A justiça em John Finnis

Resumo:


  • A teoria da justiça de John Finnis, baseada no Direito Natural, é aplicada aos métodos adequados de resolução de conflitos, destacando a importância da justiça multiportas e a necessidade de uma abordagem ética na aplicação do Direito.

  • Os métodos autocompositivos de resolução de conflitos, como mediação e conciliação, são enfatizados como alternativas eficazes ao sistema judiciário convencional, promovendo a justiça de maneira mais autônoma e célere.

  • A falta de fontes doutrinárias e a necessidade de maior estudo sobre a justiça multiportas são destacadas, apontando para uma lacuna no entendimento e aplicação prática dessa nova concepção jurisdicional na sociedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.
Interpretação e aplicação aos métodos adequados de resolução de conflitos

Resumo: O Direito Natural de John Finnis tem despertado a curiosidade da comunidade acadêmica recentemente, mesmo passadas quatro décadas da sua primeira publicação. Talvez pela proliferação de ideias como o institucionalismo político, por vezes acentuadas por relativismos e arbitrariedades, surgiu a necessidade de maiores estudos acerca de uma teoria ética de aplicação da Direito. Paralelamente, nasce na sociedade a vontade de aplicação da justiça de forma autônoma e célere, em alternativa à convencional opção dada pelo patrimonialismo estatal protagonizado pelo Poder Judiciário. Essa disposição, já transferida para o plano da realidade através da lei, é comumente denominada justiça multiportas. Infelizmente vislumbra-se ainda uma considerável carência de fontes doutrinárias a respeito. Algumas das preocupações dessa nova concepção jurisdicional são a efetividade do cumprimento das normas e o provimento de justiça a seus participantes. Nessa última repousa este breve estudo, trazendo apontamentos interpretativos da teoria da justiça de John Finnis com vista à aplicação nos métodos adequados de resolução de conflitos, especialmente nos meios autocompositivos.

Palavras-chave: direito natural; justiça; John Finnis; métodos adequados de resolução de conflitos.

Abstract: The Natural Law of John Finnis has aroused the curiosity of the academic community recently, even after four decades of its first publication. Perhaps due to the proliferation of ideas such as political institutionalism, sometimes accentuated by relativism and arbitrariness, the need for further studies on a moral theory of application of law arose. At the same time, the will to apply justice autonomously and quickly is born in society, as an alternative to the conventional option given by state patrimonialism carried out by the Judiciary. This inclination, already transferred to the plane of reality through the law, is commonly called multi-door justice. Unfortunately, there is still a considerable lack of doctrinal sources about it. Some of the concerns of this new jurisdictional conception are the effectiveness of compliance with the norms and the provision of justice to its participants. This brief study rests on this last one, bringing interpretative notes of John Finnis's theory of justice with a view to its application in the alternative dispute resolution.

Key-words: natural law; justice; John Finnis; alternative dispute resolution.

1 INTRODUÇÃO

O estudo jurídico contemporâneo contempla diferentes vertentes de interpretação e aplicação do Direito, algumas atentando ao positivismo, outras à linguagem, outras à tentativa de segregação entre Direito e moral etc. Nesse contexto, uma das perguntas mais importantes é “para que serve o Direito?” A escolha por determinada teoria da aplicação do Direito recairá na finalidade almejada, e, se o objetivo do Direito for prover justiça a determinado conflito gerado na sociedade, ter-se-á no Direito Natural revisitado do filósofo e teórico do Direito australiano e radicado na Inglaterra John Mitchell Finnis uma base firme e segura para a consecução da finalidade do Direito. Apesar de ser um autor contemporâneo, o professor de Oxford, que foi orientando de Herbert Hart, tem sido bastante estudado recentemente no Brasil. Simultaneamente surgiu, após décadas de discussão doutrinária, uma nova concepção de sistema de justiça no País, comumente chamada multiportas, e as “novas portas” de acesso à justiça constituem uma concepção atualizada de jurisdição em que são juridicamente válidos os atos, procedimentos, meios, métodos de resolução de conflitos nos quais o Estado não é mais o provedor principal, mas a própria comunidade, através da autonomia de ação dos seus indivíduos. Especialmente os meios autocompositivos de resolução de conflitos, como a mediação e a conciliação, requerem uma teoria que inclua a justiça como impulsora das decisões na aplicação das normas legais vigentes. Nos procedimentos pautados pela não-litigiosidade, as ideias de matriz positivista servirão de base para um primeiro entendimento entre os participantes, para uma conversa na mesma língua, mas a aplicação das normas sob uma visão justa e comum, da qual o indivíduo não escapa, é que permitirá um acordo. O Estado deixa de ser o responsável por resolver determinado conflito através da imposição, mas passa a garantir as decisões autônomas dos participantes, sem excluir a possibilidade do acesso à via judicial em caso de descumprimento das normas vigentes, incluindo as próprias normas autorizativas dos procedimentos. Não se imagina a aplicação do Direito em contrariedade à lei, mas, pelo contrário, a aplicação da lei no sentido de um Direito justo e solidário. A justiça trazida por John Finnis em seus diversos aspectos e medidas converge para uma aplicação do Direito não somente para o indivíduo como se um ser isolado fosse, mas dentro do seu contexto social, da comunidade, da tradição e da moral, um Direito ético. Por certo não é tarefa fácil a interpretação e aplicação de tema teórico e complexo, como a teoria da justiça trazida pela extraordinária obra de John Finnis, a relações humanas práticas e específicas, como as anteriormente referidas. Igualmente este trabalho não esgotará a ideia de justiça da obra de Finnis, contudo intentará extrair os conceitos fundamentais e as bases filosóficas do Capítulo VII - Justice de Natural Law and Natural Rights (1980) e de Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory (1998) e de obras nacionais recentes de estudiosos das ideias “finnisianas”. Uma vez eduzidos esses conceitos, serão envidados esforços para, sem excessos teóricos, mostrá-los aplicáveis aos métodos (meios) adequados (alternativos) de (re)solução de conflitos mais próximos da população (ou mais acessíveis), conhecidos como meios autocompositivos, em que são esperados a boa-fé e o ambiente amistoso (e a justiça e a amizade, talvez dissesse Finnis). Nesses esforços, o texto evitará o uso de grande número de citações de Finnis, priorizando a descrição a analítica de suas ideias e, em alguns casos, a interpretação dos seus escritos. O estudo iniciará pelo entendimento da justiça nas relações humanas, de acordo a razoabilidade prática (característica racional da prudência), que Finnis trabalha em dois aspectos, a justiça geral e a justiça particular, tendo essa última duas acepções, denominadas justiça distributiva e justiça comutativa. Nesse sentido, é indispensável a conceituação desses aspectos com o fim de aplicá-los a situações reais da vida humana na busca do justo para o indivíduo e para a comunidade. Em sequência, o exame passará à descrição dos elementos da justiça, em que Finnis chega a uma concepção dos requisitos que, conjuntamente encontrados em uma situação prática da vida em comunidade, indicá-la-á como justa. Para isso, sua teoria tem como base filosófica as obras de Aristóteles e Tomás de Aquino. Por fim, será tratado o elemento da vontade na razoabilidade prática da justiça e no impedimento da injustiça. Em cada seção os conceitos são desenvolvidos em aplicação a situações encontradas nos procedimentos autocompositivos de resolução de conflitos, de forma que a justiça, baseada na teoria de Finnis, seja elemento central no desenvolvimento desses meios. Busca-se, assim, fornecer subsídios à formação de acordos e consensos, tendo, dentro dos limites da lei, a justiça (virtude) como fim do sistema de justiça (jurisdição) em sua concepção multiportas.

2 RAZOABILIDADE PRÁTICA E ACEPÇÕES DA JUSTIÇA

A justiça pode, por vezes, parecer melhor percebida que conceituada, mas há razões práticas para tê-la como objetivo nas relações humanas. A partir da teoria de John Finnis, compreende-se que a necessidade de justiça é, em verdade, um conjunto de exigências de razoabilidade prática no qual o indivíduo busca realizar e respeitar os bens humanos não apenas para si próprio ou em seu interesse, mas também para o bem comum, o bem da comunidade. A razoabilidade prática pode ser aproximada à virtude aristotélica da prudência (phronesis, prudentia) e compreendida em suas variadas instâncias, como aludem Pinheiro e Neiva:

A razoabilidade prática compreende várias instâncias. Aquino cita 3 delas: (1) prudência pessoal; (2) prudência doméstica/familiar; e (3) prudência política, praticada pela autoridade e por cidadãos quando sua ação tiver repercussão política. [...] Portanto, inserir o bem comum na razoabilidade das ações individuais pela virtude da justiça, confere a essa concepção ética uma solidez política substancial. A razoabilidade prática é uma virtude moral que ordena a ação individual à consideração de todos os bens humanos, ordenando todas as virtudes. A prudência, nesse caso, se volta ao bem comum como superior ao bem individual. (PINHEIRO; NEIVA, 2020, p. 229)

Por meio da razoabilidade prática, excluímos as autopreferências arbitrárias na busca do bem, tendendo naturalmente na direção do justo. Por mais que as falhas pessoais de alguém não impliquem em injustiça em cada ocasião, cada falha pessoal é responsável por implicar alguém em uma falha de justiça, por ação ou omissão. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, identificou um senso geral de justiça no qual a palavra significa a virtude perfeita com relação aos outros:

A justiça, então, com esse feitio, é virtude perfeita, ainda que com relação aos outros [e não no absoluto]. Eis porque a justiça é considerada frequentemente a melhor das virtudes, não sendo nem a estrela vespertina nem a matutina tão admiráveis, de modo que dispomos do provérbio...

Na justiça está toda a virtude somada.

E é a virtude perfeita por ser ela a prática efetiva da virtude perfeita, sendo também sua perfeição explicada pelo fato de seu possuidor poder praticá-la, dirigindo-se aos outros e não apenas praticá-la isoladamente; com efeito, há muitos que são capazes de praticar a virtude nos seus próprios assuntos privados, mas são incapazes de fazê-lo em suas relações com outrem. É por isso que se considera bastante satisfatório o dito de Bias, segundo o qual a autoridade mostrará o homem, pois é no exercício da autoridade que alguém é levado necessariamente à relação com os outros e se torna um membro da comunidade.

Pela mesma razão de significar a relação com alguém, pensa-se que a justiça, exclusivamente entre as virtudes, é o bem alheio porque concretiza o que constitui a vantagem do outro, seja este o detentor da autoridade, seja ele um parceiro na comunidade. [...]

E a justiça, nesse sentido, por conseguinte, não é uma parte da virtude, mas a virtude total, e o seu oposto, a injustiça, não é uma parte do vício, mas a totalidade do vício (a distinção entre virtude e justiça emergindo clara do que foi dito. São, com efeito, idênticas, mas sua essência não é idêntica; aquilo que é manifestado na relação com os outros é a justiça - no ser simplesmente um estado de certo tipo é virtude). (ARISTÓTELES, 2014, p. 182-183)

Mas essa justiça geral, comum, universal não é suficiente para a razoabilidade prática. É necessária uma efetiva colaboração entre as pessoas, com a coordenação dos recursos e dos empreendimentos, incluindo padrões de mútua limitação e não-interferência. Um conjunto de condições de colaboração na qual o aumento do bem-estar de todos os membros de uma comunidade é, de fato, frequentemente chamado de bem comum. Quando se considera os requisitos concretos da justiça, que podem ser chamados de justiça particular, é necessário considerar o bem comum com um significado mais concreto, palpável. Os problemas de realização do bem comum através de um conjunto coordenado de condições pode ser dividido em duas classes: o problema da distribuição de recursos, oportunidades, lucros e vantagens, funções e cargos, responsabilidade, tributos e obrigações, geralmente contornado pela teoria da justiça distributiva; e os demais problemas relativos ao que é necessário para o bem-estar do indivíduo em comunidade, que surgem nas relações e negócios entre indivíduos ou grupos e têm razoável resposta na teoria da justiça comutativa.

Uma disposição é distributivamente justa se é uma razoável resolução de um problema de repartição de algo essencialmente comum, mas que precisa, para a consecução do bem comum, ser apropriado aos indivíduos. Algo essencialmente comum, nesse contexto, pode ser algo que não pertencente a alguém nem criado por alguém, mas útil para alguém ou para todos, como a energia solar, o mar, terras, rios, espaço aéreo. Outro caso surge da vontade dos indivíduos em colaborar para melhorarem sua condição, o que envolve decisão, participação, responsabilidade, contribuição, sendo exemplos a construção de um muro de defesa da cidade, um dique, hospitais, celeiros de armazenamento de colheitas. Essas tarefas somente podem ser realizadas em comunidade, no entanto o problema da justiça distributiva surge na definição de quem executará o quê e em quais condições. Aqui importante entendermos que o bem comum é fundamentalmente o bem dos indivíduos. O bem comum que é o objeto de toda justiça e no qual toda vida justa em comunidade deve respeitar e favorecer não deve ser confundido com iniciativas comuns ou empreendimentos comuns. Quando alguém fala em fazer algo em benefício da comunidade pode ser apenas um atalho, por vezes perigoso, para beneficiar alguns poucos membros daquela comunidade. É um fundamental aspecto da justiça que os empreendimentos comuns sejam considerados e conduzidos não como fins em si, mas como meios de assistência, como meios de auxílio ao indivíduo para que ele se ajude, para que ele conduza sua própria vida. O princípio da subsidiariedade é um princípio de justiça. Nesse sentido, a história mostrou a importância da propriedade privada com base justa e que naturalmente os empreendimentos privados são mais produtivos e melhor cuidados que os empreendimentos públicos oficiais. Finnis entende a propriedade privada como um requisito de justiça, contanto que haja mecanismos como distribuição de lucros, economia de mercado, taxação redistributiva, pleno emprego etc. Aristóteles já defendia, na Política, que “a propriedade de algum modo deve ser pública, mas em geral, privada” (ARISTÓTELES, 2019, p. 73).

A justiça comutativa cuida de um enorme número de relações e negócios entre pessoas, incluindo relações entre agentes públicos e indivíduos, no qual o empreendimento ou a distribuição tem importância contextual menor que questões sobre o que é apropriado, justo ou igual (isonômico) entre as partes. As ideias que geraram esses termos vêm de Aristóteles, que dividia os problema de justiça em dois tipos: justiça distributiva (dianemetikon dikaion) e justiça corretiva (diorthotikon dikaion). Da Ética a Nicômaco tem-se a justiça distributiva:

O justo, portanto, necessariamente, é, no mínimo, quádruplo. Com efeito, envolve dois indivíduos para os quais existe justiça e duas coisas que são justas. E a mesma igualdade estará presente entre uns e outras; de fato, a proporção entre as coisas será igual à proporção entre os indivíduos, pois, não sendo as pessoas iguais, não terão coisas em porções iguais, entendendo-se que, na medida em que não são iguais, não receberão em pé de igualdade, o que, porém, não impede o surgimento de conflitos e queixas, seja quando iguais têm ou recebem coisas em porções desiguais, seja quando desiguais têm ou recebem coisas em porções iguais.

Isso também ressalta, como evidente, à luz do princípio da atribuição a partir do mérito. Todos, de fato, estão concordes de que a justiça distributiva tem que ser a partir de certo mérito, embora nem todos entendam o mesmo tipo de mérito; para os adeptos da democracia, trata-se da liberdade, para os adeptos da oligarquia, trata-se da riqueza ou do bom nascimento, enquanto para aqueles da aristocracia, trata-se da virtude. O justo é, portanto, certo tipo de proporcional. [...]

Com efeito, o proporcional é mediano e o justo é proporcional. [...]

O justo é, portanto, o proporcional e o injusto aquilo que transgride a proporção. Pode-se, assim, incorrer no excesso ou na deficiência, o que é realmente o que ocorre na prática. (ARISTÓTELES, 2011, p. 187-189)

A justiça corretiva de Aristóteles busca corrigir as desigualdades criadas nas relações (synallagmata) entre indivíduos, tanto voluntárias, como nas vendas e contratações, quanto involuntárias, como nos furtos e difamações. O termo grego deve ser entendido de forma ampla, como qualquer situação em que alguma coisa troca de mãos, independentemente das circunstâncias que lhe deram causa. Novamente da Ética a Nicômaco extraímos o pensamento do filósofo grego, desta vez sobre a justiça corretiva:

O justo, porém, nas transações contratuais entre particulares, embora estabeleça certa igualdade, e o injusto, certa desigualdade, não é o igual de acordo com a proporção geométrica, mas de acordo com a proporção aritmética. Com efeito, não faz qualquer diferença se alguém bom trapaceou alguém mau ou se este trapaceou aquele. [...]; a lei apenas contempla a natureza característica do dano, tratando as partes como iguais, apurando simplesmente se alguém praticou injustiça enquanto o outro indivíduo a sofreu, e se alguém produziu o dano enquanto alguém foi por ele atingido. Por conseguinte, como o injusto aqui é o desigual, o juiz se empenha em torná-lo igual, porquanto alguém foi ferido, tendo o outro o ferido, ou alguém matou e o outro foi morto, sendo neste caso a distribuição do sofrer e do fazer desigual; nesta conjuntura, o juiz se empenha em torná-los iguais mediante a punição por ele imposta, retirando o ganho. [...]

Assim, enquanto igual é uma mediania entre mais e menos, ganho e perda são respectivamente o mais e o menos contrariamente, mais bem e menos mal sendo ganho, e o contrário, a perda; e como sendo o igual, que declaramos ser o justo, constitui mediania entre eles, conclui-se que a justiça corretiva será mediania entre perda e ganho.

Eis a razão, porque, em caso de disputas, recorre se ao juiz. [...] De fato, o juiz é como se fosse a justiça dotada de alma. Outro motivo para buscar os juízes é para que ele estabeleça a mediania, pelo que, efetivamente, em alguns lugares, chamam-se os juízes de mediadores, pois eles atingem a mediania, segundo lhes parece, atingem o justo. É de se concluir, portanto, que o justo é uma espécie de mediania na medida em que o juiz encarna essa mediania. (ARISTÓTELES, 2011, p. 189-191)

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Finnis, no entanto, expressa certa crítica a Aristóteles, não em relação ao conteúdo, mas na ênfase dada ao uso da palavra correção, enquanto ato de remediar a desigualdade causada por alguém (em desfavor de outrem). Foi Tomás de Aquino que deu nova perspectiva à segunda classe de justiça de Aristóteles, dando notoriedade à expressão “justiça comutativa”. O termo mais leve (commutatio, change) e mais abrangente, torna-se apropriado para descrever as interações humanas e cria certa harmonia com a justiça distributiva. Muitas ações são ao mesmo tempo distributivamente e comutativamente justas ou injustas, como a ação de um juiz em determinado julgamento. O ato de julgar é uma questão de justiça distributiva, mas o dever de aplicar as regras jurídicas é um dever de justiça comutativa. Uma interessante aplicação das ideias de justiça distributiva e comutativa de Finnis pode ser vista nas relações entre Estado e particular (ou entre administração pública e administrado), como explica o autor em Natural Law and Natural Rights:

as pessoas que detêm autoridade pública (na terminologia relapsa dos últimos séculos, ‘o Estado’) devem aplicar a justiça comutativa aos que estão sujeitos à sua autoridade. Um sistema de tributação e bem-estar social pode ser distributivamente justo; sua administração legal e regular é uma questão de justiça comutativa devida a todos aqueles que têm direitos, poderes, imunidades ou deveres verificáveis. (FINNIS, 2011, p. 184, tradução nossa)

A justiça geral traz como característica a afirmação de que a sua existência ou a sua verificação no mundo real depende ao menos da existência de dois indivíduos, pois é o justo vivido nas relações humanas e comunitárias. Quando se trata de meios autocompositivos de resolução de conflitos, poderá haver justiça se houver uma relação honesta e amigável entre pelos menos duas partes, sendo, na mediação, também tarefa do mediador contribuir para esse ambiente. É uma composição realizada a várias mãos, autônomas e unidas pelo vínculo da justiça. Há uma relação estabelecida em que o justo manifestar-se-á na medida da correção das atitudes e da mútua disposição em afastar o injusto. Uma conciliação, que usualmente envolve questões de menor complexidade técnica, poderá chegar a bom termo quando cada parte compreender que não há somente o seu direito, mas o direito do outro e de todos que pertencem à comunidade.

A justiça distributiva envolve julgamento, mas terá limite nos termos da lei positiva, decidida por legítimo processo legislativo. Sua aplicação aos meios autocompositivos de resolução de conflitos será tanto mais limitada quanto menor for a parcela de discricionariedade técnica autorizada pela lei. Exemplificativamente, nos conflitos de índole tributária, verifica-se recorrente a discussão da incidência de determinado imposto, pois, pela própria qualidade genérica da lei, resta espaço para certo entendimento acerca da ocorrência ou não do fato gerador, bem como da identidade de outros aspectos da incidência com a hipótese legal.

Já a justiça comutativa evitará os excessos e deficiências através da verificação, relacionando os direitos e deveres de cada participante do processo. Em continuidade ao exemplo anterior de conflito na área tributária, será justa a cobrança de tributo de quem as normas exijam o seu pagamento, enquanto será injusta a cobrança do tributo de quem as normas definam como imune, observado que eventuais injustiças podem e devem ser corrigidas. Da mesma forma ocorrerá em relação ao valor devido (quantum debeatur), pois uma exigência maior que o devido constituirá uma injustiça e um pagamento a menor terá consequências injustas para os demais contribuintes, que arcarão com o valor, ou, em última instância, prejudicará toda a comunidade. Para o justo é preciso compreender o outro e os outros e, especialmente, evitar o injusto. No que tange à matéria em conflito, quanto mais complexa for, mais necessários serão o conhecimento técnico e a experiência, motivo pelo qual muitas vezes um procedimento de mediação terá melhor desenvolvimento com a presença dos advogados das partes.

3 ELEMENTOS DA JUSTIÇA

Compreendido o que se entende por justiça, faz-se necessário saber identificá-la e como agir concretamente para alcançá-la. Para Finnis, três são os elementos que, quando conjuntamente encontrados, identificam o conceito de justiça: o olhar ao próximo, o dever e a igualdade. O elemento que este texto inova ao denominar “olhar ao próximo”, numa tentativa de melhor compreensão das ideias do autor ao usar a expressão other-directedness, é o agir do indivíduo considerando o bem do outro nas relações humanas, é característica intersubjetiva, interpessoal; é um pensar e agir com a compreensão de que há um outro, direcionado ao bem do outro, por isso parece-nos insuficiente sua denominação como intersubjetividade, comumente utilizada. Somente há que se falar em justiça ou injustiça quando há uma pluralidade de indivíduos e alguma questão prática concernente a eles e suas relações. Com isso, Finnis afasta o uso da expressão “fazer justiça a si mesmo” da justiça que descreve em sua obra, pois seria, essa expressão, uma metáfora para um indivíduo e suas possibilidades não ocorridas. Platão já apresentava, em A República, similar metáfora para a justiça da alma (que também se aplica às relações entre governantes e governados), ainda que Finnis demonstre certa preocupação com a interpretação moderna de suas palavras:

‘A justiça, a meu ver, é aquilo que, no começo dissemos, devia ser estabelecido em todo o Estado, quando o estávamos construindo: ou isso ou alguma forma disso. Formulamos e repetimos frequentemente - se o lembras - que cada um precisava se dedicar a uma das ocupações no Estado para a qual tivesse naturalmente melhor aptidão’. [...]

‘Além disso, ouvimos muitas pessoas dizer, e muitas vezes nós mesmos dissemos, que a justiça é realizar o próprio trabalho pessoal e não se intrometer no que não é da própria conta’. [...]

‘Por conseguinte, meu amigo, [pode-se concluir que] esse realizar o trabalho pessoal num certo sentido é justiça’. [...]

‘Penso que isso foi o que restou no Estado, uma vez descobertas a moderação, a coragem e a sabedoria. Trata-se do poder que possibilita o desenvolvimento dessas [virtudes] no Estado e que, quando desenvolvidas, as preserva enquanto ela própria estiver presente. E, ocioso lembrar-te, dissemos que a justiça seria o que restasse quando tivéssemos localizado as outras três’.

‘Observa-o desta maneira [que vou indicar] [...] a incumbência de [...] juízes nas cortes do Estado [...]’.

‘E não será o principal propósito de suas sentenças garantir que ninguém venha a possuir o que pertence a outro ou ser despojado do que lhe pertence?’

‘Esse será o principal propósito deles’.

‘Presumindo que isso é justo?’

‘Sim’.

‘Portanto, desse ponto de vista também o ter e o realizar o que cabe a cada um seria reconhecidamente a justiça’. (PLATÃO, 2019, p. 200-202)

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O segundo elemento, dever (duty), indica o que é devido ao outro (debitum), a que uma pessoa tem direito, como uma tentativa de definir o que é próprio de cada um ou pelo menos a cada um devido. A justiça não se preocupa com cada relação ou conduta de razoabilidade entre uma pessoa e outra, mas com aquelas necessárias ou apropriadas para evitar o errado, o injusto, o mal. Há várias formas de evitar o errado, tanto pela ação direta quanto pela ação de evitar uma injustiça. Esse elemento comporta uma distribuição da justiça tanto no seu aspecto “benéfico”, como os bens e os direitos, quanto em relação aos ônus, como o trabalho e as obrigações. A igualdade (equality) é muito invocada nestes dias, mas nem sempre sob viés justo, pois apinhada de arbitrariedades e ideologias, motivo pelo qual é considerada um dos conceitos mais importantes na obra de Finnis. O autor inicia a discussão desse elemento exemplificando duas formas, que denomina igualdade aritmética (2=2) e igualdade geométrica (1:1=2:2), mas já prevendo simplificações errôneas (propositais?), prefere tratar em termos de proporcionalidade ou de equilíbrio. Aqui se cuida de uma comparação que chegue a termo justo para um, para outro e para todos. Definir ou ao menos entender o que uma pessoa precisa ou o que lhe é apropriado ter para manter-se vivo e bem torna-se uma tarefa difícil, podendo levar indivíduos ou governos com tendências autoritárias a racionar ou limitar os bens de outros através de um argumento de igualdade que é, na realidade, falso. O exame necessário requer que cada tipo de comparação efetuada deixe clara a igualdade/desigualdade ou a proporção/desproporção que deseja aplicar em cada avaliação de justiça/injustiça.

De posse desses três elementos de justiça, Finnis entende alcançar um conceito de justiça suficientemente preciso e aplicável em análises de razoabilidade prática. Sua teoria da justiça não se restringe às instituições básicas da sociedade, como defende John Rawls com seu “institucionalismo político” (CORDIOLI, 2020, p. 23), nem às relações entre iguais na comunidade política, como Aristóteles parecia tentado a fazer. Também esclarece não serem seus requisitos de justiça restritos, como entende Hart, ao tratar do princípio “Trate igualmente casos iguais (ou similares) e diferentemente casos diferentes”. A ideia de justiça inclui princípios sobre como uma pessoa deveria tratar outra ou como uma pessoa tem o direito de ser tratada, independentemente de como outras pessoas têm sido tratadas. Por exemplo, a proibição de tortura em qualquer caso será um princípio de justiça. Outra característica da justiça, diferentemente do pensamento de Rawls, será a sua não restrição a condições ideais de uma sociedade em que todos concordam integralmente com os princípios e instituições de justiça (contratualismo). Como se constata, a justiça de Finnis é mais ligada à realidade e às relações humanas, ou, porque não dizer, aos direitos humanos enquanto direitos naturais. Essa justiça real e relacional é ampla, reduzindo restrições teóricas elencadas por outros autores, no sentido ou no objetivo de uma razoabilidade prática, de um justo aplicável com base na realidade das pessoas e de suas relações.

Em uma resolução de conflito entre particulares, sem a presença do Estado como entidade decisória, mas como garantidor das decisões dos indivíduos, a justiça poderá ser o parâmetro de aproximação entre as partes ou mesmo o parâmetro motivador do acordo, do consenso, pois uma decisão construída ao invés de uma sentença imposta assume maior percepção de justiça, tornando-se uma resolução adaptada ao que as partes almejam. É, inclusive, uma exigência da democracia, como indicam Morais e Silveira:

Trata-se da exigência de garantias e meios concretos rumo a democratização do acesso à justiça - a solução dos conflitos - princípio basilar do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, de um repensar os modos de tratamento dos conflitos, com o objetivo de implementar mecanismos de pacificação social mais eficazes, que não desvirtuem os ideais de verdade e justiça social do processo. (MORAIS; SILVEIRA, 2018, p. 78)

Nos mecanismos de resolução de conflitos e pacificação social, a justiça e a verdade são componentes inafastáveis. Os três elementos de justiça de Finnis, olhar ao próximo, dever e igualdade, devem estar presentes nos meios autocompositivos para que se garanta a justiça do procedimento. Em uma mediação, por exemplo, o acordo deverá vir em termos justos na relação entre as partes e na relação destas com a comunidade a que pertencem. Por outro lado, não haverá acordo justo no tratamento do procedimento como um jogo de interesses, em que alguém ganha e alguém perde. O dever parte da lei, que estabelecerá os parâmetros mínimos à consecução de um acordo entre as partes. Nesse elemento, não é somente compatível como necessária a existência de alguma discricionariedade (técnica) quando a administração pública for parte. O efeito benéfico (justo) vai além do próprio resultado do procedimento, pois faz surgir na comunidade o desejo de participação e mesmo de mudança de uma lei eventualmente injusta. A igualdade será observada pela adequada comparação de situações práticas (verificáveis), ou, em termos “finnisianos”, pela proporcionalidade dada pela razoabilidade prática. Em um meio autocompositivo de resolução de conflitos no qual a administração pública seja parte, ainda que a lei apresente-se limitadora da justiça quando aplicada ao caso concreto, não poderá determinado desejo de uma parte ser atendido enquanto nos casos similares isso não ocorre ou não é possível. Pode-se, em aproximação, dizer que se trata da indisponibilidade do interesse público encorpada pelo viés da justiça. A configuração de Hart, em que se deve tratar igualmente os iguais e diferentemente os diferentes, aplica-se a esse elemento, desde que não o limite.

4 O ELEMENTO DE VONTADE

A fim de evitar o risco do cometimento de uma injustiça com a integralidade do pensamento de Finnis sobre a justiça, faz-se mister um breve esclarecimento sobre um elemento que sempre esteve presente em sua teoria do Direito Natural, mas não foi trabalhado na sua devida medida: a justiça enquanto virtude. Esse elemento que se observa passar pela teoria da justiça de John Finnis sem grande ênfase na publicação original de Natural Law and Natural Rights em 1980 é a vontade (disposição, intenção) contida na ideia de justiça de Aquino, que ele parece adotar. No entanto, na publicação da segunda edição, em 2011, o autor faz, em posfácio, o necessário esclarecimento, admitindo ter deixado passar, à época, a chance de melhor apresentar esse que seria outro elemento da justiça:

[o capítulo VII] trata a justiça como a justiça é tratada no Digesto de Justiniano na famosa tríade de princípios imperativos (que Kant levou muito a sério), 'honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere' [...] - 'viva corretamente, não prejudique ninguém, dê a cada um o que pertence a cada um'. [...] a definição clássica escolhe uma virtude - ‘constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere’ - vontade constante e perpétua de dar a cada um o(s) direito(s) que lhe pertence(m). (FINNIS, 2011, p. 460, tradução nossa)

Essa definição de justiça estável, pessoal e ética é a adotada por Aquino, do que Finnis chega a brincar que sua definição original era tomista, mas não tomista suficiente. Em Aquinas, de 1998, Finnis aprofunda sua ideia de justiça, explorando detalhadamente o significado da palavra ius na obra de Tomás de Aquino:

A palavra ius (que pode ser escrita jus e é o radical de 'justo' [just], 'justiça' [justice], 'jurídico' [juridical], 'injúria' [injury] etc.) tem uma variedade de significados bastante distintos, embora relacionados. Quando Aquino diz que ius é o objeto da justiça, ele quer dizer: o que é justiça, e o que fazer justiça assegura, é o direito de alguma outra pessoa ou pessoas – o que é devido a elas, o que elas têm direito, o que é delas por direito. (FINNIS, 1998, p. 133)

A palavra latina ius tinha uma variedade de significações no tempo de Aquino. Por outro lado, o seu plural, iura, é pouco usado no sentido de direitos, mas frequentemente assume outro significado: as leis (the laws), que poderiam atualmente ser entendidas como direito positivo. Não obstante, Aquino também utiliza a palavra lex para referir-se a lei. O que importa para Finnis é que esses dois significados, direito(s) e lei(s) estão racionalmente conectados. Dizer que alguém tem um direito é afirmar, em termos de razoabilidade prática, que de outro ou de todos é exigida uma obrigação, ou, em termos atuais, é entender que se alguém tem um direito a receber, alguém (ou todos) tem um dever a cumprir. Finnis traz, então, para o estudo da virtude da justiça, a questão do livre arbítrio, como explica Cordioli:

Para compreender melhor esta tese, é necessário primeiro compreender uma condição básica para a autodeterminação, sem a qual não haveria responsabilidade moral sobre a constituição do próprio caráter. Nesse sentido, John Finnis sustenta que há liberdade de escolha não apenas quando a pessoa está livre de constrangimentos exteriores, como pretendiam Platão e Aristóteles. Da mesma forma, uma escolha não pode ser considerada livre se apenas representa um ‘sistema de preferências’, de ‘desejos’ ou ‘hábitos’ que predefine o que é escolhido, como muitos Iluministas pretendiam. Uma escolha é realmente livre, diz Finnis, ‘se, e somente se, ela está entre alternativas práticas abertas (ou seja, fazer isto ou aquilo...) de tal forma que não seja um fator, mas a escolha em si que define qual alternativa é escolhida’. (CORDIOLI, 2020, p. 38-39)

A vontade ou disposição de (fazer) justiça não é algo automático a qualquer um, da mesma forma que não o é qualquer virtude, mas cabe a cada pessoa racionalmente cultivá-la em suas relações. Quando a teoria de Finnis apresenta um elemento de vontade, uma disposição em buscar o justo, não está somente a dizer que a justiça deve ser buscada em qualquer situação, mesmo quando ninguém estiver olhando, interpretação comumente encontrada, mas está também falando de uma escolha, de uma voluntariedade.

Não por acaso a voluntariedade é um princípio da mediação. De fato, um procedimento autocompositivo só deve ocorrer movido pela voluntariedade das partes, pela sua disposição em busca do justo. Por isso, critica-se a imposição de procedimentos de conciliação realizada pelo Poder Judiciário brasileiro; é um completo desconhecimento de que a voluntariedade necessária à autocomposição advém da justiça-virtude e não da justiça-instituição. Essa voluntariedade deve ser incorporada pelas partes de uma mediação ou conciliação como uma intenção genuína de (fazer) justiça. A pureza desse comportamento terá força suficiente para mudar uma situação consideravelmente adversa, mas, na mesma medida, sua impureza terá o poder de afastar o justo que pode estar logo à frente. É uma relação de confiança que uma vez quebrada dificilmente será remontada, tal qual um vaso de louça que cai no chão. Assim, o ambiente voluntário, confiável e justo criado e mantido pelos participantes e pelo mediador contribuirá para o sucesso de um acordo ou de um consenso.

5 CONCLUSÃO

O Direito Natural recebeu interpretações contemporâneas equivocadas, tanto propositais, por aqueles que queriam fazer valer suas teorias positivistas, quanto por ignorância ou mesmo por preconceito. Por exemplo, Aristóteles sempre buscou a harmonia entre o que entendia como justo legal e justo natural. A justiça na obra do filósofo grego e na obra de Tomás de Aquino não representa um afastamento das leis escritas em defesa de uma lei cósmica. Pelo contrário, abrange um pensamento profundo, amplo e com base racional. John Finnis atualizou essas ideias com uma linguagem compreensível aos dias de hoje, não obstante seja uma leitura “densa”. É verdade que alguns pontos de sua obra, como a enumeração dos bens humanos básicos, podem ser polêmicos na atualidade (e talvez sofram algum preconceito, como acontece com Aquino), mas sua noção de justiça advinda da razoabilidade prática, exemplificada com situações vividas na história humana, aplica-se perfeitamente ao tempo presente. Em verdade, essa justiça é até desejada, na medida em que outras teorias apresentam-se excessivamente institucionais, permitindo invasões relativistas, quando não imorais. No Direito ético de Finnis, a razoabilidade prática, aproximada à virtude aristotélica da prudência, é um bem humano básico e justifica a necessidade de justiça. De fato, quem, racionalmente, desejaria o injusto, o errado, o mal? Um bom exame nesse sentido pode iniciar pela observação de como a justiça é compreendida nas relações humanas e comunitárias. Para isso, foram apresentadas as acepções de justiça com base em Finnis, iniciando pelo senso geral do que é justo, denominado justiça geral. Nessa acepção, há atitudes que indicam a presença do justo, com a eliminação ou ao menos a mitigação das ações egoístas e arbitrárias. É uma compreensão de que há, nas relações humanas, um outro igualmente digno da aplicação justa das normas. Tornando a ideia mais palpável, Finnis diz que a justiça geral pode ser especificada em formas de justiça particular. Nas relações humanas e comunitárias surgem situações relativas à distribuição de bens e obrigações, comumente resolvidas pela justiça distributiva. A distribuição justa fundamentalmente contribuirá para o bem comum, para o bem dos indivíduos, para o seu florescimento, sua felicidade (eudaimonia). Viu-se, ainda, a necessidade de uma condução justa dos empreendimentos comuns, ou seja, da sua condução como meios de apoio ao indivíduo e não como fins em si. Nas inúmeras relações e negócios entre pessoas em que um tratamento justo, isonômico é desejado, tem-se espaço para a justiça comutativa. Essa justiça contempla as ações necessárias para dar a cada um o que lhe é devido, evitando os excessos e as deficiências. Na teoria de Finnis, observam-se os elementos da justiça, como o olhar ao próximo (intersubjetividade), o dever e a igualdade. Posteriormente, o autor deixa mais clara sua visão da justiça enquanto virtude, em aproximação a Aquino. É a inclusão de um elemento de vontade na busca do justo. Este estudo da teoria da justiça de Finnis, ainda que abreviado, apresentou alguns subsídios para sua aplicação a relações humanas específicas. O sistema de justiça multiportas implica na concepção de que a via judicial deixa de ser a única para ser apenas uma das “portas” possíveis na resolução dos conflitos. Essa nova estrutura já é uma realidade em vários países, incluindo o Brasil, mas ainda requer maior aprofundamento teórico para que possa oferecer benefícios aos indivíduos de uma comunidade. Os chamados meios adequados de resolução de conflitos passam a ser objeto de estudo cada vez mais presente na sociedade, importando para este estudo, especialmente os chamados meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação, em que as partes detêm autonomia de decisão sobre seus conflitos. Nas relações ocorridas nesses meios, o componente da justiça passa a ter importância singular, pois facilita a evolução de uma conversa para um consenso. Quando o conflito envolver a administração pública, será de interesse a toda comunidade, motivo pelo qual a ação dos agentes públicos assumirá ainda maior relevância para um resultado distributivamente justo. Em termos de justiça comutativa, o exemplo pode vir de um conflito de índole tributária, no qual há que se verificar as condições de cada participante, dentro do que preceituam as normas aplicáveis. É necessário reconhecer quando alguém foi prejudicialmente (injustamente) atingido por dispositivo genérico da lei, a fim de que o erro possa ser corrigido. Cada ato, procedimento, reunião pode (ou deve) ser pautado pela presença dos elementos da justiça de Finnis: o olhar ao próximo, o dever e a igualdade. Dessa forma, não se tornará uma mediação ou uma conciliação apenas mais um ato processual de impessoalidade institucional, mas um encontro de pessoas que buscam o justo, o prático, o racional.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014.

ARISTÓTELES. Política. Tradução, introdução e notas Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2019.

CORDIOLI, Leandro. A justiça e a lei natural em John Finnis. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2020.

FINNIS, John. Aquinas: moral, political and legal theory. New York: Oxford University Press Inc., 1998.

FINNIS, John. Natural law and natural rights. 2. ed. New York: Oxford University Press Inc., 2011.

PINHEIRO, Victor Sales; NEIVA, Horácio Lopes Mousinho. Razão prática, direito e bem comum na teoria da lei natural de Finnis. In: PINHEIRO, Victor Sales (org.). A filosofia do direito natural de John Finnis: vol. 1 conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 207-235.

PLATÃO. A república. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2019.

MORAIS, José Luis Bolzan de; SILVEIRA, Anarita Araújo da. Outras formas de dizer o direito. In: WARAT, Luis Alberto. (org.). Em nome do acordo: a mediação no direito. Florianópolis: EModara, 2018. p. 71-97.

Sobre o autor
Tarciano José Faleiro de Lima

Auditor-Fiscal do Município de Porto Alegre. Pós-graduado em Direito Público e Gestão Pública. Professor. Escritor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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