Análise da ação revocatória prevista no art. 35 da Lei 6.024/74

16/02/2023 às 16:19
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Carlos Roberto Claro1

Sumário: 1. - Introdução. 2. - A liquidação extrajudicial de instituições financeiras. 3. - A ação revocatória na liquidação. 4. - Efeitos da sentença que julga procedente o pedido.

  1. Introdução

A Lei 6.024, de 13 de março de 1974, trata da intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras, sendo que o presente estudo ficará delimitado à análise do art. 35. Em síntese, tal regra legal estabelece que os atos indicados nos artigos 52 e 53 do Decreto-Lei 7.661/45, praticados pelos administradores da liquidanda, poderão ser declarados nulos ou revogados, observados os ditames dos artigos 54 e 58 do mesmo diploma legal.

O vetusto Dec.-Lei 7,661/45 não mais se encontra no sistema jurídico pátrio, sendo que a Lei 11.101/05 trata da reestruturação empresarial e do regime falimentar, de modo que a Lei 6.024/74 não foi alterada. Destarte, o presente ensaio tratará da questão à luz do art. 129 e seguintes do texto legal de 20052.

Consoante regra do art. 34 da lei de 1974, o diploma legal de 1945 é aplicável, no que couber, de forma subsidiária. Em sede de liquidação extrajudicial de instituição financeira, o instituto da ação revocatória tem aplicação, na medida em que, por meio de tal demanda judicial, poderá o liquidante, como representante da entidade liquidanda, buscar o retorno de ativos que dela foram retirados indevidamente (em tese).

Considerando que os traços firmes da Lei 11.101/05, no tocante ao instituto da revocatória, dizem somente com a ineficácia relativa de ato (art. 129) e a própria revocatória (art. 130), interessa o exame apurado do art. 35 da Lei 6.024/74, porquanto dele consta que o ato poderá ser declarado nulo ou revogado.

Em consequência, de forma bastante sucinta, cabe a análise de algumas categorias de atos ineficazes e, ao final perceberá o exegeta que a lei buscou se utilizar de determinado instituto nitidamente falimentar, mas as bases deste se não coadunam com o disposto na Lei 6.024/74.

Desde logo é de salientar, a bem da verdade, que o espírito da lei é a aplicação efetiva da ação revocatória, sendo que a impropriedade técnica do vocábulo ‘nulo’ há de ser desconsiderada, tratando o ato como ineficaz ou revogável, simplesmente.

Por fim, é inevitável escrever a respeito dos efeitos que a eventual procedência do pedido acarretará perante a entidade liquidanda.

  1. A liquidação extrajudicial de instituições financeiras

A atividade bancária no Brasil foi regulamentada pela Lei 4.595/64, com a criação do Banco Central do Brasil3, extinguindo a Superintendência da Moeda e do Crédito. Somente as instituições financeiras poderão operar com o atividade bancária, sendo certo que, dado o caráter especial, necessitam de autorização para operar4 e no caso específico das entidades estrangeiras, carecem de autorização do BACEN ou decerto do Poder Executivo.

Considerando o regime especial ao qual se subordinam, as instituições financeiras se não pode valer das regras contidas na Lei 11.101/05 (art. 2º).

Poderão ocorrer as seguintes medidas, em caso de crise: intervenção extrajudicial, em conformidade com o art. 2º a 14; liquidação extrajudicial (arts. 15 a 35); regime de administração temporária (Decreto-Lei 2.321/1987), bem como medidas embasadas na Lei 9.447/97 [especialmente art. 5º]. Em todos os casos, a atribuição para instaurar e conduzir os procedimentos é do Banco Central.

Interessa aqui, para fins de delimitação do âmbito da abordagem, apenas o estudo da liquidação extrajudicial, especialmente no que diz com alguns aspectos importantes, como o termo legal, porquanto imprescindível (em tese) para ajuizamento da ação declaratória de ineficácia relativa de ato (art. 129 da Lei 11.101/05), sendo que a ação revocatória propriamente dita - art. 130 da lei de 2005 -, por tratar de fraude, dolo, prova etc., não está condicionada ao termo legal ou a outro lapso temporal [observe-se a regra do art. 131 da lei].

Poderá a liquidação ser decretada de ofício pelo BACEN, ocorrendo alguma das hipóteses elencadas no art. 15, inc. I, da Lei 6.024/74, ou com arrimo em requerimento formulado pelos administradores da instituição a ser liquidada (caso o estatuto assim disponha e permita), ou ainda mediante proposta do interventor, apresentados os motivos da medida. A liquidação é um processo eminentemente administrativo, que visa a extinção da entidade liquidanda.

Sobreleva o fato de que, no ato do BACEN, ao decretar a liquidação, deverá constar expressamente o termo legal, que não poderá ser superior a 60 (sessenta) dias a partir retroativamente do primeiro protesto por falta de pagamento ou, na falta, do ato que haja decretado a intervenção.

Observe-se, como dito, que a lei em comento não foi alterada, porquanto na de 2005 o termo legal passou a 90 (noventa) dias (Lei 11.101/05, art. 99, inc. II). A bem de ver, no tocante ao termo legal e sua fixação, o Dec.-Lei de 1945 previa a possibilidade de retificação, mas a lei de 2005 é silente.

A liquidação é executada pelo liquidante nomeado pelo BACEN, como amplos poderes de administração, mas, exige-se prévia e expressa autorização do BACEN acerca de atos relativos a disposição ou oneração do patrimônio da entidade, admissão e demissão de pessoal.

É obrigatório o uso da expressão “em liquidação extrajudicial” após a denominação da entidade. A correta fixação do termo legal e a nomeação de liquidante são atos deveras importantes para que o procedimento ocorra nos trilhos da legalidade.

Quanto aos efeitos da liquidação, são estes: a) suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras, enquanto durar a liquidação; b) vencimento antecipado das obrigações da liquidanda; c) não atendimento das cláusulas penais dos contratos unilaterais vencidos em virtude da decretação da liquidação extrajudicial; d) não fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a massa, enquanto não integralmente pago o passivo; e) interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição.

  1. A ação revocatória na liquidação

De acordo com a regra estabelecida pelo art. 35 da Lei 6.024/74, os atos indicados nos arts. 52 e 53 do ab-rogado Dec.-Lei 7.661/45 e praticados pelos administradores da entidade liquidanda, poderão ser declarados “nulos”, ou revogados, cumpridas as regras estabelecidas pelos arts. 54 e 58 do mesmo texto legal de 19454.

A ação em comento será ajuizada perante o juízo a quem caberia processar e julgar a falência da entidade liquidanda, sendo que a legitimidade ativa é da massa, representada pelo liquidante.

Consoante se depreende da Lei 11.101/054, especialmente art. 133, a ação poderá ser promovida em face várias pessoas, mas não poderão figurar no polo passivo os ex-administradores da instituição financeira5.

Levando-se em conta que o instituto da revocatória falimentar foi albergada pela lei de 1964, e se não olvidando das responsabilidades que recaem na pessoa do administrador judicial por eventuais prejuízos causados à massa falida (art. 32), a melhor interpretação, a que se coaduna com a questão relativa à liquidação extrajudicial, é de que o liquidante também poderá responder por atos omissivos ou comissivos, inclusive em decorrência da desídia pelo não ajuizamento das ações necessárias à recuperação de ativos alienados indevidamente pelo administrador da instituição financeira.

O prejuízo ao universo de credores, em decorrência do não ajuizamento da ação, resta patente, porquanto na omissão quanto ao agir em juízo o bem, |(em tese) não seria restituído à entidade. Portanto, o liquidante tem a atribuição, o dever legal de ajuizar todas as medidas judiciais necessárias para rever os atos praticados pelos gestores, com retorno dos ativos à massa liquidanda.

De acordo com o exposto, o termo legal da liquidação é marco inicial (mas não o único) para ajuizamento de medidas judiciais tendentes à recuperação de ativos alienados pelos responsáveis pela liquidanda. Não é o único marco, porque a lei de 2005 não estabelece que somente determinados atos praticados dentro do termo legal da falência poderá ser reputados ineficazes. As hipóteses do art. 129, incisos IV e V assim o dizem.

O termo legal da liquidação foi formulado exatamente nas mesmas bases estabelecidas pelo ab-rogado texto legal de 1945. Entende-se que o termo legal é o último segmento do assim denominado período suspeito, período esse anterior à decretação do ato do BACEN. Poder-se-ia afirmar que se trata da “zona de insolvência”. O termo legal da falência se traduz no período mais latente da crise, onde são explicitados os atos mais prejudiciais formalizados pelos administradores, atos que poderão (e deverão, ser for o caso) questionados judicialmente.

É no chamado termo legal que muitos atos são realizados, visando a fraude contra credores, com a transferência irregular de ativos, oneração irregular de patrimônio e assim por diante. Tal período, mais latente, há de ser examinado com redobrada cautela pelo liquidante.

O art. 35 da lei 6.024/74 estabelece que os atos poderão ser declarados “nulos” ou revogados. Tal aspecto chama a atenção, na medida em que a “nulidade” não é tratada na Lei 11.101/05, sendo que esta foi a base, como dito, de tal dispositivo. Evidente o equívoco da lei de 1974.

A ineficácia de negócio jurídico pode se dar em diversas modalidades de atos. Nulo é o negócio jurídico levado a efeito quando existir grave defeito, o qual atinge o seu conteúdo, não produzindo, pois, efeitos (Código Civil, art. 166).

O ato nulo ofende os princípios de ordem pública. A nulidade é de pleno direito e há de se declarada pelo juiz, não comportando qualquer ratificação do ato (Cód. Civil, art. 169).

O ato ineficaz (este sim, tratado pelo art. 129 da Lei 11.101/05) é o que existe e tem plena validade perante as partes contratantes e, para elas, produz os almejados efeitos. Porém, em relação à entidade liquidanda, não produz qualquer efeito. A ineficácia do ato poderá ser originária ou superveniente, em conformidade com o fato impeditivo (simultaneidade, na primeira e posterior, na segunda).

Alguns autores entendem que o vocábulo utilizado no art. 35 não é correto. Entende Trajano de Miranda Valverde que tem plena aplicação a revocatória nos mesmos casos dos arts. 52 e 53 da Lei de Falências, por força do art. 35 da Lei n. 6.024/74, o qual contém impropriedade de denominar nulo o ato que é ineficaz6.

A seu turno, Rubens Requião assevera que há impropriedade técnica no termo e se a pretensão era a adequação da revocatória falimentar ao processo de liquidação, todos os pressupostos e efeitos a esta devem ser inerentes. Caso o legislador pretendesse, efetivamente, a nulidade do ato, dever indicar a ação pauliana de nulidade (no âmbito do direito civil).

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Porém, o autor ressalta que graves consequências poderão advir: se, proposta a ação revocatória, e declarado ineficaz o ato indigitado, posteriormente a instituição liquidação recuperada, ou se fundir ou se incorporar a outra, o ato emerge inteiramente válido, pois sua ineficácia se impõe apenas em relação à liquidação7.

Utilizando-se dos mesmos critérios adotados em relação à revocatória falimentar, o hermeneuta verificará que há hipóteses determinantes para a suspensão ou até mesmo extinção do processo. No caso de haver pagamento ou encerramento do processo falimentar, por exemplo, será extinta, por perda superveniente de interesse processual.

Trazendo os ensinamentos doutrinários para o âmbito da liquidação, verifica-se que recuperada a entidade, presume-se que o passivo foi pago, não existindo motivo plausível para prosseguimento regular da ação; havendo uma operação societário - incorporação ou fusão - os credores deverão ser satisfeitos, e poderão, caso não ocorra a liquidação da dívida ingressar com as medias judiciais cabíveis, por força do art. 232 da Lei 6.404/76. Com isso, verifica-se que, necessariamente, o passivo haverá de ser considerado, antes de qualquer ato dessa natureza (transferência da liquidanda).

Em sendo determinado o prosseguimento da liquidação, hipótese aventada pelo art. 21, letra “a” da Lei 6.024/74, a revocatória falimentar também terá regular curso; requerida a falência (art. 21, letra “b”), inexiste motivo para a suspensão ou extinção da ação revocatória e, por fim, em havendo interessados (art. 21, parágrafo único) na cessação da liquidação extrajudicial, deverá haver o necessário aporte de recursos financeiros e oferecimento de garantias, a fim de que cessem os efeitos da liquidação extrajudicial.

Necessariamente, o passivo será revisto e até mesmo pago, ou garantias para tanto haverão de existir. Neste caso, não há o porquê do prosseguimento regular da ação revocatória.

Portanto, em ocorrendo alguma das situações supra, a revocatória não mais poderá ter seu regular curso e o ato continuará plenamente válido perante os contratantes.

Quanto as ações colocadas à disposição do liquidante, importante esclarecer que a ação prevista no art. 129 da Lei 11. 101/05 é ação declaratória de ineficácia relativa de ato, sendo que, em ocorrendo alguma das hipótese ali elencadas (numerus clausus), o ato será considerando ineficaz em relação à massa (é como se o ato não existisse, mas os contratantes continuam na mesma posição).

Não se perquire a respeito de dolo, fraude, intenção de prejudicar credores, conluio entre devedor e terceiro contratante, e muito menos se este tinha ciência da insolvência da entidade.

No art. 129, por força da lei, há presunção de fraude, bastando o enquadramento do caso concreto a uma das hipóteses legais. Por outro lado, são revogáveis os atos praticados pelo devedor, considerando a existência dos pressupostos supra, de modo que poderá ser ajuizada a ação revocatória, provando-se a fraude, conluio (eventus damni e consilium fraudis) etc., sendo que o ônus probatório é do liquidante, representante da massa.

A diferença entre as duas ações - arts. 129 e 130 - reside justamente nos efeitos do ato manejado. A lição de Pontes de Miranda é neste sentido: a revogação do art. 53 é somente à ‘eficácia’. Os atos a que se refere o art. 53, à diferença daqueles de que trata o art. 52, são eficazes. A retirada da ‘vox’ pelo síndico, ou pelo credor, é para que ‘não’ tenham eficácia contra a massa falida, tais atos. Supõe-se a má-fé de ambos os figurantes, o outorgante, devedor, comum, e o outorgado terceiro8.

  1. Efeitos da sentença que julga procedente o pedido

A sentença proferida em ambas as ações - declaratória de ineficácia relativa de ato e revocatória falimentar - restaura o estado jurídico anterior ao ato impugnado pelo liquidante. As partes retornam para suas devidas posições (Lei 11.101/05, art. 136) e o bem [ou equivalente em dinheiro] deve retornar ao acervo da liquidanda.

Não se busca a indenização pelos prejuízos sofridos pelos credores, sendo que o objetivo da ação é recuperar o patrimônio indevidamente transferido pelos ex-administradores da liquidanda. Por força do art. 136, §2º, da Lei 11.101/05, é garantido ao terceiro de boa-fé, a qualquer tempo, ajuizar ação por perdas e danos em face do devedor e seus garantidores.


  1. Advogado desde 1987; Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná, desde 2013; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

    http://lattes.cnpq.br/5264249545377944

    http://orcid.org/0000-0002-6589-9761

  2. Sobre o tema: CLARO, Carlos R. Falência: ineficácia e revogação de ato no processo falimentar. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2020.

  3. A respeito, Lei Complementar 179/2021.

  4. Lei 4.595/64, art. 10, inc. X, letra “a”.

  5. Trato da questão na obra referenciada, especialmente p. 208, no que diz com a legitimidade passiva.

  6. Comentários à Lei de Falências. Vol. I. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 398.

  7. Curso de direito falimentar. 2º Volume. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 244-245.

    Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:
  8. Tratado de direito privado. Tomo XXVIII. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 960, p. 360.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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