As decisões do STF em dissintonia com o Sistema Constitucional Tributário do Brasil

16/02/2023 às 11:48
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Luiz Fernando Maia

Como o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja função é proteger nosso regramento Constitucional, pode contrapor suas decisões à lógica de um sistema tributário, cujos princípios, regras, limitações ao poder de tributar estão todos de forma expressa e detalhada no corpo da Constituição? Por paradoxal que seja, fato é que isto vem ocorrendo sistematicamente nos Recursos Repetitivos do STF em temas tributários, sob o artifício da modulação dos efeitos.

A modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, quando usada para limitar a eficácia temporal das decisões judiciais, em controle concentrado ou difuso, é justificada e plausível pelo impacto que a declaração da inconstitucionalidade de um tributo pode repercutir. No entanto, é por demais óbvio que o instituto não pode modular o mérito, mas tão somente os seus efeitos ex nunc a contar da data da decisão, com maior ou menor potencialização dos contribuintes lesados pela tributação inconstitucional serem ressarcidos.

Exemplificaremos abaixo decisões sobre inconstitucionalidade de leis tributárias onde, com perplexidade, constata-se que ao mesmo tempo em que o STF reconhece a inconstitucionalidade da exação (mérito) em efeito modulador suspende a decisão meritória, autorizando que sua cobrança continue após decretada sua inconstitucionalidade, segundo conveniência do Erário. Ora, o nosso Sistema Constitucional Tributário sequer recepciona como um natimorto lei inconstitucional, pois ela é considerada inexistente desde sua concepção (aprovação de lei).

A questão aqui colocada em debate afeta, em muito, a característica atual do STF quanto ao fenômeno mundial do ativismo nas Cortes Superiores ao apreciar ações que envolvem discussão sobre a constitucionalidade de determinadas normas, que repercutem na sociedade como um todo, tangenciando ser um terceiro órgão do Congresso Nacional.

Não analisamos aqui o aspecto de ser positivo ou negativo tal prática. Na verdade, na maior parte são oportunas. O que criticamos aqui é que esta posição do STF é absolutamente incompatível quando se discute se um tributo é constitucional ou inconstitucional. O tributo é constitucional na medida que atende a todo o nosso Sistema Constitucional Tributário, em especial, aos Princípios Constitucionais Tributários que limitam o poder de tributar.

Nesta linha, apresentamos a seguir exemplos pontuais (não taxativos) do que chamamos de extrapolamento dos efeitos moduladores no âmbito constitucional tributário, trazendo à tona tema que reputamos de suma importância, vez que pode mitigar as garantias assecuratórias constitucionais, em especial da legalidade, ratificada de forma específica, como Princípio Tributário.

Inconstitucionalidade da alíquota de 25% ICMS para serviços de energia elétrica e telecomunicações: Trata-se do Tema 745 de repercussão geral, no qual o STF, por sete votos a três, declarou inconstitucional o art. 19, inciso II, alíneas "a" e "c", da Lei estadual 10.297/1996 de Santa Catarina. A repercussão justifica-se porque esta alíquota de 25% foi introduzida por vários estados da Federação.

Tema 745: "Adotada pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços". Pois bem, reconhecido o descumprimento do princípio constitucional tributário da seletividade do ICMS, a tributação foi declarada inconstitucional, o que implica que nunca poderia ter existido em nosso Sistema Constitucional Tributário.

No entanto, em que pese o reconhecimento da inconstitucionalidade, o STF determinou que os efeitos da decisão (tributo inconstitucional) somente passassem a vigorar no exercício de 2024, atendendo necessidade de compatibilizar a decisão às leis orçamentárias dos Estados. Em outras palavras, os Estados/DF podem exigir o pagamento de um tributo até 2024, não por coação da lei (que deixou de existir desde o reconhecimento de ser inconstitucional) e sim por um mandamento do STF. Isto joga por terra o Princípio Constitucional Tributário da legalidade, deixando o tributo de ser cobrado por coação de lei para ser cobrado por um efeito modulador, que jamais poderia criar, majorar ou constitucionalizar o que declarou inconstitucional.

Na mesma linha temos o Tema 1099 da repercussão geral publicada em 9/20, no qual o STF decidiu: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

Em efeito modulador determinou que o ICMS, inconstitucionalmente cobrado na transferência entre estabelecimentos do mesmo proprietário, fosse cobrado ainda por 18 meses após a decisão. Ora, não se modula a aplicação de um sistema Constitucional Tributário sob qualquer justificativa, mesmo se contraposto às regras fiscais, já que no caso das Leis Orçamentárias há mecanismos próprios a serem seguidos quando constatada a insuficiência da receita durante a execução do orçamento. Não trata-se de falta de tecnicidade das modulação citadas, mas de efetiva afronta às Regras Constitucionais Tributária, agravada por favorecer quem abusou do direito de tributar.

Emendas Constitucionais n° 31 e n° 42/2003 (ARE 1.407.595): Aqui propriamente não tratamos de um caso de modulação, mas de um efeito vinculante a uma decisão, que postergou a continuação no mundo jurídico de uma tributação inconstitucional. Na EC n° 31 foi incluído nos arts. 79 a 83, nos âmbitos do DF e Estados, a criação dos Fundos de Combate e Erradicação da Pobreza, com expressa previsão de necessária Lei Complementar e com alíquota adicional máxima de 2% do ICMS sobre os bens supérfluos. No caso, os Estados optaram no ICMS dos Combustíveis. Na ânsia arrecadatória, criaram o adicional por Lei Ordinária e, em alguns casos, acima dos 2%.

Por tal razão, chegou a vez do nosso Congresso “constitucionalizar” o que era inconstitucional, o que fez pela EC n° 42/2003, mais especificamente em seu artigo Art. 4º. “Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”

O prazo tratado no art. 79 dos ADCT seria até 2010. Após o advento da EC 42, o STF em decisão monocrática do ministro Ayres Britto na ADI 2.869/RJ reconheceu que havia a perda do objeto da ADI que discutia a inconstitucionalidade das leis ordinárias criadas sobre a égide da EC 31, vez que a matéria teria sido “constitucionalizada” com a edição da EC 42. Embora certo que uma decisão em ADI seja vinculante, por óbvio isto não ocorre quando a ADI não prospera, como decorreu da mencionada decisão citada.

No entanto, em diversas decisões posteriores, o STF manteve a constitucionalidade de leis ordinárias estaduais instituindo o adicional sob pretexto da constitucionalidade estar reconhecida por decisão vinculante na ADI 2.869/RJ, inclusive aquelas que não foram alinhadas às exigências constitucionais da EC 42 no prazo do art. 79 dos ADCT. Em outras palavras, após a questionável prática do Congresso corrigir retroativamente por EC algo inconstitucional, o STF, por reiteradas decisões, constitucionalizou as legislações inconstitucionais dos Estados/DF.

Além da superação da histórica jurisprudência do STF no sentido de que as normas que nascem inconstitucionais não podem ser "constitucionalizadas" por EC (ADIs 2, 2.158, 94 e 2.159), ocorreu a agravante de que a criticável EC 42 estabeleceu o prazo até 2010 (art. 79 ADCT) para as legislações dos Estados/DF se adequarem ao imperativo da Lei Complementar e as decisões do STF seguiram reconhecendo a constitucionalidade das leis ordinárias até 2017.

O polêmico efeito vinculante da ADI 2.869/RJ somente foi questionado no início do julgamento do RE 592.152, quando em primeiro voto o ministro Ricardo Lewandowski seguiu a "jurisprudência pacífica da corte" para reconhecer a constitucionalidade do adicional de alíquota instituído pelo Estado de Sergipe ao Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop), decisão a qual insurgiram os ministros Luiz Fux, Marco Aurélio e Luiz Roberto Barroso, quanto ao precedente da ADI 2.869 não ter efeito vinculante para outras decisões e que os fundos de combate à pobreza, criados com leis ordinárias, não poderiam ser simplesmente convalidados pela referida EC 42/03.

O “case” (RE 592.152) continua em julgamento e deve tornar-se um tema de repercussão geral e, ao que tudo indica, embora tardiamente, o STF deverá reconhecer a inconstitucionalidade de todas leis estaduais que criaram os fundos sem a Lei Complementar, quer antes ou posterior a EC 42. No entanto, fica latente o receio de um novo efeito modulador atentatório ao Sistema Constitucional Tributário se repetir.

Conclusão: As decisões do STF, em especial no tocante a Temas de Repercussão Geral Tributária, têm sido vacilantes quanto a correta observância de nosso Sistema Constitucional Tributário, ao ponto das decisões extremadas, nas quais se decide (em efeito modulador) que uma norma inconstitucional possa continuar a produzir efeitos futuros.

O nosso Sistema Constitucional Tributário é um dos componentes estruturantes da essência do Estado Democrático de Direito e nasceu justamente para evitar que o contribuinte fosse alvo de um Poder Legiferante Tributário desenfreado, cabendo ao STF dar plena eficácia às normas constitucionais que limitam e regulam o Poder Tributário, o que se consuma pela imediata repulsa de qualquer criação ou majoração de tributo em desacordo com os rígidos delineamentos do nosso arquétipo constitucional tributário.

Nesse aspecto, o tributo inconstitucional não pode ser contemporizado por ninguém além do Poder Constituinte soberano para elaborar nova Constituição e ilimitado juridicamente por não submeter-se aos Princípios Constitucionais propostos pela Constituição anterior.

Luiz Fernando Maia é advogado com atuação na área tributária

Sobre o autor
Luiz Fernando Maia

Advogado, mestre em Direito Constitucional, e sócio-fundador do escritório LF Maia Sociedade de Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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