Indubitavelmente, o enraizamento de grupos políticos no poder desprestigia o principio democrático da alternância de poder e os valores constitucionais da probidade, moralidade, normalidade e legitimidade das eleições, além de outros postulados.
Não raramente, contudo, esses basilares preceitos fundamentais são postos a prova.
A classe política brasileira, não raramente, busca reinventar períodos históricos brasileiros com a finalidade de perpetuação no poder através do mandonismo, clientelismo e coronelismo, características marcantes da República Velha, do Estado Novo e do Regime Militar.
A tentativa atual de mantença no poder, além da utilização do “Pão e Circo” – termo criado pelo poeta romano Juvenal e com fins de esconder as mazelas dos governantes através do controle e contenção do ânimo da população –, se dá não mais pela alternância de agentes políticos diferentes na chefia do Executivo, mas, sobretudo, pela tentativa de se implantar no âmbito da República Brasileira oligarquias familiares, municipais em especial.
Em alguns rincões brasileiros verdadeiros “monarcas” se apoderaram do poder, notadamente os municípios mais pobres e nos quais a população vive quase que exclusivamente de “favores” (pagamentos de salários, realização de obras, prestação de serviços, etc.) dos prefeitos governantes.
A criatividade da classe política municipal familiar, com fins de perpetuação no poder, é admirável, merecendo destaque, neste sentido, o surgimento do “prefeito itinerante” ou “prefeito profissional”.
O prefeito itinerante é aquele que, mesmo após sua reeleição, tenta uma terceira eleição em unidade federativa diversa daquela em que exerceu dois mandatos eletivos ou que pleiteia que seus parentes (consanguíneos, por adoção ou por afinidade) venham a sucede-lhe diante da impossibilidade do exercício de um terceiro mandato.
A figura do “prefeito itinerante” é alvo de muitas discussões.
O debate sobre o tema se tornou amplo e complexo após julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (RESP. 19257) que, interpretando decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 637485), fixou premissa de que cônjuges e parentes de prefeito reeleito não são inelegíveis para o mesmo cargo em município vizinho, salvo se este resultar de desmembramento, de incorporação ou de fusão.
Neste panorama, especifique que buscando extirpar a figura do “prefeito itinerante”, o Supremo Tribunal Federal (STF), interpretando o disposto no §5º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988 e em sede de repercussão geral, assentou ser vedada terceira eleição de prefeitos na circunscrição em que exerce o mandato ou em qualquer outro município da federação (RE 637485, RELATOR (A): MIN. GILMAR MENDES, PLENO, JULG: 1/8/2012, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJE-095 DIVULG 20-05-2013 PUBLIC 21-05-2013), tendo firmado a seguinte tese:
STF - TESE
I - O art. 14, §5º, da Constituição deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo de Chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da Federação diverso;
II - As decisões do Tribunal Superior Eleitoral - TSE que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência não têm aplicabilidade imediata.
A tese firmada, como se extrai da decisão da Excelsa Corte de Justiça, não fez menção a inelegibilidade reflexa, prevista §7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988, sendo a omissão objeto de discussões doutrinárias e jurisprudenciais acaloradas.
O debate cinge-se em elucidar se a vedação firmada pela Excelsa Corte Brasileira (RE 637485) albergaria também a inelegibilidade reflexa (art. 14, §7º, CF/88), ou seja, se cônjuges e parentes do Chefe do Poder Executivo estariam inelegíveis para a sucessão no âmbito da circunscrição eleitoral ou fora dela.
A discussão merece reflexão, devendo a resposta ser apresentada em conformidade com a lei.
Prevista no §7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988, a inelegibilidade reflexa impede a candidatura de cônjuges e parentes (consanguíneos ou afins até o segundo grau ou por adoção) no território de jurisdição do titular, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato a reeleição.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
§7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição. (...). (Grifos e omissões nossos).
O preceito constitucional em evidência, assim como a vedação da figura do prefeito itinerante (STF. RE 637485), tem por finalidade evitar que grupos familiares perpetuem-se na chefia do Poder Executivo, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) assentado ser a inelegibilidade do §7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988 também extensível ao cônjuge, ainda que haja a dissolução conjugal, conforme expressamente declarado na Súmula Vinculante n. 18 da Corte Maior:
Súmula Vinculante 18. A dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no § 7º do artigo 14 da Constituição Federal. (Grifos nossos).
A Súmula Vinculante 18 e a decisão da Excelsa Corte (RE 637485) foram interpretadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tendo a Corte Maior Eleitoral firmado inteligência no sentido de que cônjuges e parentes de prefeito reeleito não são inelegíveis para o mesmo cargo em município vizinho, salvo se este resultar de desmembramento, de incorporação ou de fusão:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. REGISTRO DE CANDIDATURA. CÔNJUGE DE PREFEITO REELEITO EM MUNICÍPIO VIZINHO. CAUSA DE INELEGIBILIDADE REFLEXA POR PARENTESCO PREVISTA NO ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Recurso especial eleitoral interposto contra acórdão do TRE/AL que deferiu o pedido de registro de candidatura de Emanuella Corado Acioli de Moura ao cargo de Prefeita do Município de Barra de Santo Antônio/AL nas eleições de 2016.
2. No caso, a recorrida, Prefeita eleita em 2016, é cônjuge do Prefeito de Paripueira (município vizinho de Barra de Santo Antônio), que foi eleito em 2008 e reeleito em 2012. 3. A controvérsia consiste em saber se a inelegibilidade reflexa por parentesco, prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal, proíbe que cônjuge e parentes consanguíneos ou afins do chefe do Poder Executivo candidatem-se não apenas no “território de jurisdição do titular”, mas também em municípios vizinhos onde o titular exerça “influência política”. 4. O STF, sob o regime da repercussão geral, firmou o entendimento de que o art. 14, § 5º, da Constituição deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição torna inelegível para o cargo de chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da federação diverso (RE nº 637485, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 01.08.2012). (...). 5. Todavia, o entendimento do STF a respeito da inelegibilidade do “prefeito itinerante” não pode ser aplicado, automaticamente, ao caso de inelegibilidade reflexa. Em primeiro lugar, o precedente do STF conferiu interpretação ao art. 14, § 5º, da CF/88, enquanto que o caso em análise se fundamenta no art. 14, § 7º, da CF/88. Desse modo, não é possível aplicar, por simples analogia, as conclusões daquele precedente ao caso dos autos. 6. Em segundo lugar, o direito à elegibilidade é direito fundamental. Como resultado, de um lado, o intérprete deverá, sempre que possível, privilegiar a linha interpretativa que amplie o gozo de tal direito. De outro lado, as inelegibilidades devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não expressamente previstas pela norma. Precedentes. 7. Ademais, em relação à presente hipótese, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é no sentido de que o cônjuge e os parentes de prefeito reeleito não são inelegíveis para o mesmo cargo em outra circunscrição eleitoral, ainda que em município vizinho, desde que este não resulte de desmembramento, incorporação ou fusão realizada na legislatura imediatamente anterior ao pleito. Essa compreensão foi reafirmada para as eleições de 2016 no AgR-REspe nº 220-71/SE, Rel. Min. Luciana Lóssio, j. em 08.03.2017. Portanto, eventual revisão de jurisprudência não poderia ser aplicada ao caso em análise. 8. Como forma de privilegiar o direito à elegibilidade e em linha com a jurisprudência do TSE, entendo que, em regra, a vedação ao terceiro mandato consecutivo familiar, prevista no art. 14, § 7º, da CF/88, limita-se ao território de jurisdição do titular. Não cabe aplicar, por analogia, o entendimento do STF relativo à inelegibilidade do “prefeito itinerante” para impedir a candidatura, em outro município da federação, do cônjuge e dos parentes consanguíneos ou afins de chefe do Poder Executivo. 9. Recurso especial eleitoral a que se nega provimento. (TSE – RESPE Nº 19257 (BARRA DE SANTO ANTÔNIOAL), REL. MIN. LUÍS ROBERTO BARROSO, JULGADO EM 13.06.2019, DJE DE 12.08.2019). (Grifos e omissões nossos).
O entendimento interpretativo da Corte Magna Eleitoral se deu, em síntese, ao fundamento de que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em sede de repercussão geral no RE 637485, não pode ser aplicada automaticamente ao caso de inelegibilidade reflexa, na medida em que o firmado pela Excelsa Corte conferiu interpretação tão somente ao artigo 14, §5º, da Constituição Federal de 1988, não havendo manifestação sobre a regra estampada no §7º do artigo 14 da Lei Maior.
Daí que, em razão da decisão interpretativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a vedação ao terceiro mandato consecutivo familiar, prevista no art. 14, § 7º, da CF/88, limita-se ao território de jurisdição do titular, não sendo vedada a candidatura a eleição, em outro município da federação, do cônjuge e dos parentes consanguíneos ou afins de chefe do Poder Executivo.
O Tribunal Superior Eleitoral limitou a abrangência de decisão do Supremo Tribunal Federal.
Surge daí, outra situação: poderia outros órgãos do Poder Judiciário (como fez o Tribunal Superior Eleitoral – TSE) limitar decisões prolatadas em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), indaga-se.
Crê-se que não.
Os precedentes qualificados, como são as decisões proferidas em sede de repercussão geral e as súmulas vinculantes, são oponíveis a todos, vinculando a atuação de magistrados e tribunais, conforme disposições legais previstas no arcabouço jurídico brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 expressa que as súmulas vinculantes, a partir de sua publicação, terão efeitos erga omnes em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, somente podendo ser revisadas ou canceladas na forma prevista em lei:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Grifos nossos).
Regulamentando o artigo 103-A da Constituição Federal de 1988, a Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, expressamente declara que compete exclusivamente aos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a edição, a revisão e o cancelamento de súmula vinculativa:
Art. 1º Esta Lei disciplina a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal e dá outras providências.
(...)
§3º A edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula com efeito vinculante dependerão de decisão tomada por 2/3 (dois terços) dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária. (...). (Grifos e omissões nossos).
Em sede infraconstitucional, o Código de Processo Civil determina que juízes e tribunais observem obrigatoriamente os precedentes qualificados:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. (...). (Grifos e omissões nossos).
Tendo em mira as normatizações legais acima transcritas, possível afirmar que a interpretação limitativa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral (RESP N. 19257) aos entendimentos do Supremo Tribunal Federal (RE 637485 e SÚMULA VINCULANTE N. 18) não deve subsistir.
Não pode a Corte Maior Eleitoral limitar decisão qualificada.
As decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) - no julgamento do RE 637485 e com a edição da Súmula Vinculante 18 – são de observância obrigatória, não podendo qualquer juiz ou tribunal limitar seus alcances.
A decisão e o preceito vinculativo possuem objetivos claros no sentido de vedar a figura do “prefeito itinerante” e a candidatura de seus cônjuges ou parentes (por consanguinidade ou por adoção ou por afinidade), tudo com o fim de inibir a perpetuação no poder grupos políticos familiares.
Inexistia, portanto, qualquer necessidade de interpretação pelo Tribunal Superior Eleitoral – como fez no julgamento do RESP N. 19257 – dos precedentes qualificados irradiados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE 637485 e edição da Súmula vinculante 18.
Inadmissível, portanto, a interpretação limitativa dada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no julgamento do RESP N. 19257, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), externada no julgamento de repercussão geral do RE 637485 e edição da Súmula vinculante 18.
Com efeito, prevalecente a inteligência da Excelsa Corte de Justiça.
E se prevalecente, a toda evidência, a vedação firmada pela Excelsa Corte Brasileira (RE 637485) albergar também a inelegibilidade reflexa (art. 14, §7º, CF/88), ou seja, veda a sucessão de cônjuges e parentes do Chefe do Poder Executivo com o qual mantêm vínculos afetivos, no âmbito da circunscrição eleitoral ou fora dela.
As regras constitucionais dos §§ 5º e 7º do artigo 14 não podem ser analisadas separadamente.
A Excelsa Corte de Justiça Brasileira, em análise do §7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988 e em sede de repercussão geral (RE 637485), assentou ser absoluta a proibição de terceiro mandato do chefe do Poder Executivo ainda que em ente da Federação diverso. E, via da Súmula Vinculante 18, assinalou que a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no §7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988.
Tendo em vista a decisão qualificada e o contido no enunciado vinculativo, se o chefe do Poder Executivo não pode pleitear uma terceira eleição na circunscrição em que exerce seu mandato ou em qualquer outro ente da federação, não faz sentido permitir que seus cônjuges ou parentes possam candidatar-se a cargos eletivos em sucessão a ele, ainda que em circunscrição diversa.
Entender de forma diversa, com o devido respeito, é extrair do legislador constitucional o fundamento de edição dos §§ 5º e 7º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988, qual seja, de impossibilitar a perpetuação no poder de famílias, ainda que em locais diversos daqueles que exerceram anteriormente mandatos eletivos.