RESUMO
O presente estudo aborda a temática dos limites do ato discricionário como parâmetros para o controle jurisdicional sobre o mérito dos atos administrativos. Inicialmente foi estabelecido o seguinte problema: os elementos discricionários dos atos administrativos possuem limites capazes de permitir um controle de legalidade por parte do Poder Judiciário? Levantou-se como hipótese inicial que a conjugação dos princípios constitucionais da inafastabilidade do Judiciário e da legalidade, associados ao modelo de jurisdição una adotado no Brasil, permitiria um controle de legalidade do Judiciário sobre todos os atos da Administração Pública, inclusive os discricionários. O objetivo geral consiste em verificar a existência de limites para a discricionariedade administrativa capazes de permitir o controle Jurisdicional sobre o mérito administrativo. Como objetivos específicos tem-se: analisar se o modelo brasileiro de Jurisdição permite o controle judicial dos atos administrativos; identificar quais elementos do ato administrativo são dotados de discricionariedade; estabelecer os limites capazes de permitir o controle do mérito administrativo. Para tanto, adotou-se a metodologia de pesquisa bibliográfica, com fontes exclusivamente secundárias. Como conclusão chega a confirmação da hipótese inicialmente levantada. Os limites da discricionariedade são dados com a conjugação dos princípios da realidade e da razoabilidade e com as dimensões do mérito administrativo (oportunidade e conveniência). Dessa conjugação tem-se, como limites da atuação discricionária do Administrador Público, a existência, suficiência, adequabilidade, compatibilidade e proporcionalidade do motivo em relação ao fim positivado, e ainda, a possibilidade, conformidade e a eficiência do objeto para a satisfação da finalidade prevista na lei. Qualquer atuação que extrapole ou não atenda a esses requisitos são ilegais, cabendo a anulação jurisdicional dos mesmos.
Palavras-chave: Ato administrativo. Elementos discricionários. Controle judicial.
INTRODUÇÃO
Trata-se o presente artigo de Trabalho de Conclusão de Curso destinado ao Programa de Pós-Graduação Lato Senso em Gestão Pública do Programa Nacional de Formação em Administração Pública (PNAP), tendo como entidades organizadoras a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Aborda a temática do controle jurisdicional sobre o mérito dos atos administrativos discricionários, tendo por foco a identificação dos limites para controle jurisdicional dos atos discricionários. Para tanto, estabelece como premissa básica a possibilidade do controle por parte do Poder Judiciário sobre o mérito do ato administrativo.
É indispensável que o Gestor Público conheça os limites da legalidade da prática de seus atos, de modo a evitar o cometimento de ilícitos durante tomadas de decisões administrativa, mantendo a normalidade constitucional.
O artigo está estruturado em seis capítulos, dentre os quais o primeiro é o reservado para a presente introdução; no segundo capítulo é traçada toda uma fundamentação para a aceitação da premissa proposta como verdadeira; o terceiro capítulo adentra no estudo do Direito Administrativo e da Administração Pública, onde se analisa o primado do interesse público e o princípio da legalidade; no quarto capítulo é elaborada uma análise sobre os atos administrativos, estabelecendo-se seu conceito, os elementos que o integram e a diferenciação entre os atos vinculados e os atos discricionários; após todo esse estudo anterior que serve de base à compreensão da temática, adentra-se no capítulo cinco, onde trata dos limites de atuação do poder discricionário do Estado; o trabalho é encerrado com as conclusões trazidas no capítulo seis.
PREMISSA BÁSICA DO ESTUDO: A POSSIBILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL SOBRE O MÉRITO DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS
Durante muito tempo perdurou o tabu de que ao Judiciário não era legítimo adentrar na seara discricionária1 do Administrador Público, o que se acredita creditar “a uma teimosa e distorcida concepção de separação de Poderes que ‘impediria’ que um Poder do Estado obstasse o livre exercício da competência ‘exclusiva’ de outro” (MOREIRA NETO, 2002, p. 79).
A ideia inicial da separação de poderes, com enorme contribuição de Montesquieu, se estruturava numa rígida divisão das funções estatais: legislativa, executiva e judiciária, devendo cada uma dessas funções ser confiada a um segmento do Estado, de modo que jamais poderia haver a comunicação entre mais de uma dessas funções nas mãos de um só setor ou titular (ALBUQUERQUE, 1998, p. 119).
Ocorre que essa rigidez da clássica concepção da separação de poderes2 é incompatível e incompreensível na dinâmica sociedade contemporânea, haja vista que uma rigidez excessiva na divisão das atribuições estatais resultaria num engessamento tal que inviabilizaria a própria atuação do Estado moderno. Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos “Hoje, no entanto, a divisão rígida destas funções já está superada, pois, no Estado contemporâneo, cada um destes órgãos é obrigado a realizar atividades que inicialmente não seriam suas” (BASTOS, 1999, p. 159).
Atualmente, a Constituição Federal brasileira organiza a separação de poderes mantendo a função típica de cada Poder mas permitindo uma certa ingerência em funções dos outros Poderes. São os casos, por exemplo: do julgamento pelo Senado Federal dos crimes de responsabilidade do Presidente da República; a escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a cargo do chefe do executivo federal; a realização de atos administrativos internos (licitações, contratações etc.) pelos poderes Legislativo e Judiciário; o julgamento da constitucionalidade de lei ou ato normativo federal por parte do Judiciário (BRASIL).
A vista do exposto, a aceitação ou não de um controle jurisdicional sobre o mérito administrativo não pode ser feito a partir da concepção da separação dos poderes, mas sim a partir do que prevê o ordenamento jurídico pátrio.
Na França, berço das idéias de Montesquieu, um dos precursores da Revolução iniciada em 1789 e que perdurou até 1799, a jurisdição dos atos da Administração não cabe ao Poder Judiciário e sim ao denominado Contencioso Administrativo, um órgão julgador especializado em questões da Administração (MEIRELLES, 2000, p. 47). Nesse sistema não integrado ao Poder Judiciário, se chegou à conclusão mais cedo sobre a necessidade de um controle dos atos discricionários que não se restringisse a limites meramente exteriores, mas que se adentrasse no próprio mérito administrativo (MOREIRA NETO, 2002, p. 80).
A Constituição Federal brasileira adota o sistema da Jurisdição una, pelo qual toda a atividade de caráter jurisdicional se concentra no Poder Judiciário. Todavia, não é por inexistir um sistema de contencioso administrativo que se deixará o administrado à mercê de um mecanismo de defesa contra atos que se manifestem, de quaisquer formas, ilegais. Assim, incumbe ao Judiciário, em razão da adoção do sistema da unidade jurisdicional, a competência de controlar o mérito administrativo.
Registra Celso Ribeiro Bastos:
E, como se sabe, o Sistema Constitucional então implantado inspirou-se em suas grandes linhas na Constituição americana. Esta filiação é muito importante para explicar o papel do Poder Judiciário na nossa história, ao qual sempre couber ser o recurso último para todas as lesões de direito, provenham elas de onde provierem. (BASTOS, 1999, p. 213)
Para Juarez Freitas:
O princípio da unicidade da jurisdição apresenta uma série de desdobramentos, dentre os quais assinala-se, de modo precípuo, o não cerceamento do acesso ao Poder Judiciário em casos de lesão ou ameaça de lesão a direitos do administrado ou da Administração. (FREITAS, 1999, p. 81)
O ordenamento jurídico constitucional brasileiro possibilita o controle jurisdicional do ato administrativo discricionário, não de uma forma ampla e irrestrita, mas no que tange à legalidade das escolhas da Administração Pública. Em razão disso é que o título deste artigo se inicia pela palavra limites [para controle jurisdicional do ato discricionário]. Essa possibilidade se extrai da conjugação de dois princípios3 basilares do Estado Democrático de Direito, trata-se dos princípios da inafastabilidade do Judiciário e o da legalidade (BARCELLOS, 2002, p. 149), previstos, respectivamente nos arts. 5º, inc. XXXV, e 37, caput, ambos da Constituição Federal (BRASIL). José Carlos Barbosa Moreira registra que “No Estado de Direito, todos poderes sujeitam-se à lei. Qualquer intromissão na esfera jurídica das pessoas deve, por isso mesmo, justificar-se, o que caracteriza o Estado de Direito como ‘rechtsfertigender Staat’, como ‘Estado que se justifica’” (MOREIRA, 1978, p. 89).
O dever de respeito à legalidade por parte do Administrador Público se impõe em todos os seus atos, sejam eles vinculados ou discricionários, pois mesmo agindo dentro da discrição outorgada pela legislação o administrador deve atender à finalidade prevista na lei. Ocorre que num sistema de unidade da jurisdição, ao Judiciário é que incumbe esse controle de legalidade. Segundo Ana Paula de Barcellos, “Em um Estado de direito [...] não basta a consagração normativa: é preciso existir uma autoridade que seja capaz de impor coativamente a obediência aos comandos jurídicos” (BARCELLOS, 2002, p. 293).
DIREITO ADMINISTRATIVO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Segundo Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo é o “conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado” (MEIRELLES, 2000, p. 34). O conceito de Meirelles permite ao Direito Administrativo reger toda e qualquer atividade de Administração Pública, independentemente de ser promovida pelo Executivo, Legislativo ou Judiciário, pois, como já fora dito, ambos têm, ainda que os dois últimos em reduzida proporção, atribuições de Administrador (MEIRELLES, 2000, p. 34). A Administração Pública é, portanto, “o objeto do Direito Administrativo” (DI PIETRO, 2004, p. 50), ou seja, o conjunto de órgãos e agentes públicos responsáveis pela execução das funções administrativas determinadas por lei.
Como se viu no conceito supra, de Meirelles, toda a atividade da Administração está voltada a atender os fins desejados pelo Estado, melhor dizendo, não cabe ao Administrador decidir para qual finalidade sua atividade deve ser dirigida, mas tão somente cumprir a finalidade que já está previamente estabelecida pelo ordenamento positivo. Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “a administração é a emanação de atos de produção jurídica complementares, em aplicação concreta do ato de produção jurídica primário e abstrato contido na lei” (DI PIETRO, 2004, p. 55).
Os fins do Estado são o que se convencionou denominar de “interesse público”, materializado nos comandos legislativos.
Pode-se falar em fim ou finalidade em dois sentidos diferentes: em sentido amplo, a finalidade sempre corresponde à consecução de um resultado de interesse público, nesse sentido se diz que o ato administrativo tem que tem sempre finalidade pública; em sentido restrito, finalidade é o resultado específico que cada ato deve produzir, conforme definido na lei; nesse sentido, se diz que a finalidade do ato administratio é sempre a que decorre explícita ou implicitamente da lei (DI PIETRO, 2004, p. 203).
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, se caracteriza um interesse público quando um interesse metaindividual é cometido pelo ordenamento jurídico ao Estado (MOREIRA NETO, 2002, p. 11). O interesse público não é o mero somatório dos interesses individuais dos que compõem uma sociedade4, “é qualitativamente diferente do interesse individual” (MOREIRA NETO, 2002, p. 11). O homem em convívio social passou a perceber que em determinados interesses individuais comuns na sociedade, o esforço de todo o grupo seria mais eficaz para a satisfação dos mesmos; a esses interesses coletivos, cuja satisfação não é plenamente alcançada quando buscada de forma individual ou por grupos fragmentados, chama-se de interesse público, cabendo ao Estado provê-los.
A função do Estado, portanto, é identificar e atuar na satisfação dos interesses públicos, ou seja, a legitimidade da atuação estatal está diretamente vinculada aos reais interesses públicos. Um Estado que atua além do necessário à satisfação das reais necessidades públicas age além do poder que lhe foi conferido pelo povo, atua, portanto, de forma ilegítima.
E aqui, em se tratano do Estado, chegamos a uma primeira conclusão parcial: como a cura e a procura do interesse público são sua razão de ser e justificação, sua capacidade estará sempre vinculada a esse fim, ainda que, num sentido amplo ou figurado, haja alusão a ‘liberdade’ no exercício de suas funções.” (MOREIRA NETO, 2002, p. 13)
Descobrir quais são os interesses públicos é função da Política. É a Política que deve adentrar nas entranhas da sociedade e lá descobrir quais interesses merecerem a elevação à categoria de interesse público, o que se dá por meio dos representantes do povo (os parlamentares), que, em contato direto com os representados, definem a legitimidade da atuação estatal. Ao Direito incumbi cristalizar, ou seja, positivar os interesses públicos, o que faz por meio da legislação, moldando e vinculando o comportamento do Administrador Público. A atuação do Administrador Público, portanto, não deve definir mas tão somente concretizar os fins públicos, devendo atuar com fundamento na legalidade.
Há que se fazer uma ressalva, contudo. “A legitimidade é muito mais ampla do que a legalidade, simplesmente porque é impossível, em qualquer sociedade, que a lei defina exaustivamente todas as hipóteses do interesse público” (MOREIRA NETO, 2002, p. 13). Assim, remanescerão pequenas quantidades de aspectos do interesse público que, embora legítimas, carecem de positivação; essas miríades deverão ser integradas pelo Administrador quando surgirem a oportunidade e a conveniência. Devemos ressaltar que, mesmo atuando nessa integração diante da lacuna da norma, a Administração Pública estará sempre vinculada à finalidade da lei, e o seu não atendimento importará, ainda que indiretamente, em vício de ilegalidade, passível de controle.
No que tange as hipóteses de liberdade do Administrador, convém transcrever trecho de Celso Antônio Bandeira de Mello:
A boa intelecção da regra de Direito impõe reconhecer que o campo de liberdade administrativa decorrene das normas que prefiguram discrição é muito mais angusto do que habitualmente se admite, seja porque a situação concreta é que lhe dará sua verdadeira dimensão, reduzindo-o muito (quando não o extingue), seja porque a Administração Pública está sujeita ao ‘dever de boa administração’. Este, como quer Guido Falzone, é mais que um dever moral ou de ciência da administração; é um dever jurídico, porque quando não há a boa administração, não há satisfação da finalidade legal e quando não há satisfação da finalidade legal não há satisfação da regra de Direito, mas violação dela, pois uma regra de Direito depende ineiramente da finalidade, por ser ela que lhe ilumina a compreensão.” (MELLO, 1998, p. 44.45)5.
Quiçá de tudo que até aqui foi demonstrado, já contamos com elementos suficientes para o entendimento da definição de legalidade. Mais do que mera determinação normativa constitucional, a legalidade eleva-se à categoria de princípio, tendo em vista seu elevado caráter valorativo. Freitas afirma que a legalidade “faz as vezes de valiosíssimo princípio” (FREITAS, 1999, p. 60).
Na Constituição Federal brasileira, a legalidade na Administração Pública está prevista no art. 37, caput, não obstante sua previsão em outros dispositivos da Carta Política (BRASIL).
Enquanto o princípio da liberdade apresenta-se sob a feição de autonomia de Vontade para os particulares, para a Administração Pública revela-se como uma vinculação de agir. Para o particular, legalidade significa poder fazer tudo o que a lei não proibir; para Administração Pública, de só fazer o que a lei permitir (MELLO, 2002, p. 809).
Em razão do princípio da legalidade é que se afirma que o poder da Administração é um “poder-dever”. É que o poder conferido ao Estado não caminha sem o dever de cumprir a finalidade da lei.
Efetivamente, se se trata da esfera de atividade juridicamente livre, é necessário estabelecer-se a distinção basilar entre aquela que resulta de um exercício da liberdade contratual do homem, seu atributo como pessoa, e aquela que decorre de uma atribuição que promana da ordem jurídica.
A primeira espécie não necessita mais que um reconhecimento pelo Direito, enquanto a segunda é uma criação técnica sua. A primeira não requer outra justificação que a autonomia da vontade da pessoa humana, o gozo de seu atributo natural, a naturalis facultas, a que mencionava Florentinus; a segunda, resultando de um poder outorgado, não prescinde de justificação, pois, sendo o Direito uma expressão da vontade social, todos os poderes jurídicos devem atender a fins socialmente relevantes; toda atribuição social de poder pressupõe, portanto, uma prévia destinação social o poder.
Essa destinação, por ser jurídica, define validade jurídica do agir: o exercício da liberdade natural será válida desde que não exceda pos limites da lei, enquanto que o exercício do poder outorgado tem sua validade duplamente vinculada: à lei, que o cria, e à finalidade, que o justifica.
O Estado, como qualquer instituição, só age em função de poderes que lhe são atribuídos. (MOREIRA NETO, 2002, p. 21-22)
A regra básica é a autonomia da vontade, mas não a vontade de quem detém o poder, mas do dono do poder. O dominus do poder é o povo, e o poder está previsto na lei; o administrador público é o mandatário dos poderes do povo, e deve agir como tal, ou seja, de acordo com o que manda a lei.
No Estado de Direito, a Administração Pública deve se desenvolver de acordo com a vontade do povo, formalmete declarada através da lei. O administrador é um servo da lei, a ela deve total obediência. Não pode atuar de acordo com a sua vontade, mas sim de acordo com a vontade imputada à coletividade e formalizada no texto a lei (YUNES JUNIOR, 1999, p. 121).
Quando o administrador público age em descompasso com a finalidade legal, ele estará agindo com “abuso de poder”, ou seja, utilizará os poderes administrativos de forma ilegítima e anormal. Nessa hipótese o ato será nulo por vício de legalidade, impondo sua anulação, pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário.
ATOS ADMINISTRATIVOS
Ato administrativo é o instrumento formal de que o Administrador Público se utiliza para concretizar a vontade da lei. Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim conceitua ao ato administrativo: “pode-se definir o ato administrativo como a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário” (DI PIETRO, 2004, p.189).
Nos termos do art. 2º da Lei 4.717, de 29/06/1965, os atos administrativos são formados a partir de cinco elementos: competência, forma, objeto, motivo e finalidade.
A competência é “o conjunto de atribuições das pessoas jurídicas, órgãos e agentes, fixadas pelo direito positivo” (DI PIETRO, 2004, p. 196). A distribuição de competência é feita da seguinte forma: da Constituição Federal para os entes políticos, e da Lei para os órgãos e agentes públicos. A competência é um elemento sempre vinculado.
O objeto “é o efeito jurídico imediato que o ato produz” (DI PIETRO, 2004, p. 199), ou seja, o resultado do ato, identificando-se com o nascimento, a extinção ou a transformação de determinado direito. O objeto é um elemento que poderá ser vinculado ou discricionário.
A forma é a exterioração do ato administrativo, o modo como se apresenta (verbais, escritas, em silêncio, por meio de placas, gestos etc.). Trata-se de elemento sempre vinculado.
A motivação é a enunciação dos fundamentos de fato e de direito, sendo imprescindível para o controle da legalidade do ato, demonstrando a transparência da atuação do administrador público. Trata-se de elemento sempre vinculado.
A finalidade é o efeito mediato que o ato pretende produzir. Difere-se do objeto, porquanto este é o efeito imediato do ato. Em sentido amplo, a finalidade a que todo ato administrativo visa é a finalidade pública; em sentido restrito, é a finalidade explícita ou implícita da lei que o prevê. Trata-se de elemento sempre vinculado.
O motivo é o conjunto de pressupostos de fato e de Direito que autorizam e fundamentam a realização do ato administrativo. Trata-se de elemento que poderá aparecer de forma vinculada ou discricionária.
Visto os elementos do ato administrativo, necessário verificar a distinção entre ato vinculado e ato discricionário. No ato vinculado a legislação atinge todos os aspectos de uma atividade administrativa; diz-se que o poder da Administração é vinculado. Aqui não cabe ao Administrador Público qualquer margem de escolha sobre nenhum dos elementos do ato. A lei disciplina, o Administrador Público aplica o comando normativo. Qualquer comportamento que se desvie da lei, por menor que seja, acarreta na nulidade do ato, por vício de ilegalidade. No ato discricionário a legislação não atinge a todos os aspectos da atividade administrativa; diz-se que o poder da Administração Pública é discricionário. Neste, diante do caso concreto o Administrador Público dispõe de discrição, de uma margem de escolha para sua atuação, embora todos os parâmetros (limites) da escolha do administrador estarão previamente estabelecidos na lei. A “liberdade”6 de atuação do administrador não é plena, pois apenas dois elementos dos atos administrativos são passíveis de discrição: o motivo e o objeto, todos os demais serão sempre vinculados. A apreciação da discricionariedade se fará segundo critérios de oportunidade e conveniência. Se a administração ultrapassar os limites de discrição previstos na lei estará atuando de forma arbitrária. Discricionariedade e arbitrariedade são conceitos que não confundem, conforme aborda Hely Lopes Meirelles:
Já temos acentuado, e insistimos mais uma vez, que ato discricionário não se confunde com ato arbitrário. Discrição e arbítrio são conceitos inteiramente diversos. Discrição é liberdade de ação dentro dos limites legais; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, portanto, quando permitido pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é, sempre e sempre, ilegítimo e inválido (MEIRELLES, 2000, p. 158).
Prever em abstrato todas as situações futuras, e suas peculiaridades, é algo materialmente impossível de conceber; em razão disso é que devem existir normas que, para determinadas situações imprevisíveis, dêem ao administrador um leque de opções para que este, fazendo um juízo de conveniência e oportunidade, e atento a finalidade da norma, escolha qual a melhor medida a ser tomada diante do caso in concreto.
Além disso, o executivo, em razão de sua própria função, está mais apto a, diante da multiplicidade dos fatos, escolher a melhor maneira de satisfazer a finalidade da lei nas situações concretas emergentes, sendo essa a razão de existirem atos discricionários.
Se a lei todas as vezes regulasse vinculadamente a conduta do administrador, padronizaria sempre a solução, tornando-a invariável mesmo perante situações que precisariam ser distinguidas e que não se poderia antecipadamente catalogar com segurança, justamente porque a realidade do mundo empírico é polifacética e comporta inumeráveis variantes. Onde, em muitos casos, uma predefinição normativa estanque levaria a que a providência por ela imposta conduzisse ba resultados indesejáveis (MELLO, 2002, p. 811).
O caminho para determinar a natureza da discricionariedade está na indagação sobre qual campo ela recairá: “sobre a legalidade ou sobre a legitimidade?” (MOREIRA NETO, 2002, p. 32).
Diogo de Figueiredo Moreira Neto entende que a função da discricionariedade é “integrar um ato abstrato no que seja necessário, em termos de interesse público, para que possa ser executado”; existiria um resíduo de legitimidade sobre o qual a discricionariedade seria exercida como ato de criação, e não de mera execução, tendo, portanto, “a natureza material de uma opção política” (MOREIRA NETO, 2002, p. 33). Vênia ao ilustre professor, cuja obra foi de fundamental importância para o presente estudo, para, neste ponto, manifestar discordância no sentido de que a discricionariedade está relacionada aos atos preparatórios para execução. O Administrador Público não atua com opção política, pois não tem liberdade para buscar na sociedade o legítimo interesse público, dado que este já está positivado na norma, constituindo-se, inclusive, limite à sua atuação discricionária. A opção do Administrador Público não passará a integrar a norma de forma abstrata, servirá apenas ao caso concreto, como meio para que execute a finalidade já imposta pela lei. A função da discricionariedade é a de verificar, dentre as alternativas previstas no regramento, qual é a que melhor irá se adequar, numa dada situação, à finalidade pública cristalizada na ordem positiva.
Discricionariedade e mérito administrativo são duas etapas de um só processo. A discricionariedade é a técnica de que se utiliza o administrador para que, após um juízo de valor sobre a oportunidade e a conveniência, se determine o mérito administrativo, isso é, o resultado a respeito de qual ação tomar para satisfação do interesse público previsto na lei.
É exatamente a posição de Moreira Neto, que vê a discricionariedade como um instrumental:
pode-se apresentar a discricionariedade como uma técnica desenvolvida para permitir que a ação administrativa defina com precisão suficiente um conceito de oportunidade e de conveniência que possa vir a constituir-se no mérito adequado e suficiente à satisfação de um interesse público, estabelecido na norma leal [assim estava] como finalidade (MOREIRA NETO, 2002, p. 48).
O mérito, no caso de discricionariedade, se dá em relação aos elementos motivo e objeto, dado que, como já dito, todos os demais elementos – competência, forma e finalidade – se apresentam sempre vinculados. As dimensões do mérito são o que se convencionar chamar de oportunidade e conveniência, que têm a função de integrar os elementos motivo e objeto, respectivamente (MOREIRA NETO, 2002, p. 48). Oportuno será quando estiverem presentes os pressupostos de fato e de direito para a edição do ato administrativo. Conveniente será quando a escolha do conteúdo do objeto atender, em tese, à finalidade prevista.
LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE
Os limites da discricionariedade, além dos quais se terá ilegalidade passível de controle jurisdicional, se referem às dimensões do mérito, ou seja, à oportunidade, que integra o elemento motivo, e à conveniência, que integra o elemento objeto.
Para Moreira Neto o princípio da realidade e o princípio da razoabilidade são a chave para delimitação da competência discricionária do Administrador Público (MOREIRA NETO, 2002, p. 53).
O princípio da realidade parte da concepção de que o Direito serve apenas ao que é real, e seus atos devem pressupor fatos verdadeiros com objetivos reais.
O entendimento do princípio da realidade parte de consideração bem simples: o direito volta-se à disciplina da conivência real entre os homens e todos os seus atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros (MOREIRA NETO, 2002, p. 53).
A inveracidade e a impossibilidade são limites à discricionariedade, dado que o que é irreal não atende a um interesse público e acarreta numa lamentável descrença das instituições jurídicas e políticas.
Já no que tange ao princípio da razoabilidade, o objetivo é verificar se existe “uma relação de pertinência entre a finalidade e os padrões de oportunidade e conveniência” (MEIRELLES, 2000, p. 87), ou seja, se a decisão discricionária da Administração Pública servirá ao interesse público previsto na norma. Essa avaliação de pertinência se dá por meio de uma valoração do que é razoável para o caso concreto. “Essa razoabilidade deve ser aferida segundo os ‘valores do homem médio’”(MEIRELLES, 2000, p. 87).
Se a avaliação da razoabilidade demonstrar que a decisão administrativa é “manifestamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado dos limites da discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade” (DI PIETRO, 2004, p. 81).
A seguir, tece comentários sobre a aplicação prática dos princípios da realidade e da razoabilidade sobre a avaliação de oportunidade (motivo) e conveniência (objeto).
Oportunidade do ato discricionário e os limites dos princípios da realidade e da razoabilidade
Relembrando, oportunidade é a verificação da existência dos pressupostos de fato e de direito para que o ato seja produzido, ou seja, é a verificação de um motivo capaz de dar ensejo à edição de ato para realização de determinada finalidade.
A aplicação do princípio da realidade sobre a oportunidade traz duas limitações ao ato discricionário: que o motivo exista e que seja suficiente (MOREIRA NETO, 2002, p. 61). Não há atendimento a interesse público algum se inexiste motivo razoável (fático ou jurídico) para atuação estatal, até por uma questão de lógica. É o caso, por exemplo, da construção de uma ponte de acesso a lugar nenhum (inexistência de pressuposto de fato), ou sem autorização legislativa (inexistência de pressuposto de direito). O mesmo se dá no caso de motivo insuficiente, que não justifique a atuação administrativa. O Administrador Público não pode suplementar os motivos para que atue, sua atribuição é de tão somente verificar se os pressupostos estão ou não presentes. A atuação administrativa perante motivos inexistentes ou insuficientes é desnecessária, significando mau uso da “máquina administrativa”. Por violar finalidade pública, poderá o Judiciário anular o ato, por vício de ilegalidade.
A aplicação do princípio da razoabilidade sobre a oportunidade traz três limitações ao ato discricionário: a adequabilidade, a compatibilidade e a proporcionalidade do motivo (MOREIRA NETO, 2002, p. 61). O atendimento à finalidade pública requer adequação entre o motivo e natureza jurídica do ato praticado como um todo. Um caso exemplificativo de inadequação seria a adoção de certame licitatório na modalidade concorrência (a mais complexa e demorada) para contratação de empresa para reparação de uma ponte de alto índice de circulação de veículos que está na iminência de desabar; ora, a realização de um procedimento licitatório complexo e demorado é inadequado com a premente necessidade da reparação da ponte, não atingindo as finalidades previstas que são a de manter a incolumidade física dos que trafegam pela ponte e a de não prejudicar aquele trânsito. Enquanto a adequação diz respeito à natureza de todo o ato tomado, a compatibilidade diz respeito à relação específica que deve estar presente entre o motivo e o objeto do ato. Na compatibilidade, a análise deve ser em relação ao conteúdo jurídico do ato praticado. Um exemplo de incompatibilidade e que, portanto, não leva o ato à realização da finalidade pública, é o caso do vendedor ambulante que, apenas por não possuir licença para exercer comércio em via pública, tem seus bens destruídos pela administração. A proporcionalidade entre os motivos e a finalidade é outra limitação ao ato discricionário, dado que o excesso do ato administrativo gera uma ilegalidade por abuso de poder. Diz respeito à proporção razoável, qualitativa e quantitativa, entre os meios empregados pela Administração Pública e o fim que se deseja alcançar. Ocorre desproporcionalidade quando, por exemplo, a lei exige que o particular atenda a “x” condições para receber determinada licença e o Administrador Público exige “x+y+z” ou “x-y-z”. A atividade administrativa desprovida de adequabilidade, compatibilidade ou proporcionalidade entre o meio e a finalidade imposta pela lei é nula, por ser exercida de forma desarazoada e, caso venha a ocorrer, poder-se-á invocar o Judiciário para anulação do ato.
Conveniência do ato discricionário e os limites dos princípios da realidade e da razoabilidade
Relembrando, conveniência é a escolha do melhor conteúdo para que o objeto realize a finalidade do regramento.
A aplicação do princípio da realidade sobre a conveniência traz como limitação ao ato discricionário a possibilidade do objeto (MOREIRA NETO, 2002, p. 71). Para que a finalidade pretendida pelo ato seja satisfeita, é necessária a verificação da possibilidade jurídica e física do objeto. No que tange a seara jurídica, o objeto deve respeitar a todo o ordenamento jurídico (o sistema positivo e todos os princípios explícitos e implícitos nas regras jurídicas). Praticar atos ilícitos não é buscar finalidade pública, mas agir na ilegalidade. A possibilidade física é a condição factual dos resultados materiais serem alcançados. A impossibilidade do objeto, por conseqüência lógica, torna impossível a satisfação da finalidade legal e, sendo assim, possui vício passível de controle jurisdicional.
A aplicação do princípio da razoabilidade sobre a conveniência traz duas limitações ao ato discricionário: a conformidade e a eficiência do objeto (MOREIRA NETO, 2002, p. 71). A conformidade é a necessidade de que o objeto imediato do ato sirva ao fim desejado, não devendo deixar dúvidas acerca disso. Um exemplo de não conformidade entre o objeto e a finalidade é a hipótese de uma autoridade, com a finalidade de preservar uma floresta, proibir o montanhismo ecológico naquela área. Ora, se o ato não vai servir à finalidade não há porque praticá-lo, é desvio de poder. Por derradeiro, a Administração Pública não pode tomar decisões que sejam ineficientes para o atendimento da finalidade pública. Não há razoabilidade em manipular o aparato administrativo para não atender ao interesse público de forma satisfatória, constitui-se vício de finalidade. A desconformidade ou a ineficiência do objeto, por constituir ofensa à finalidade legal, constitui causa de anulação do ato por parte do Judiciário.
CONCLUSÕES
É de competência do Poder Judiciário analisar a legalidade do mérito administrativo, anulando-o quando eivado de ilegalidade, o que se extrai do sistema brasileiro de Jurisdição uma e do princípio constitucional da inafastabilidade do Judiciário associado ao princípio da legalidade. Para tanto, se impõe a possibilidade do Judiciário sindicar o mérito administrativo (se não sindicar não há como verificar se houve ilegalidade), modificando o resultado apenas se houver extrapolação dos limites legais.
Os princípios da inafastabilidade do Judiciário e o da legalidade juntos constitui a pedra angular do Estado Democrático de Direito.
Os limites da discricionariedade são dados com a conjugação dos princípios da realidade e da razoabilidade e com as dimensões do mérito administrativo (oportunidade e conveniência). Dessa conjugação tem-se, como limites da atuação discricionária do Administrador Público, a existência, suficiência, adequabilidade, compatibilidade e proporcionalidade do motivo em relação ao fim positivado, e ainda, a possibilidade, conformidade e a eficiência do objeto para a satisfação da finalidade prevista na lei. Qualquer atuação que extrapole ou não atenda a esses requisitos são ilegais, cabendo a anulação jurisdicional dos mesmos.
REFERÊNCIAS
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1 “Mérito administrativo” e “ato discricionário” são conceitos jurídicos que serão devidamente trabalhados no decorrer do presente estudo, todavia, ainda que de forma bem sintética, se impõe à compreensão desse capítulo o conhecimento de seus significados. Ato discricionário é todo aquele em que é dada ao Administrador Público uma margem de escolha sobre qual decisão deve ser tomada e se deve ser tomada; mérito administrativo é o resultado dessa escolha, ou seja, a decisão tomada pelo administrador público a partir de um juízo de oportunidade e conveniência.
2 Usa-se a expressão “separação dos poderes” apenas por hábito, não significando descaso ou contrariedade com a moderna literatura que sugere como mais adequada a expressão “separação de funções”, haja vista que o Poder estatal é uno e indivisível (“todo Poder emana do povo”, parágrafo único do art. 1º da CF/88).
3 “Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definiri a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico [...]. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos [...]. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.” (MELLO,2002, p. 807-808)
4 Conforme acentua MOREIRA NETO (2002, p. 12), “Os interesse individuais e os dos grupos devem ser satisfeitos, respectivamente, pelos indivíduos e pelo próprios grupos; transferi-los ao Estado se tem revelado, sempre e quando ocorreu, um erro histórico; criando, de um lado, uma entidade paternalista e demasiado poderosa e, de outro, uma sociedade dependente, desestimulada, acomodada e debilitada: sintomas de totalitarismo.”
5 A “boa administração”, mencionada por Bandeira de Mello, deve ser entendida como aquela em que se atuou com vistas à finalidade pública.
6 Usa-se as aspas pois, mesmo diante da discrição, o administrador não terá plena liberdade de atuação, dado que estará vinculado à finalidade da lei, devendo escolher a opção que melhor se adequar ao interesse público positivado, sob pena de violar, ainda que indiretamente, a legalidade. É interessante o registro de BANDEIRA DE MELLO (2002, p. 812): “a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstract na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade.”