O conhecimento pode ser caracterizado por ser uma crença verdadeira e justificada. No entanto, ao nos atentarmos para o estudo da epistemologia social, devemos reconhecer que essas crenças vêm do convívio social e tem como uma de suas bases o testemunho – a confiança no outro nos faz atribuir sentido e razão ao que é dito.
Nesse texto, o uso probatório da psicografia nos tribunais será problematizada a partir da análise do caso concreto da Boate Kiss, entendendo que essa prática é pseudocientífica, ou seja, não possui evidências científicas e passa por um processo perigoso de relativismo conceitual.
No dia 27 de Janeiro de 2013, a boate Kiss, em Santa Maria, sediava um evento, quando um dos integrantes do grupo musical disparou uma espécie de fogo de artifício no interior do local, fazendo com que o teto pegasse fogo e esse, então, se alastrasse por todo o espaço, matando 242 pessoas e deixando muitas outras gravemente feridas. O caso obteve repercussão munidal e os acusados foram à júri popular recentemente, indiciados por homicídio simples com dolo eventual.
A grande surpresa aconteceu quando a advogada responsável pela defesa do vocalista da banda apresentou ao júri um artefato um tanto quanto inusitado: uma carta psicografada na intenção de inocentar o réu. Essa atitude nos coloca de frente com um grande problema no que diz respeito à aceitação de ferramentas que nada tem de evidência.
A psicografia pode ser entendida como um trabalho espiritual ligado à religião espírita, que almeja ser científico, mas não é – uma pseudociência. Nesse sentido, sua utilização nos tribunais não deveria ser considerada válida para convencimento do júri, já que trata de um aspecto da fé e não da razão. Sua confiabilidade, portanto, até mesmo para os standarts de fiabilidade probatória SCOTUS, os quais já apresentam lacunas, é baixa: uma prova não deve ser apenas relevante.
Além disso, para onde vai a valorização de um Estado laico, previsto na Constituição Federal, com a admissibilidade desse tipo de argumento frágil e tendencioso? Serão permitidas, então, que todas as religiões utilizem seus mecanismos de convencimento nos tribunais? O plano espiritual não faz parte da realidade concreta de um crime.
Embora seja sempre surpreendente a admissão desse recurso, não é a primeira vez em que se observa, no Brasil, sua aplicabilidade: há pelo menos 4 casos registrados no país.
No caso Kiss, os réus foram condenados apesar da tentativa da advogada muito ligada à sensibilização do júri. Entretanto, em outros casos brasileiros os réus foram absolvidos e a psicografia exerceu papel essencial na decisão. É importante ressaltar, aqui, que não se trata de aderir a um sistema mais punitivista do que o brasileiro já é – “in dubio pro reu” deve ser respeitado, mas com seriedade e objetividade.
A grande problematização pretendida nesse trabalho reside no fato de que as crenças populares, tais como a psicografia, para o espiritismo, a astrologia, a homeopatia e entre outras não lesionam por si só o Direito, mas sim o comprometimento do Estado em relação à essas práticas sem embasamento científico nos seus procedimentos oficiais. Atribuir individualmente credibilidade à essas práticas caracteriza o imaginário pessoal, mas não pode ser institucionalizado, pois criamos causalidades anedóticas para dar sentido à vida. As verdades factuais devem ser respeitadas e valorizadas – se até as ciências forenses, empíricas e metodológicas, apresentam suas falhas, por sermos humanos, como embasar o que nem mesmo passa por esse processo? A rigidez em relação às provas deve se fazer presente pois pode também ser decisiva no destino da vida de uma pessoa, que pode ser condenada injustamente, por exemplo, quando é, na verdade, inocente.
A respeito disso, Patrícia G. Guedes destaca:
[...] Essa comunicação com o sobrenatural passou por etapas de aperfeiçoamento ao longo da história da humanidade, iniciando-se com o fenômeno das mesas girantes e evoluindo para o copo deslizantes, para a corbelha, para a tábua ouija, para a escrita direta, para a pneumatofonia e, finalmente, chega à psicografia. [...] (GUEDES,2013, p. 20).
Assim, podemos inferir que a pseudociência é uma forma de negacionismo científico presente de maneira expressiva no Brasil,não caracterizando uma forma de conhecimento por não ser uma crença justificada. A qualidade epistêmica dentro desse âmbito é fraca: o subjetivismo natural do ser humano é aflorado em sua maior potência. Cada um tem sua verdade subjetiva, mas precisa submeter-se à verdade factual. Em aula ministrada na Faculdade Nacional, a psicóloga Sally Ramos Gomes ressalta que é da espécie humana ser contadora de histórias, fazendo com que tenhamos necessidade de dar sentido ao que nos acontece. Desse modo, confabulamos de acordo com a cultura, os mitos, a religião e damos espaço ao fechamento cognitivo travado, muitas vezes.
É preciso diferenciar a evidência anedótica da científica e regular melhor, portanto, os elementos probatórios nos tribunais brasileiros, considerando na CRFB a laicidade do Estado e o respeito à todas as crenças religiosas.
Referências Bibliográficas
Brasil. Constituição (1988). Constituição Da República Federativa Do Brasil. Brasília, Df: Senado Federal, 1988.
Disponível Em: <HTTPS://WWW.METROPOLES.COM/BRASIL/BOATE-KISS-ADVOGADA-USA-CARTA-PSICOGRAFADA-PARA-DEFENDER-VOCALISTA> Acesso Em 7 De Julho De 2022.
Guedes, Patrícia Gonçalves Dos Santos. A Psicografia Como Meio De Prova: O Sobrenatural No Judiciário Brasileiro. Rio De Janeiro: Lumen Juris, 2013;
Nucci, Guilherme. A Ilegitimidade Da Utilização Da Psicografia Como Prova. Disponível Em: <https://guilhermenucci.com.br/ilegitimidade-da-utilizacao-da-psicografia-como-prova-processo-penal/> Acesso Em 7 De Julho De 2022.