1. Contexto histórico do princípio da igualdade
A igualdade é um direito de segunda geração, procedendo os direitos civis e políticos que são de primeira geração, ou seja, foram os pioneiros a serem compreendidos como essenciais quando analisados sob uma perspectiva cronológica. Logo, a ideia de igualdade surge para fomentar e assegurar que os direitos que a precedem tenham maior efetividade, além de possibilitar abarcar uma gama maior de indivíduos que possam se beneficiar desse conceito de “unidade”. Sendo assim, tal princípio está diretamente ligado a uma necessidade de equiparação dos indivíduos e se configura como uma ideia bastante complexa, visto que apresenta diversas facetas e é dosado conforme o campo de aplicação ou a situação específica, podendo se desmembrar em conceitos como: igualdade formal, igualdade material, isonomia e equidade. Sob essa ótica, é importante trabalhar esses tópicos para que possamos introduzir ao leitor a análise jurisprudencial proposta neste trabalho, que está, intrinsecamente, relacionada com o direito à aposentadoria e suas demais implicações previdenciárias.
2. Isonomia / igualdade formal
À grosso modo e sem muitas divagações teóricas, podemos equiparar o significado de isonomia e de igualdade formal, visto que se referem quase que estritamente à igualdade garantida por lei. Etimologicamente, a palavra grega “Isonomia” representa igualdade perante à lei, ou seja, uma compreensão abstrata de que todos possuem os mesmos direitos e deveres, caracterizando-se como um entendimento engessado e restrito, que não compreende a materialidade dos fatos. Na doutrina, de modo geral, o conceito de “igualdade formal” é proposto da mesma maneira, já que figura como uma abstração universal de que todos os indivíduos, juridicamente, devem ser tratados de modo igualitário, sem maiores distinções. Portanto, tais conceitos se equiparam adquirindo o mesmo sentido quando se referem a um ideal de igualdade plena, que, muitas vezes, fica apenas no campo abstrato e não tem vasta aplicabilidade prática.
3. Equidade / igualdade material
Outros dois conceitos que podem ser equiparados são os de equidade e de igualdade material, já que possuem um alinhamento ao fundamentar que a isonomia por si só, abstrata, não garante real efetividade e que não satisfaz um ideal de justiça. Nesse viés, se considera que pouquíssimas pessoas, numa sociedade extremamente plural e desigual, estão em “pé de igualdade”, ou seja, na prática, cada indivíduo perante a comunidade possui vivências e contextos únicos de vida. Sendo assim, visando prover maior justiça e verdadeiras condições de igualdade, a equidade e a igualdade material tratam os desiguais com desigualdade, considerando suas peculiaridades e trabalhando-as para que, de modo mais justo, o judiciário possa atuar e cumprir uma função social eficaz. Por isso, é evidente que tais conceitos destoam da isonomia e da igualdade formal no quesito aplicabilidade prática, pois, enquanto os primeiros figuram como abstratos, os subsequentes figuram como concretos.
4. Acepção formal e material do princípio da igualdade
Analisando os aspectos supracitados, observa-se outra questão fundamental: a dicotomia existente entre o princípio da igualdade em suas acepções formal e material. Nesse sentido, a igualdade no sentido formal, relaciona-se à igualdade prevista nas leis positivadas pelo Estado. A título de exemplo, o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, consolida uma série de direitos e garantias fundamentais, como a liberdade de consciência e de crença, igualdade de gênero e a proteção contra a tortura ou tratamento desumano. Além disso, tal artigo consagra o princípio da igualdade em seu caput, salientando que “ todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Com base nestas questões, a igualdade jurídica, também conhecida como igualdade perante a lei, fundamenta-se no tratamento equânime assegurado pela legislação brasileira aos indivíduos, independentemente de cor, raça, etnia ou classe social. Em contrapartida, tal acepção consolida o desprestígio às especificidades de cada grupo social e, em especial, as minorias, negligenciando a estes indivíduos as mesmas oportunidades das classes socialmente favorecidas. Tal problemática se acentuou com o advento das concepções liberalistas, baseadas na idealização de intervenção mínima por parte do poder estatal na vida dos cidadãos, fomentando uma neutralidade do Estado que propiciou uma série de injustiças e desrespeitos aos direitos fundamentais.
Outro marco histórico fundamental foi a consolidação do Estado Social que, consequentemente, engendrou mudanças significativas no sentido de igualdade. Considerando tais aspectos, tal forma de organização política regulamentou o Estado como agente garantidor da promoção social, através da proteção populacional e regulamentação de medidas que viabilizem políticas públicas que promovam melhorias na vida dos indivíduos. Nesse contexto, o Estado passa a garantir direitos de índole positiva, não limitando-se, exclusivamente, ao plano jurídico formal positivado pelo poder político vigente. Além disso, analisando conjuntamente as normas previstas na Carta Magna Brasileira, constata-se que o seu conteúdo apresenta nítida admissão ao princípio da igualdade em seu significado substancial, ou seja, suas normas buscam transcender o plano meramente formalista.
O eminente jurista e professor Marcelo Novelino afirma na obra “Direito Constitucional” que “a igualdade não deve ser confundida com homogeneidade”. Analogamente, a argumentação desenvolvida pelo filósofo Aristóteles consiste na afirmação de "tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na exata medida das suas desigualdades". Em vista dos argumentos apresentados, a igualdade em sua acepção substancial, também denominada como igualdade material, fundamenta-se no objetivo de promover mecanismos práticos que assegurem a minimização das diferenças entre os membros da sociedade. A título de exemplo, existe uma série de normas constitucionais que visam promover a eliminação das desigualdades sociais, como o art.3º, inc. III, da Constituição, que assegura o objetivo fundamental de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, bem como, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação” (inc. IV).
5. Jurisprudência STF - RE 639138
Ementa
DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR. CÁLCULO DO VALOR DO BENEFÍCIO DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA DEVIDA POR ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA FECHADA. CONTRATO QUE PREVÊ A APLICAÇÃO DE PERCENTUAIS DISTINTOS PARA HOMENS E MULHERES. QUEBRA DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A isonomia formal, assegurada pelo art. 5º, I, CRFB, exige tratamento equitativo entre homens e mulheres. Não impede, todavia, que sejam enunciados requisitos de idade e tempo de contribuição mais benéficos às mulheres, diante da necessidade de medidas de incentivo e de compensação não aplicáveis aos homens. 2. Incidência da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com prevalência das regras de igualdade material aos contratos de previdência complementar travados com entidade fechada. 3. Revela-se inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia (art. 5º, I, da Constituição da República), cláusula de contrato de previdência complementar que, ao prever regras distintas entre homens e mulheres para cálculo e concessão de complementação de aposentadoria, estabelece valor inferior do benefício para as mulheres, tendo em conta o seu menor tempo de contribuição. 5. Recurso extraordinário conhecido e desprovido.
Tema
452 - Cláusula de plano de previdência complementar que estabelece valor inferior de complementação de benefício para mulheres em virtude de seu tempo de contribuição.
Tese
É inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia (art. 5º, I, da Constituição da República), cláusula de contrato de previdência complementar que, ao prever regras distintas entre homens e mulheres para cálculo e concessão de complementação de aposentadoria, estabelece valor inferior do benefício para as mulheres, tendo em conta o seu menor tempo de contribuição.
6. Argumentação jurídica e fundamentação teórica
Com base na argumentação desenvolvida pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, destaca-se o objetivo de fundamentar a inconstitucionalidade da cláusula existente no contrato de previdência complementar, por violação do princípio constitucional da isonomia. Nesse sentido, o eminente Ministro, Edson Fachin, salienta que “as regras distintas para aposentação das mulheres foram inseridas pelo constituinte com evidente propósito de proclamar igualdade material – não se limitando à igualdade meramente formal”. Além disso, o magistrado discorreu acerca da "Teoria do Impacto Desproporcional", utilizada por cortes estrangeiras a fim de “coibir discriminações indiretas no campo da igualdade de gênero”. O Ministro Joaquim Barbosa, dissertando acerca do "impacto desproporcional", afirma que "toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação ao princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de sua incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de indivíduos”. Tal teoria supracitada, correlaciona-se diretamente com o princípio da igualdade material e visa combater a problemática da discriminação indireta que, consequentemente, gera efeitos nocivos sobre determinado individuo ou grupo social minoritário.
Analogamente, a Ministra Rosa Weber enfatiza que “o princípio da igualdade previsto constitucionalmente é interpretado como igualdade substancial, material, que permite a adoção de solução que almeja compensar diferenças históricas e sociais presentes na sociedade brasileira, a exemplo da de gênero”. Na perspectiva da magistrada, "a previdência é direito fundamental social concretizado seja pela atuação estatal, seja pela atuação privada, complementar àquela, que se submete ao influxo estatal em razão da natureza da sua atividade. Nesse contexto, “trata-se de espaço público ocupado por empresa privada, sob a regulação do Estado”, de modo que as instituições de previdência privada devem respeitar, plenamente, a normatividade dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988. Além disso, observa-se que as negligências a tais direitos “não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado``. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados”.
7. Análise da decisão
Tal documento jurisprudencial compreende, de modo direto e concreto, todos os conceitos trazidos introdutoriamente, detalhando de modo claro a real aplicação dos princípios de isonomia e equidade. Sob essa perspectiva, ao defender que, num primeiro momento, é válido fazer uma distinção entre homens e mulheres no regime previdenciário, visto que ambos possuem diferenças sociais gritantes no que tange às relações de emprego, principalmente, influenciadas pelas questões biológicas. Ademais, outro forte motivador para um tratamento diferenciado entre homens e mulheres no regime obrigatório, é proposto à caráter de incentivar o ingresso da mulher no mercado de trabalho por meio de condições previdenciárias mais favoráveis, tendo como base o entendimento que as mesmas possuem um acesso ainda mais difícil ao mercado de trabalho e estão mais expostas a certos tipos de exploração do que os homens. Por isso, tal proteção possui amparo no conceito de equidade, que desconstrói a compreensão de uma igualdade absoluta e dispõe de maior eficácia real, sendo assim, garantindo que seja atingido um ideal de justiça social.
Num outro plano, tratando-se do regime complementar, um sistema de previdência facultativo, ou seja, que diferentemente do regime em que todo trabalhador é obrigado a se filiar, caracteriza-se como voluntário. O regime complementar está presente tanto no âmbito dos servidores públicos (via de regra, constituem planos de previdência complementar fechada), quanto para quem, por livre e espontânea vontade, desejar realizar uma capitalização previdenciária, visando garantir uma reserva no futuro (planos de previdência complementar aberta, constituída por sociedades anônimas e que abarcam pessoas físicas e jurídicas interessadas). Portanto, nessa recente decisão do STF, o entendimento é de que não há necessidade de, mais uma vez, tratar homens e mulheres de forma desigual, visto que, obrigatoriamente, eles já estão sendo diferenciados no regime geral (INSS) e próprio (servidores efetivos dos entes federativos), nos quais todos que exercem atividade remunerada devem estar inscritos inicialmente, antes mesmo de ingressar no regime complementar. Sendo assim, resguardando o princípio da isonomia, que, nesse viés, irá imperar sobre o princípio da equidade, que, de modo devido, já utilizado na primeira situação retratada, logo, não subsistindo necessidade de reparação alguma nessa outra etapa.
8. Conclusão
Diante do exposto, o entendimento da corte demonstra coerência e preservação do equilíbrio entre os princípios de isonomia e equidade, visto que ambos são dosados em cada uma das situações analisadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Portanto, tal decisão, além de versar sobre uma temática de interesse geral, ou seja, de suma importância prática para a vida de todos os cidadãos, representa um embate extremamente interessante de conceitos básicos do Direito, os quais fundamentam o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, constando expressamente no mesmo. E, não obstante, se aplicam em outros campos diversos dessa ciência humana e social, que busca regular e garantir, da forma mais justa, possível uma igualdade material entre os indivíduos, a qual tem fundamentação na compreensão mais arcaica de igualdade formal.
9. Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Turma). Recurso Extraordinário 639.138/RS. Direito constitucional e previdenciário. Previdência complementar. Cálculo do valor do benefício de complementação de aposentadoria devida por entidade de previdência fechada. Contrato que prevê a aplicação de percentuais distintos para homens e mulheres. Quebra do princípio da isonomia. Relator: Min. Gilmar Mendes, 18/08/2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur433756/false. Acesso em 1 nov. 2022.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 1 nov. 2022.
SILVA, Carolina Dias Martins da Rosa e. Igualdade formal x igualdade material: a busca pela efetivação da isonomia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jan 2017, 04:30. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48550/igualdade-formal-x-igualdade-material-a-busca-pela-efetivacao-da-isonomia. Acesso em: 1 nov. 2022.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª. ed.rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010.
ISONOMIA no Direito: o que é, como funciona e qual sua importância? Modelo Inicial, 2020. Disponível em : https://modeloinicial.com.br/artigos/240/isonomia-direito-que-e-como-funciona-qual-sua-importancia. Acesso em: 2 nov. 2022.