, que não obstante às previsões constitucional e legais, o Rio Grande do Sul age de forma relapsa ao deixar de instituir, até hoje, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, arcando, por si, com todos os custos pertinentes à disponibilização dos recursos hídricos aos gaúchos, sejam eles consuntivos (dentre os quais se destacam a água para consumo, bem como para uso industrial, limpeza, refrigeração, agropecuária, etc.), sejam eles não consuntivos (destacando-se as águas para navegação, lazer, pesca, produção de energia, entre outros).

O presente artigo, desta forma, detém fundamental relevância ao apresentar dados acerca de valores que poderiam ser angariados pelo Poder Público do Estado do Rio Grande do Sul, caso esse agisse de forma eficiente e instituísse uma cobrança constitucionalmente permitida.

Obviamente nenhum cidadão deseja ver instituído qualquer tributo que represente aumento da já elevada carga tributária suportada pelos contribuintes brasileiros e, especialmente, gaúchos. Por esse motivo, dentre outros, a cobrança pelo uso da água ainda é motivo de muitas polêmicas. De um lado, estão ambientalistas e economistas, que a defendem como forma de estimular o uso racional de um bem cada vez mais escasso. De outro, juristas preocupados com os limites que devem ser respeitados pelo Poder Público para não dar valor econômico a bens coletivos. Entre esses, o cidadão, que deseja, cada vez mais, um ambiente saudável e acredita cada vez menos na gerência dos governantes sobre o erário (PEREIRA, 2002, p. 195.).

Porém, como será visto, a cobrança pelo uso de recursos hídricos não se trata de um tributo, mas sim de um preço público por serviço essencial disponibilizado à população, qual seja o sistema de recursos hídricos mantido pelo Poder Público ou por empresas outorgadas a fazê-lo.

Por não ser um tributo, não há que se denominar a forma de agir do Estado do Rio Grande do Sul como renúncia de receita, como será discorrido no presente trabalho. Contudo, será demonstrado que o princípio da eficiência, de suma importância no Estado Democrático de Direito e de fundamental observância por um Estado que vive grave crise financeira, está sendo ofendido, contribuindo com a perpetuação do problema financeiro estadual.

O método utilizado será analítico, com a pesquisa de dados concretos – mesmo que em estudos simulados de arrecadação em caso de cobrança por recursos hídricos, com uma abordagem precipuamente qualitativa, buscando dar ênfase à importância do tema com fundamento nos dados obtidos e demonstrando por que razão, com base na bibliografia utilizada, deveria o Estado do Rio Grande do Sul instituir a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Inicialmente, será apresentado o contexto histórico legislativo da previsão de cobrança pelo uso de recursos hídricos para, a seguir, apresentar os dados acerca das quantias que o Rio Grande do Sul deixa de arrecadar por não instituir o preço público. Por fim, serão apresentados os fundamentos pelos quais se verifica uma forma ineficiente de gestão por parte do Estado ao arcar com todos os gastos para o abastecimento dos recursos hídricos à população.

Desta forma, o presente trabalho tem a pretensão de demonstrar, com base nos dados e na bibliografia analisados, que o Estado do Rio Grande do Sul deve instituir a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e, empregando eficiência na gestão pública, buscar diminuir seu ônus financeiro na disponibilização do recurso à população, aumentando a possibilidade de investimento em áreas de importância fundamental, tais como saúde, educação e segurança.

2. Cobranças pelo uso de recursos hídricos

O Brasil é um dos países com os maiores volumes de recursos hídricos renováveis do Planeta, com cerca de 13,7 % de todas as reservas mundiais de água doce. A água, para o ordenamento jurídico pátrio, é um recurso natural essencial à vida cuja acessibilidade é limitada, tendo em vista que as reservas são finitas, dotado de valor econômico e de domínio público.

A cobrança por recursos ambientais, abrangendo, portanto, a água, é prevista na Lei nº 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente. O referido diploma prevê, em seu art. 4º, inciso VII, que o usuário contribuirá pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.

A Constituição Federal de 1988 – CRFB/88, a qual recepcionou a Lei nº 6.938/81, estabeleceu que todas as águas são públicas e seu domínio é da União, quando localizada em lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais, ou dos Estados, nas hipóteses em que não se enquadrarem nas situações descritas acima e quando estiverem em fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, na forma da lei, as decorrentes de obras da União.

A CRFB/88, seguindo sua linha analítica, prevê expressamente em seu art. 21, inciso XIX, que compete à União instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso.

Na legislação nacional pertinente ao tema, o recurso hídrico é um bem ambiental e, portanto, está sob a égide de um entendimento sistêmico de meio ambiente, ou seja, entre os bens públicos de uso comum do povo. Como bem de uso comum do povo a água é um bem inalienável, conforme o artigo 100 do Código Civil, e a sua utilização pode ser tanto gratuita quanto retribuída, conforme for estabelecido por norma editada pela entidade federativa que administre o recurso, segundo o artigo 103 do Codex.

Esclareça-se que anteriormente, no ano de 1989, fora editada a Lei nº 7.990, a qual instituiu aos Estados, Distrito Federal e Municípios a compensação financeira pelo resultado, entre outros, da exploração de recursos hídricos para a geração de energia elétrica. Essa exploração que previu a compensação foi pela utilização da água, embora para fins voltados estritamente à geração de energia, e não para uso direto pelo consumidor final, podendo ser considerada uma faceta da cobrança pelo uso de recursos hídricos.

A cobrança, mesmo atualmente, não é pela água em si, mas sim pelo serviço prestado pelas empresas de abastecimento, que abrange a captação, o tratamento e a distribuição. A cobrança constitui um incentivo econômico para que um determinado objetivo de uso racional ou qualidade da água seja atingido (PORTO; PORTO, 2008, p. 53).

Pode-se fundamentar a cobrança pelo uso dos recursos hídricos também em alguns princípios, dentre os quais pode-se citar o do “poluidor-pagador”, do “usuário-pagador”, da participação (informação e educação ambiental), da prevenção, da precaução e do desenvolvimento sustentável. Analisando sinteticamente os princípios mencionados, o princípio do “poluidor-pagador” dispõe que, se todos têm direito a um ambiente limpo, o poluidor deve pagar pelo dano que provocou. Havendo um custo social proveniente de uma determinada atividade, esse poluidor deve ser internalizado ou assumido pelo empreendedor. Ou seja, se uma indústria exerce determinada atividade e com isso causa poluição ou degradação de um rio, o custo da despoluição deveria ser assumido por essa indústria (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 214).

No tocante ao princípio do “usuário-pagador”, paga-se pela utilização da água. Na verdade, o poluidor não deixa de ser um usuário, que se utiliza desse recurso para diluir e transportar efluentes. Todavia, existe essa diferença doutrinária, embora a cobrança recaia sobre um e outro, apresentando três finalidades básicas: a primeira, didática, é a de reconhecer o valor econômico da água; a segunda é incentivar a racionalização, por uma questão lógica: pelo fato de se pagar, gasta-se menos e buscam-se tecnologias que propiciem a economia; por último, financiar todos os programas que estiverem contidos no plano, quer dizer, um instrumento de financiamento da recuperação ambiental dos recursos hídricos (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 214).

O princípio da participação ou democrático milita no sentido de que as pessoas têm o direito de participar ativamente das decisões políticas ambientais, além de prever que a sociedade deve participar da sustentação das bases que mantêm o meio ambiente. Está previsto expressamente no Princípio 10 da Declaração do Rio de 1992, afirmando, inclusive, que a sociedade deve participar na compensação e reparação dos danos:

A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito a compensação e reparação de danos (DECLARAÇÃO DO RIO SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992).

Relativamente ao princípio da prevenção, está implicitamente previsto no art. 225 da CRFB/88, sendo aplicável sempre que se tenha prévio conhecimento, com base científica, acerca do risco possivelmente decorrente de determinadas atividades. Estando presentes estes riscos, deve o potencial causador tomar todas as medidas que possibilitem a diminuição – e quiçá extirpação – dos danos ao meio ambiente.

A tônica, quando se fala do princípio da prevenção, é a existência de risco certo, conhecido ou concreto, como ocorre quando se fala da utilização indiscriminada da água. Certamente o uso deste recurso natural sem que sejam tomadas as medidas necessárias à sua preservação ocasionarão o aumento de sua escassez.

O princípio da precaução, por sua vez, nos dizeres de Aragão (2008, p. 21), “destina-se, sobretudo, a regular os chamados ‘novos riscos’ ambientais que se caracterizam por serem riscos globais, retardados e irreversíveis” Estes riscos, diferentemente do que ocorre quando se trata do princípio da prevenção, são desconhecidos, sendo apenas, conforme Machado, que o incerto não é algo necessariamente inexistente, mas pode não estar bem definido, ou não ter suas dimensões ou seu peso ainda claramente apontados. O incerto pode ser uma hipótese, algo que não foi ainda verificado ou não foi plenamente constatado. Nem por isso, deve ser descartado, de imediato. O fato de o incerto não ser conhecido ou de não ser entendido aconselha que ele seja avaliado ou pesquisado (MACHADO, 2007).

Outrossim, embora seja muito mais um compromisso mundial ético do que uma regra autoaplicável ou mesmo de jus cogens, a precaução está prevista no Princípio 15 da Declaração do Rio de 1992, conforme se transcreve:

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (DECLARAÇÃO DO RIO SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992).

Por fim, dentre os princípios mencionados, o do desenvolvimento sustentável tem previsão implícita no art. 225 da CRFB, embora sua etimologia seja um tanto contraditória, porquanto é difícil transformar algo – desenvolvimento – que é, por sua própria natureza, destrutivo em algo que seja voltado à sustentabilidade. Este princípio passou a ser amplamente utilizado quando de sua menção no Relatório Brundtland (Our Common Future), elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, como sendo o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1987).

Conquanto exista uma profusão inadequada do termo desenvolvimento sustentável que acaba por torná-lo inócuo em grande parte das vezes, pode-se dizer, adotando o entendimento de Steinmetz, Carvalho e Ferre (2015, p. 94) - para quem o Princípio do Desenvolvimento Sustentável é composto essencialmente de três dimensões, quais sejam a econômica (permitir o crescimento econômico), a social (garantir a qualidade de vida), e a ambiental (preservar a natureza) –, que diz respeito à proteção ambiental, notadamente em face da conjuntura ecológica do planeta Terra, em que o homem precisa da natureza para a manutenção da vida, sendo parte integrante do meio ambiente.

Portanto, os princípios ambientais ora mencionados embasam a participação da sociedade na preservação dos recursos ambientais, dentre os quais a água. E a cobrança pelo uso deste recurso natural é uma forma potencialmente eficaz de garantir sua preservação. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos não é um instrumento de gestão recente, pois existe na legislação brasileira há tempos. No entanto, nos dias atuais é que se passou a perceber que se faz gradativamente mais necessária sua aplicação, com o objetivo principal de sensibilizar e de buscar o seu uso de forma racional (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 217). A outorga, a qual possibilita a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, tem previsão já na Constituição Federal, inciso XIX do artigo 21, e está regulamentada pela Lei Federal nº 9.433/97, sendo, portanto, um instrumento econômico da gestão deste recurso.

A regulamentação legal tem como objetivo conferir racionalidade econômica e ambiental ao uso da água, além de buscar os recursos financeiros necessários para implantação e custeio do sistema e gerenciamento de recursos hídricos bem como a realização dos estudos, programas e projetos e obras contempladas nos Planos de Bacias Hidrográficas. Essa lei é de suma relevância quando o tema é cobrança pelo uso da água, visto que vai além de autorizar expressamente a sua realização, acabando por estabelecer toda a estrutura necessária ao criar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Compreender a estrutura do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos é requisito para entender como se dá a cobrança pelo uso da água, afinal os organismos que compõem este sistema são os responsáveis pela cobrança. As funções básicas do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos estão estabelecidas na Lei nº 9.433/97, sendo eles: (a) coordenar a gestão integrada das águas; (b) arbitrar administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos; (c) implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos; (d) planejar, regular e controlar o uso, a preservação e a recuperação dos recursos hídricos e, (e) promover a cobrança pelo uso de recursos hídricos.

O legislador, ao acrescentar a cobrança pelo uso da água como objetivo, buscou destacar a importância deste instituto, uma vez que esta menção expressa não seria necessária, posto que a previsão de implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos seria suficiente, porquanto a cobrança pelo uso da água é um dos seus instrumentos.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos deve ser realizada pelas Agências de Bacias Hidrográficas, que são instituições de apoio técnico e administrativo vinculadas aos respectivos Comitês das Bacias Hidrográficas. Esta também pode ser realizada por outra entidade responsável pela outorga de direito de uso nas bacias hidrográficas quando as Agências não existirem (LOPES; NEVES, 2014, p. 33).

Acerca da gestão dos recursos hídricos, esta deve ser pensada como uma política pública com a participação de toda a população, constituindo um meio necessário para superar o enfoque apenas local dos efeitos da poluição e da demanda crescente pelo recurso. Desse modo, a bacia hidrográfica é a unidade ideal para a aplicação regionalizada dessa política, pois é a unidade natural dos recursos hídricos (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 208). A gestão de recursos hídricos baseada no recorte territorial das bacias hidrográficas ganhou força no início dos anos 1990 quando os Princípios de Dublin foram acordados na reunião preparatória à Rio-92. Diz o Princípio nº 1 que a gestão dos recursos hídricos, para ser efetiva, deve ser integrada e considerar todos os aspectos, físicos, sociais e econômicos. Para que essa integração tenha o foco adequado, sugere-se que a gestão esteja baseada nas bacias hidrográficas.

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Portanto, a bacia hidrográfica é uma área de captação natural da água de precipitação que faz convergir o escoamento para um único ponto de saída. A bacia hidrográfica compõe-se de um conjunto de superfícies vertentes e de uma rede de drenagem formada por cursos de água que confluem até resultar em um leito único no seu exutório. A bacia hidrográfica pode ser então considerada um ente sistêmico. É onde se realizam os balanços de entrada proveniente da chuva e saída de água através do exutório, permitindo que sejam delineadas bacias e sub-bacias, cuja interconexão se dá pelos sistemas hídricos (PORTO; PORTO, 2008, p. 45).

A Lei nº 9.433/97 instituiu uma nova política de recursos hídricos e organizou o seu sistema de gestão, concretizando, então, a gestão por bacias hidrográficas. Atualmente, todos os recursos hídricos no território nacional têm sua gestão organizada por bacias hidrográficas, seja em corpos hídricos de titularidade da União ou dos Estados. Não se deve olvidar que, não obstante altamente recomendada, esta metodologia de gestão carrega algumas dificuldades, pois os recursos hídricos exigem a gestão compartilhada entre diferentes entes da administração pública, órgãos de saneamento, instituições ligadas à atividade agrícola, gestão ambiental, etc. Além disso, a cada um desses setores corresponde uma fatia da divisão administrativa distinta da bacia hidrográfica (PORTO; PORTO, 2008, p. 45).

Outro ponto que vale a pena ser destacado é que a Lei nº 9.433/97 não obriga a aplicação de todos os instrumentos de gestão a todas as bacias hidrográfica, tampouco que os instrumentos de gestão utilizados possam ser apenas estes. Esse deve ser considerados um ponto positivo da legislação pois permite adaptar a gestão às particularidades de cada bacia hidrográfica (PORTO; PORTO, 2008, p. 51).

A cobrança, objeto especialmente analisado neste trabalho, constitui um incentivo econômico para que um determinado objetivo de uso racional ou qualidade da água seja atingido. “É um incentivo descentralizado que orienta os agentes a valorizarem os bens e serviços ambientais, de acordo com sua oferta e/ou escassez” (PORTO; PORTO, 2008, p. 52).

Importante a menção do fato de que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos não se trata, de forma alguma de um imposto, mas sim, de um preço público, estabelecido a partir de um contrato entre os usuários da água, sociedade civil e poder público no âmbito do Comitê de Bacia Hidrográfica, instância regional de gestão (SÃO PAULO, 2017).

O preço público é caracterizado, essencialmente, pela voluntariedade (ausência de compulsoriedade de consumo) do consumidor do produto ou serviço, constituindo, assim, receita originária decorrente da contraprestação de um bem ou serviço em uma relação de matiz negocial. Por tal razão, a fixação do preço público não decorre de lei, não sendo um tributo e não se submetendo, por conseguinte, às limitações do poder de tributar.

Quanto aos serviços de energia elétrica e de fornecimento de água, isto é, serviços cujo desligamento pode ser requerido, o Supremo Tribunal Federal – STF e o Superior Tribunal de Justiça – STJ têm entendimento consolidado de que estão sujeitos a preço público, como se infere no julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.189 e do Recurso Especial nº 856.378.

A especificação da natureza jurídica da cobrança é primordial, uma vez que ela delimita os princípios e regras aplicáveis ao fato. Não sendo um tributo, as regras aplicáveis ao preço público são as que regulamentam o próprio setor de fornecimento de recursos hídricos, não sendo aplicáveis as limitações ao poder de tributar, tampouco as leis tributárias.

A cobrança prevista na Lei 9.433/97: (a) não configura imposto, pois imposto tem como função cobrir as despesas feitas no interesse comum, sem ter em conta as vantagens particulares obtidas pelos contribuintes; (b) não é taxa já que não se é exercício de poder de polícia ou utilização efetiva ou potencial de serviço público; (c) não é contribuição de melhoria porque inexiste obra pública que cause a valorização de imóveis beneficiados. Assim, a cobrança configura preço público, por sua natureza originária da exploração de serviços, bens, empresas ou indústria do próprio Estado.

Salienta-se também que, segundo a interpretação mais frequente, se a constituição estadual prevê expressamente a cobrança pelo uso da água, então esse instrumento pode ser instituído por decreto (caso do estado do Ceará) ou por meio de resolução do Conselho de Recursos Hídricos (exemplo do CEIVAP), outra maneira seria por lei específica sobre o tema (como em São Paulo). A instituição da cobrança por meio de decreto poderá tornar o processo, do ponto de vista legal, mais ágil. No entanto, essa aparente facilidade pode significar que a cobrança constitui uma “decisão de gabinete” ou “tecnocrata”, sem a necessária participação da sociedade, o que poderá criar dificuldades no momento da efetiva implementação do instrumento. Da mesma forma, a opção pela lei cria mais espaços para o processo de negociação, mas necessitará de mais tempo para aprovação pelo legislativo. Por isso, adota-se a tese de que alternativa de instituir a cobrança por meio de resolução do Conselho de Recursos Hídricos é a mais conveniente (PEREIRA, 2002).

A maior parte da doutrina entende que reconhecer a água como bem econômico e fornecer ao usuário uma indicação do seu real valor conduz ao objetivo de racionalização do uso. Milaré (2007, p. 571) observa que “o incentivo à racionalização é fundamental e, em razão dele, a cobrança deve ser sempre tida como instrumento de gestão das águas, mais do que fonte de recursos para financiamento de programas”, logo a cobrança incentivará a economia da quantidade de água captada e a melhoria da qualidade dos lançamentos. Além disso,

A cobrança, que não será um imposto nem uma taxa, mas tem características de um preço público aplicado a retiradas de água e a lançamentos de despejos, tem duas finalidades: servir de incentivo ao melhor uso da água (instrumento de racionamento e de racionalização do uso) e ser canalizada para a formação de um fundo “condominial” para aplicação em empreendimentos e ações que visem à recuperação da qualidade, à melhoria da oferta quantitativa e a formas mais racionais de uso. Tanto os valores da cobrança quanto os critérios de aplicação dos recursos arrecadados deverão ser definidos no Plano de Bacia, pelo respectivo Comitê (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 216).

Outro ponto importante é a sensibilização dos usuários como ponto chave do processo, sendo imprescindível a interação e negociação entre os promotores e executores diretamente responsáveis pela implementação da cobrança com os diversos agentes e setores sociais. É de importância fundamental que sejam oferecidas à sociedade condições de expor, criticar, debater e manifestar suas expectativas e aspirações acerca desse instrumento de gestão, possibilitando que sejam efetivamente alcançados os objetivos e metas estabelecidos para a bacia hidrográfica, bem como a conscientização para a proteção, conservação e recuperação dos recursos hídricos (SÃO PAULO, 2017).

Nota-se que a cobrança será realizada perante todos os usuários que utilizam os recursos hídricos, superficiais e subterrâneos, e que dependam de outorga pelo direito de uso, isto é, quem pagará será o usuário que capta água diretamente de um curso de água ou nele lança efluentes. Assim, está sedimentada no Brasil a ideia de que a cobrança pelo uso de recursos hídricos tem base principiológica consistente e previsão legal, devendo ser amplamente implementada visando a possibilitar a preservação deste recurso natural.

3. Arrecadação percebida pela cobrança e o caso do Rio Grande do Sul

Um ponto importante acerca do assunto nos estudos sobre a implementação do instrumento da cobrança é, certamente, o valor percebido por meio desse instrumento, associado à sua viabilidade de implantação pelos Estados. Nesse contexto, encontram-se trabalhos publicados referentes tanto a estudos para a implantação do sistema, quanto de resultados pós-implantação, que então permite que se façam inferências acerca dos possíveis resultados que poderiam ser percebidos caso o sistema já estivesse implantando no estado do Rio Grande do Sul.

Em um artigo consta que a arrecadação total na Bacia Hidrográfica (BCH) Paraíba do Sul referente ao período de exercício de 2008 a 2011, foi de aproximadamente R$ 56 milhões, com uma média mensal de R$ 1,165 milhões. Nesta bacia, o setor que mais contribui com a arrecadação foi o industrial (49,56%), seguido do de saneamento (49,27%). Já a arrecadação total na BCH dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) referente ao período de 2006 a 2011 foi de R$ 91.653.485,67, com uma média mensal de R$ 1.272.965,11. O tipo de uso que mais contribuiu com a arrecadação foi o setor de saneamento (82,71%), seguido do setor industrial (13,75%). A arrecadação total setorial na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (BHSF) nos anos de 2010 a 2011 foi de R$ 29.154.889,86, com uma média mensal de R$ 1.214.787,07. A arrecadação pelo uso da água na BCH do Rio Doce referente aos anos de 2012 e 2013 foi de R$ 4.909.913,67. A arrecadação referente à cobrança pelo uso da água por setor no estado do Ceará, nos anos de 2011 e 2012, foi R$ 98.610.298,00. O setor de maior contribuição foi o de abastecimento público (62,50%), seguido pelo setor industrial (35,43%) (FINKLER et al, 2015). No estado de São Paulo de 2007 a 2009 foram arrecadados aproximadamente 44 milhões de reais pela cobrança estadual, sendo aproximadamente 37 milhões na BCH PCJ e 7 milhões na BCH Paraíba do Sul.

Em rios de domínio da União, a cobrança ocorre nas bacias dos rios Paraíba do Sul (MG, RJ e SP) desde 2003 e na dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (MG e SP) desde 2006. Em ambas, já foram arrecadados 100 milhões de reais até o final de 2009. De 2007 a 2009 foram aplicados pelos Comitês, 30 milhões de reais, oriundos da cobrança em rios de domínio estadual, em empreendimentos para a melhoria da qualidade ambiental nessas regiões. Os principais focos de investimento nas bacias estaduais foram: (1) Coleta e tratamento de esgotos (mais de 70% dos recursos); (2) Abastecimento e controle de perdas; (3) Estudos e projetos (SÃO PAULO, 2017).

Importante mencionar que a maior parcela de investimentos realizados nessas bacias é relativa a ações estruturais que visam à recuperação dos corpos hídricos, como por exemplo, a construção de estações de tratamento de esgoto e sistemas de coleta e de afastamento de efluentes sanitários. Estas ações devem ser realizadas exclusivamente seguindo o que está estabelecido como prioridade pelo Plano de Bacia, conforme disposto na Lei 9.433/97 (FINKLER et al, 2015). Ainda sobre o montante arrecadado, é relevante a classificação dos corpos de água, pois as características físico-químicas e biológicas da água são consideradas na definição do valor cobrado pelo recurso. No estado de São Paulo “o valor cobrado é pactuado pelos membros do comitê de bacia e aprovado em sua reunião plenária” (LOPES; NEVES, 2014, p. 33).

É importante ressaltar que o produto da cobrança estará vinculado às bacias hidrográficas em que for arrecadado e será aplicado em financiamentos, empréstimos, ou a fundo perdido, para a implementação de programas, projetos, serviços e obras, de interesse público, da iniciativa pública ou privada, definidos nos Planos de Recursos Hídricos, em conformidade com o aprovado pelo respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica (LOPES; NEVES, 2014, p. 36). Mesmo assim, Hartmann aponta que pode ser uma ideia sensata aplicar as receitas auferidas com a cobrança ou uma parte desta receita fora da bacia de origem, visto que a legislação brasileira de recursos hídricos já apresenta esta ideia básica – “através da transferência de recursos financeiros, bacias mais pobres deverão ser apoiadas por bacias mais abastadas, no âmbito do princípio de solidariedade” (HARTMANN, 2010, p. 136).

Aprofundando se toma como exemplo o CEIVAP, criado pelo Decreto Federal nº 1.842, de 22 de março de 1996, o Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, o qual teve sua área de abrangência e nomenclatura alteradas pelo Decreto Federal nº 6.591, de 1º de outubro de 2008. Abrangendo 184 cidades nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, o CEIVAP é o parlamento no qual ocorrem os debates e decisões descentralizadas sobre as questões relacionadas aos usos múltiplos das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, inclusive a decisão pela cobrança pelo uso da água na bacia. O Comitê é constituído por representantes dos poderes públicos, dos usuários e de organizações sociais com importante atuação para a conservação, preservação e recuperação da qualidade das águas da Bacia (COMITÊ DE INTEGRAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL, 2017).

Uma das atribuições do CEIVAP é aprovar e acompanhar a execução da cobrança pelo uso da água, cujos critérios e valores são aprovados por seu plenário. O próprio órgão define que a cobrança deverá induzir o uso racional da água, reduzindo o desperdício e os índices de poluição. A implantação da cobrança nesta bacia é pioneira no Brasil, tendo arrecadado R$ 62 milhões entre 2003 e 2010 (COMITÊ DE INTEGRAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL, 2017). As deliberações sobre os mecanismos e valores de cobrança pelo uso da água no âmbito do CEIVAP iniciou-se formalmente em 16 de março de 2001. A metodologia foi aprovada em março do mesmo ano e buscava atender três objetivos principais: (1) consolidar o processo de gestão da bacia do rio Paraíba do Sul com o início da cobrança pelo uso dos recursos hídricos; (2) possibilitar a implementação, em curto prazo, de ações de gestão e recuperação ambiental hierarquizadas pelo CEIVAP; e (3) assegurar a contrapartida financeira da bacia para o Programa Nacional de Despoluição de Bacias Hidrográficas - PRODES, concebido pela ANA. O CEIVAP afirma que em um primeiro momento houve uma boa aceitabilidade por parte dos usuários-pagadores e da comunidade em geral, especialmente por conta da simplicidade da metodologia de cobrança que, por ser de fácil compreensão e ter parâmetros facilmente quantificáveis, facilitou o entendimento e a pactuação de valores entre os atores envolvidos e, de outro lado, da fixação de valores de cobrança através de processo participativo, com o envolvimento efetivo dos usuários (ASSOCIAÇÃO PRÓ-GESTÃO DAS ÁGUAS DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL, 2007, p. 111).

O quadro 1, a seguir, informa o montante arrecado na bacia do rio Paraíba do Sul, no período de março de 2003 a dezembro de 2006, referente à cobrança pelo uso da água, recursos adicionais alavancados e investimentos realizados no período.

Quadro 1 – Arrecadação, recursos adicionais alavancados e investimento realizados na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul – março de 2003 a dezembro de 2006

Fonte de Recursos

Valor (R$)

%

Cobrança pelo uso da água

28.978.619,65

44,03

Recursos adicionais alavancados com recursos da cobrança

25.541.806,19

38,80

Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas (ANA)

11.310.769,50

17,17

Total

65.822.195,34

100

Fonte: adaptado de Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, 2007, p. 113.

Para o período posterior a 2007, o CEIVAP definiu que a cobrança pelo uso de recursos hídricos na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul será feita levando em consideração os tipos de uso. São considerados como usos da água: captação, consumo, lançamento, transposição de bacias, aproveitamento de potencial hidrelétrico, mineração de areia em leito de rio, setor agropecuária e aquicultura.

Vale ressaltar que o plano de investimentos da bacia para o período 2007-2020 foi orçado em R$ 4.688.817.670,00. Foi sugerido no plano que os programas relativos às ações de gestão, entre eles a cobrança, sejam desenvolvidas no curto prazo, tendo em vista que são ações que, além de consolidarem o processo de gestão da bacia, são geradoras de mais recursos. Os investimentos foram concebidos para reverter a tendência de agravamento das condições ambientais e de redução quali-quantitativa da disponibilidade hídrica, decorrentes da expansão urbana e da intensificação das atividades econômicas, quer através de intervenções estruturais e não estruturais que ampliem o patamar de proteção dos corpos d’água, quer pela estruturação e operacionalização dos instrumentos de gestão previstos nas políticas nacional e estaduais de recursos hídricos (ASSOCIAÇÃO PRÓ-GESTÃO DAS ÁGUAS DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL, 2007, p. 75).

O financiamento dos investimentos vem dos orçamentos do Governo Federal, do Estado e/ou dos municípios, a fundo perdido. Parte do financiamento dessas ações ocorre, também, a partir da cobrança pelo uso da água e dos créditos levantados a partir disso. O plano prevê que os valores percebidos pela cobrança se destinarão para: (1) disciplinamento da atividade mineral; (2) avaliação da operação hidráulica integrada à geração de energia elétrica no sistema Paraíba do Sul; (3) desenvolvimento do sistema de monitoramento de qualidade e quantidade dos recursos hídricos; (4) desenvolvimento de um sistema piloto de monitoramento biológico, de erosão e assoreamento, de poluição por cargas acidentais e por poluição difusa na bacia do rio; (5) elaboração de cadastro de resíduos sólidos industriais; (6) financiar o Plano de Comunicação Social e Tratamento da Informação Qualificada; (7) monitoramento hidrológico e sistemas de previsão e alerta de cheias; (8) recuperação e conservação de faixas marginais de proteção, e; (9) incentivo a programas de racionalização de uso da água na agropecuária. Percebe-se, portanto, a importância da aferição dos créditos levantados por meio da cobrança pelo uso da água na gestão da bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (ASSOCIAÇÃO PRÓ-GESTÃO DAS ÁGUAS DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARAÍBA DO SUL, 2007, p. 104).

O estado do Rio Grande do Sul foi pioneiro em gerenciamento de vários aspectos essenciais relacionados ao trato com os recursos hídricos, tendo inclusive em 1994 instituído o Sistema Estadual de Recursos Hídricos – Lei 10.350 –, que foi base para a Política Nacional de Recursos Hídricos. Ainda assim, o estado vivencia, há um longo período, uma situação de apatia em relação ao tema da cobrança e o instrumento ainda não foi posto em prática em nenhuma de suas bacias estaduais (COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015, p. 16).

Primeiramente observa-se o caso da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, situada no estado do Rio Grande do Sul, que teve o primeiro comitê de bacia hidrográfica constituído no Brasil, em 1987, ainda não possui um plano de bacia acabado. Entre as ações previstas no texto atual, existem indicativos para a cobrança pelo uso da água na bacia, porém estes apenas informam que se está aguardando as diretrizes a serem definidas no Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH) e enumera os obstáculos e dificuldades previstas para a implantação da cobrança: (1) interfaces institucionais; (2) inexistência de uma Agência de Águas atuando em caráter permanente; (3) a necessidade de definições de natureza mais ampla (PERH); e, (4) que a sociedade da Bacia possivelmente não estará simpática a uma nova cobrança e reações enfáticas devem ser esperadas (GODECKE, 2014, p. 144.).

Em estudo do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos foram realizadas quatro simulações, considerando duas bases de cálculo – provenientes do modelo adotado pelo plano de bacia do Rio Doce e do CEIVAP – e os dois modelos adotados. O plano de bacia simula que os valores totais anuais de potencial de arrecadação na bacia variam de 4,4 a 10,8 milhões de reais. Em todas as simulações o setor de saneamento responde por cerca de 70% da arrecadação e a indústria entre 15% e 20%. A simulação da cobrança tendo como base a metodologia utilizada no rio Doce tem maior potencial de arrecadação, com receitas quase 50% superiores ao modelo do CEIVAP (COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DOS SINOS, 2014, p. 113).

Em outro estudo, realizado em 2007 pela Agência Nacional de Águas, foram feitas simulações de arrecadações potenciais para as bacias hidrográficas do estado do Rio Grande do Sul. Partiu-se da base de dados do PERH-RS e foi aplicada a mesma metodologia da Bacia do Paraíba do Sul (CEIVAP), resultando nos seguintes valores anuais, para as seguintes bacias do estado do Rio Grande do Sul, apresentados sumariamente no Quadro 2 (COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015).

Quadro 2 – Simulação por bacia a partir da metodologia do CEIVAP

Unidade de Gestão

Faturamento (R$/ano)

Saneamento

Animal

Indústria

Irrigação

Total

Alto Jacuí

419.120

1.121.839

113.862

58.067

1.712.888

Baixo Jacuí

436.811

580.298

1.025.761

1.096.471

3.139.341

Caí

655.422

586.777

803.599

35.326

2.081.124

Gravataí

1.997.207

98.215

239.349

172.597

2.507.368

Lago Guaíba

1.932.941

96.029

2.331.354

260.750

4.621.074

Pardo

273.406

406.143

54.413

102.991

836.953

Sinos

1.828.758

107.306

1.695.137

82.391

3.713.592

Taquari-Antas

1.596.303

6.225.260

1.158.313

95.848

9.075.724

Vacacaí-

Vacacaí Mirim

513.860

163.566

53.608

788.746

1.519.780

Total

9.653.828

9.385.433

7.475.396

2.693.187

29.207.844

Fonte: adaptado de COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015.

Uma segunda simulação, que utilizou a mesma base de dados, foi elaborada pela Metroplan, em 2012. A simulação foi realizada para fins de Capacitação dos Membros do Comitê, explicitando o funcionamento dos mecanismos de cobrança, os potenciais de arrecadação em cada bacia, e os impactos financeiros sobre os setores usuários. O modelo utilizado foi inspirado no modelo da bacia do rio Doce, porém com valores e coeficientes diferenciados. O quadro 3 apresenta os valores anuais obtidos nesta simulação (COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015).

Quadro 3 - Simulação por bacia a partir da metodologia do rio Doce

Bacia

Hidrográfica

Valores arrecadados (R$/ano)

Urbano

Rural

Industrial

Animais

Irrigação

Total

Gravataí

2.901.574

42.195

302.203

6.594

259.943

3.512.509

Sinos

4.602.190

96.529

3.346.486

9.461

234.637

8.289.302

Caí

1.406.476

114.665

1.564.363

26.490

100.584

3.212.578

Taquari-Antas

3.520.774

492.718

2.225.029

207.192

263.950

6.709.662

Alto Jacuí

1.135.274

135.214

199.613

44.466

91.306

1.605.872

Vacacaí e

Vacacaí-Mirim

1.259.672

67.153

98.579

45.412

2.237.829

3.708.645

Baixo Jacuí

1.036.256

172.565

2.046.426

61.495

3.112.493

6.429.235

Lago Guaíba

4.860.301

73.794

4.650.063

7.569

770.298

10.362.024

Total

20.722.517

1.194.833

14.432.762

408.679

7.071.040

43.829.827

Fonte: adaptado de COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015.

É importante destacar que estas simulações do potencial de arrecadação da cobrança pelo uso da água apontam que a Bacia do Rio Caí tem potencial de arrecadação entre R$ 1,8 e 3,5 milhões/ano dependendo do modelo de cobrança a ser escolhido. A partir dessa simulação o próprio plano de bacia deste rio conclui que a Bacia do Caí tem potencial para arrecadar recursos, através da cobrança pelo uso da água, suficientes para custear a execução do Plano de Ações proposto pelo comitê (COMITÊ DE GERENCIAMENTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAÍ, 2015).

Seguindo esta linha que demonstra a importância da cobrança e os valores apresentados das simulações acima, o plano da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba afirma que este deixa de investir aproximadamente 100 milhões de reais em valores atuais a cada década na gestão de recursos hídricos. Estes recursos para investimento na bacia se mostram indispensáveis, tendo em vista os investimentos requeridos no plano de ações da bacia. Ou seja, enquanto a cobrança não for implantada, estes recursos serão exigidos do Estado, o qual conta com grandes limitações para atender esta demanda, resultando em cenário de gestão ineficiente da bacia por falta de recursos mínimos para a implementação das ações prioritárias. Além disso, a implantação da cobrança se apresenta como necessário, também, para o aprimoramento do arranjo institucional que dá sustentação à gestão de recursos hídricos na bacia. As demandas de qualificação e capacitação para que o Comitê de Bacia venha a exercer plenamente suas funções se encontram represadas na falta de uma dinâmica e de uma estrutura profissionalizada que lhe dê suporte técnico e operacional, estrutura esta que pode ser custeada, ainda que de maneira parcial, pela cobrança (COMITÊ DO LAGO GUAÍBA, 2016).

Uma questão polêmica que permeia a morosidade do Estado do Rio Grande do Sul no tocante à instituição da cobrança pelo uso dos recursos hídricos diz respeito à possível renúncia de receita praticada pelo ente federativo, maculando ainda mais as já problemáticas contas públicas estaduais.

É fato notório que o Estado do Rio Grande do Sul encontra-se em dificuldades financeiras há algum tempo, de modo que suas receitas não são bastantes para o cumprimento das despesas que realiza.

Nos últimos 13 anos, o valor transferido do Estado para os Municípios, entidades civis e cidadãos da Administração Pública estadual, cuja responsabilidade de execução é do favorecido, saltou de 2,8 bilhões de reais em 2004 para 20,8 bilhões em 2017 (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Com saneamento, por exemplo, cujos gastos correspondem ao maior percentual de despesas, a Administração estadual gastou, em 2017, 7,8 milhões de reais (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Como visto acima, caso houvesse a cobrança pelo uso de recursos hídricos, parte desses gastos poderia ser custeada pelos usuários dos recursos – se não todas as despesas.

No entanto, com relação a configurar tal ausência de implementação de cobrança uma renúncia de receita, tal entendimento deve ser afastado, pois, não tendo a cobrança por recursos hídricos a natureza jurídica de tributo – ou seja, trata-se de preço público -, não há que se falar em renúncia de receita por parte do Estado do Rio Grande do Sul.

A CRFB/88 dispõe, em seu art. 165, § 6º, que o projeto de lei orçamentária será acompanhado pelo demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrentes de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.

Note-se que todos apontamentos dispostos na norma constitucional dizem respeito a espécies tributárias, isto é, somente são possíveis de serem praticados em face de tributos. Não sendo o preço público uma espécie de tributo, então, não se trata de renúncia de receita. Não obstante, não há que se dizer que a forma de agir do Rio Grande do Sul é correta pelo só fato de não existir obrigatoriedade de imposição de cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Existem princípios constitucionais aplicáveis ao administrador público que devem permear a gestão, possibilitando equilíbrio nas contas públicas. Talvez o mais importante para os fins da presente pesquisa seja o princípio da eficiência, o qual determina, em suma, que a Administração Pública deve suprir o interesse público da forma mais ampla possível utilizando o mínimo possível de recursos.

Na Administração Pública, a ideia, antes consagrada, da impossibilidade da impugnação do ato judicial do mérito administrativo, vem cedendo espaço para o controle calcado em princípios, como a moralidade e a eficiência. Além disso, o princípio da legalidade administrativa, segundo o qual o Estado só pode agir quando autorizado por lei, tem sido repensado em razão do reconhecimento da força normativa da Constituição. E isso se deve ao mero fato de que se as normas constitucionais são, em regra, diretamente aplicáveis, não faria sentido exigir que a Administração se abstivesse de agir sob o pretexto de inércia do legislador (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012).

O princípio da eficiência foi incorporado à CRFB/88 pela Emenda Constitucional nº 19/98, estando dentre os princípios que devem nortear as ações da Administração Pública. Segundo Meirelles, trata-se, na verdade, de um dever do administrador, um agir eficiente, definindo-o como

O que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. [...] Corresponde ao ‘dever de boa administração’ da doutrina italiana (MEIRELLES, 2003, p. 102).

Conforme dispõe Di Pietro, o princípio da eficiência apresenta 2 aspectos: quanto ao modo de atuação do agente público, o qual deve desempenhar suas atividades de forma a alcançar sempre o melhor resultado possível; e quanto ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com vistas a alcançar os melhores resultados possíveis (DI PIETRO, 2012).

A ilustre autora dispõe, em complementação, que a ideia de eficiência esteve muito presente nos objetivos da Reforma do Estado, cujo Plano Diretor, elaborado em 1995, expressamente afirmava que reformar o Estado significa melhorar não apenas a organização e o pessoal, mas também suas finanças e todo o seu sistema institucional-legal, permitindo uma relação harmoniosa entre a Administração pública e a sociedade civil (DI PIETRO, 2012).

Segundo Aragão (2004, p 240), a eficiência não pode ser entendida tão somente como maximização do lucro, mas sim como um melhor exercício das missões de interesse coletivo que incumbem ao Estado, o qual deve obter a maior realização prática possível das finalidades do ordenamento jurídico com os menores ônus possíveis, tanto para o Estado, notadamente no tocante às finanças, quanto para as liberdades dos cidadãos.

Portanto, desde o advento da inserção do princípio da eficiência na própria CRFB/88 pelo poder constituinte derivado é necessário que o Estado deixe de arguir a correção de seus atos apenas no concernente à legalidade, devendo buscar fazer sempre mais e melhor com o menor custo possível.

Nesta senda, incorre em verdadeira ofensa à eficiência o Estado do Rio Grande do Sul ao deixar de instituir a cobrança pelo uso de recursos hídricos, necessitando utilizar parte de suas finanças para arcar com despesas que poderiam ser repassadas aos usuários e investindo em setores cuja arrecadação é proveniente exclusivamente de tributos.

Ilustrando o cenário financeiro no qual se encontra inserido o Estado do Rio Grande do Sul, podem ser mencionados alguns fatos que têm deixado a população rio-grandense sem o cumprimento, pela Administração Pública, de serviços básicos.

Desde fevereiro de 2017 os salários dos servidores públicos do Estado do Rio Grande do Sul têm recebido seus salários de forma parcelada, ou seja, recebem parcelas inferiores ao total no decorrer do mês, dificultando a vida das famílias daqueles que mantém vínculo efetivo com a Administração Pública estatal (G1, 2017a).

Parte dos servidores – especialmente os integrantes do Sindicatos dos Técnicos Científicos do RS – buscou o Judiciário requerendo intervenção federal em face do descumprimento de decisões judiciais que determinavam o pagamento integral dos salários, as quais estavam sendo sistematicamente descumpridas, com fulcro no art. 34, inciso VI, da CRFB/88. Entretanto, o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou improcedente o pedido, fundamentando que não basta o mero descumprimento para que se configure causa de intervenção, sendo necessário que o descumprimento ocorra de forma voluntária pelo ente estatal, o que não acontecia no caso em apreço, onde o descumprimento se dava por comprovada insuficiência de recursos financeiros (BRASIL, 2017).

É de se perceber que o próprio Poder Judiciário gaúcho tem conhecimento da crise financeira pela qual atravessa o Estado do Rio Grande do Sul, como se denota do uso de 95% dos depósitos judiciais pelo Poder Executivo gaúcho, o qual ocorre desde 2004 (ESTADÃO, 2016), sendo imponíveis juros equivalentes aos da taxa SELIC, sendo os problemas ocasionados pela limitação de receitas de notório conhecimento da população.

Em razão dos problemas financeiros, o governo gaúcho tem insistentemente buscado alternativas jurídicas para a resolução dos problemas, como desestatização de empresas públicas e sociedades de economia mista e aprovação de Plano de Recuperação Fiscal do Estado junto à União, o que não ocorreu até o presente momento (G1, 2017b; 2017c).

Logicamente o resultado dessa grave crise financeira no Estado do Rio Grande do Sul redunda em problemas das mais variadas ordens, como a realização de greves de diversas categorias, em especial de professores, a qual perdurou de 05/09/2017 a 08/12/2017, ou seja, 95 dias com escolas em déficit de professores, com alunos das escolas estaduais sem aulas (G1, 2017d).

Além disso, os investimentos em educação, segurança, saúde, dentre tantos outros de responsabilidade da Administração Pública, encontram-se praticamente congelados, visto que se não há dinheiro sequer para arcar com despesas correntes, valores direcionados a novas despesas são praticamente inexistentes, embora as despesas tenham aumentado quantitativamente (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Embora apresentados de forma sucinta alguns problemas decorrentes da crise financeira que assola o Rio Grande do Sul, é evidente que não deve se abster de instituir uma cobrança constitucionalmente prevista e que redundaria na diminuição de investimentos provenientes da receita de tributos.

É de suma importância mencionar que o Rio Grande do Sul foi o primeiro Estado brasileiro a positivar a cobrança pela utilização de recursos hídricos. A Lei nº 10.350/94, que instituiu o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, dispôs em seu art. 23, inciso VIII, que o Plano Estadual de Recursos Hídricos disporia sobre as diretrizes para a cobrança pelo uso da água, não existindo razão, a não ser a própria ineficiência reiterada dos diversos governos estaduais, para a não instituição da cobrança.

Pode-se dizer, ainda, que a própria Constituição do Rio Grande do Sul (1989) instituiu o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, em seu art. 171, o que torna a inércia governamental ainda mais calamitosa.

É realmente inexplicável a razão pela qual não fora instituída, até hoje, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos no Rio Grande do Sul, tendo em vista a situação econômica em que se encontra o Estado, além de demonstrados os resultados das bacias hidrográficas onde existe a cobrança e dos valores simulados que seriam arrecadados.

Como disposto, não há que se falar em renúncia de receita. Não obstante, existe flagrante ofensa ao princípio da eficiência, porquanto um Estado que se encontra à beira de um colapso financeiro não pode simplesmente fazer vista grossa para um instrumento de arrecadação que traria alívio aos cofres públicos, possibilitando que receitas de tributos fossem direcionadas a áreas que não digam respeito aos custos relativos ao uso da água.

Tal cobrança poderia ocorrer até mesmo por meio de Decreto – conquanto tal forma de instituir a cobrança pode redundar na ausência de participação popular no processo -, visto que existe previsão constitucional de cobrança, deixando claro que a ausência da instituição da arrecadação se trata de inércia sem fundamento, ofensiva ao princípio da eficiência.

A cobrança não deve ser vista como um instrumento de gestão isolado e capaz de resolver todas as questões relacionadas com o planejamento e gestão de recursos hídricos. A outorga de direitos de uso, o licenciamento ambiental e os planos de bacias aprovados pelos Comitês de Bacias são igualmente, ou talvez, mais importantes. Da mesma forma, o fomento a investimentos em gestão, em obras e serviços de interesse regional pode ser a forma mais eficaz de se melhorar a qualidade dos investimentos a serem aplicados (PEREIRA, 2002, p. 193.).

Conforme dispõe Hartmann, a implementação e a metodologia da cobrança devem ser sempre determinadas pelas reações desejadas dos usuários, e não apenas pela necessidade de receita. Entretanto, como comumente ocorre no Brasil, os atores envolvidos no comitê de bacia compreendem o instrumento da cobrança pelo uso da água primeiramente como fonte de recursos financeiros, para realizarem diferentes investimentos (HARTMANN, 2010, p. 135-180).

Nada obstante, “uma cobrança diferenciada é melhor do que nenhuma cobrança, pois não se deve subestimar o efeito psicológico que pode ter uma cobrança pelo uso da água bruta” (HARTMANN, 2010, p. 180).

Desta forma, sendo ofensiva ao princípio da eficiência a inércia estatal, deve ser implementada a cobrança pelo uso dos recursos hídricos no Estado do Rio Grande do Sul, de forma a suprir as necessidades financeiras para o abastecimento da população usuária e, consequentemente, cessar a destinação de receitas de tributos a setores que poderiam ser facilmente financiados por receitas diretamente provindas dos usuários do recurso.

4. Considerações finais

O uso dos recursos hídricos é realizado de forma descontrolada pelos diferentes setores da sociedade. A escassez é algo visível e perceptível, especialmente pelas camadas mais pobres, e que tende a aumentar devido às ações humanas combinada com a má gestão. Além dos problemas quantitativos, o Brasil apresenta, em uma dimensão cada vez maior, o problema da qualidade da água. Sobretudo as grandes áreas industriais e metropolitanas estão sendo afetadas por uma poluição extrema de seus recursos hídricos. A causa deste problema se encontra principalmente no lançamento de efluentes industriais e domésticos através das companhias de saneamento municipais (HARTMANN, 2010, p. 90).

Sendo assim, é necessário atentar para a utilização eficiente dos instrumentos de gestão presentes na legislação com o intuito de serem amenizadas as problemáticas ambientais. Este foco no planejamento e nos instrumentos de gestão, como a cobrança, garantem, nos países em que são aplicados, resultados efetivos na recuperação e na conservação dos recursos hídricos, bem como no seu melhor compartilhamento (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 208).

Além disso, a participação da sociedade local no processo de implementação da cobrança será de extrema importância. Por isso, são relevantes as realizações de audiências públicas mensais organizadas pelos Comitês de Bacias com o objetivo de informar a sociedade acerca de como será feito esse processo e de que forma a indústria, a agricultura e o comércio pagarão por esse bem natural dotado de valor econômico (SANTIN; GOELLNER, 2013, p. 217). Este último ponto é relevante pois quase todos os modelos de cobrança preveem, com base em motivos político-sociais, uma cobrança diferenciada segundo setores. A atividade agrícola, por exemplo, um dos grupos de usuários mais significantes, costuma ser beneficiada com benefícios consideráveis, ou até mesmo isenções (HARTMANN, 2010, p. 416).

Contudo vale mencionar que os usuários brasileiros aparentemente entendem a cobrança como garantia de disponibilidade, já que ela é vista como instrumento para evitar o esgotamento e a degradação das reservas naturais de água, ou seja, pelo fato de pagarem pela utilização os usuários têm garantido o direito de uso contínuo da água (HARTMANN, 2010, p. 423).

Ainda que o objetivo de obtenção de recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos esteja distante de ser alcançado, pois poucas são as bacias hidrográficas do País onde é feita a cobrança e os valores arrecadados são modestos (MILLAN, 2008, p. 559.). É preciso pontuar que a cobrança não deve ser vista como um instrumento de gestão isolado e capaz de resolver todas as questões relacionadas com o planejamento e gestão de recursos hídricos. Outras ferramentas como a outorga de direitos de uso, o licenciamento ambiental e os planos de bacias aprovados pelos Comitês de Bacias são igualmente, ou talvez, mais importantes que a cobrança. Da mesma maneira, o fomento a investimentos em gestão, em obras e serviços de interesse regional pode ser a forma mais eficaz de se melhorar a qualidade dos investimentos a serem aplicados (PEREIRA, 2002, p. 193).

Ainda que alguns autores pontuem a importância de que a implementação e a metodologia da cobrança deveriam ser determinadas pelas reações desejadas dos usuários, e não pela necessidade de receita (HARTMANN, 2010, p. 135). Ocorre que no Brasil os atores envolvidos no comitê de bacia compreendem o instrumento da cobrança pelo uso da água primeiramente como fonte de recursos financeiros, para realizarem diferentes investimentos.

Este modelo brasileiro corresponde a uma prática internacional vigente, em poucos lugares as cobranças pelo uso da água são orientados pelos objetivos incitativos. Os objetivos de financiamento estão sempre em primeiro plano. No sistema francês das redevances, o qual serviu de exemplo para a cobrança no Brasil, aparece como parâmetro o financiamento de uma parte dos investimentos previstos nas bacias. Apesar de tudo, pode-se esperar da execução da cobrança um efeito de controle de uso, o qual aparece como efeito colateral ou de forma casual (HARTMANN, 2010, p. 412). Afinal, uma cobrança diferenciada é melhor do que nenhuma cobrança, pois não se deve subestimar o efeito psicológico que pode ter uma cobrança pelo uso da água bruta.

Por fim, pontua-se que uma estação de tratamento de esgotos financiada com recursos provenientes das receitas de cobrança, por exemplo, é certamente mais visível aos olhos dos usuários e da opinião pública que a redução do lançamento de esgotos poluídos de usuários individuais – estimulada por uma cobrança incitativa. Assim, a cobrança para fins de financiamento parece à primeira vista, junto à população, mais aceitável que uma cobrança indutora de uma racionalidade no uso (HARTMANN, 2010, p. 423).

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Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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