1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, também conhecida como “Pacote Anticrime”, que entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, buscou aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, promovendo alterações substanciais na Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). Essas mudanças incidiram, sobretudo, na questão da punibilidade.
Dentre as diversas modificações, neste breve artigo, o objetivo será analisar o art. 1º, parágrafo único, inciso II, deste diploma normativo, que classificou como crime hediondo a “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido”, previsto no artigo 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003.
Em resumo, a Lei nº 13.964/2019 passou a considerar como hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, revogando a antiga disposição que qualificava como hediondo o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito[1].
Essa inovação legislativa representa uma mudança significativa, que impactará diretamente inquéritos policiais, ações penais e processos em curso. A nosso ver, houve um abrandamento da repressão penal, uma vez que o número de armas classificadas como de uso proibido é consideravelmente menor do que o de armas de uso restrito.
Nesse sentido, destacamos que essa "hipotrofia" da tutela penal, em contradição com o objetivo almejado pelo “Pacote Anticrime”, decorre da adoção do sistema legal[2] de definição dos crimes hediondos.
Assim, de maneira geral, serão analisadas as consequências dessa mudança legislativa, bem como a falta de técnica do legislador pátrio ao redigir as alterações nos textos legais, especialmente em situações de pressa e falta de planejamento, como ocorreu com o polêmico “Pacote Anticrime”.
2. QUADRO COMPARATIVO – ANTES E DEPOIS DA LEI 13.964/2019
Abaixo, apresentamos um quadro comparativo para facilitar a visualização pelo leitor. Posteriormente, faremos uma análise crítica das principais mudanças legislativas relativas à tipificação como crime hediondo da posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, introduzidas pelo Pacote Anticrime – Lei nº 13.964/2019. Vejamos:
Antes da Lei 13.964/2019 |
Depois da Lei 13.964/2019 |
Art. 1º, Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16. da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados. (Redação dada pela Lei nº 13.497, de 2017) |
Art. 1º, Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) I – (...) II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16. da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) III – (...) IV – (...) V - (...) |
A seguir, analisaremos o art. 1º, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 8.072/90, com a redação conferida pela Lei nº 13.964/2019, em sua integralidade. Traremos comentários e críticas pertinentes, sem, contudo, a pretensão de esgotar o tema.
3. ANÁLISE - art. 1º, Parágrafo único, inciso II, da Lei 8.072/90
Vejamos o que dispõe o art. 1º, Parágrafo único, inciso II, da Lei 8.072/90, com a redação dada pelo Pacote Anticrime:
Art. 1º. (...).
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I – (...)
II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16. da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III – (...)
IV – (...)
Como já demostrado alhures, a Lei 8.072/90 foi alterada pela Lei nº 13.497/2017, a qual conferiu a natureza de hediondez ao crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, com a finalidade de oferecer uma resposta estatal mais efetiva a indivíduos que portavam armas com uma energia cinética maior.
Nesse raciocínio, a Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote “Anticrime”), com a finalidade de recrudescer o combate aos crimes previstos no art. 16. da Lei 10.826/03, queria incluir com a pecha da hediondez as armas de uso proibido.
Todavia, por falta de técnica legislativa ou quiçá descuido do legislador pátrio, houve a substituição da expressão uso restrito por uso proibido, com isso arrefecendo a tutela penal que se visava alcançar com o “pacote anticrime”.
Assim, em obediência ao sistema legal, dúvidas não adejam que será hediondo apenas o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido.
Para se entender a construção do conhecimento é necessário se valer das definições e classificações do Decreto 9.847 de 25 de junho de 2019, em especial das especificações constantes do Anexo I ao Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019, no ponto que faz a diferenciação de arma de fogo de uso restrito e uso proibido.
Conceito de arma: “artefato que tem por objetivo causar dano, permanente ou não, a seres vivos e coisas”.
Conceito de arma de fogo: “arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases, gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara, normalmente solidária a um cano, que tem a função de dar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil”.
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Conceito de arma de fogo de uso restrito 3 : são as automáticas, de qualquer tipo ou calibre, semiautomáticas ou de repetição que sejam não portáteis; de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; ou portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; (Incluído pelo Decreto nº 10.627, de 2021)
Conceito de arma de fogo de uso proibido 4 : são aquelas classificadas como de uso proibido em acordos ou tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária; (Incluído pelo Decreto nº 10.627, de 2021), bem como aquelas dissimuladas, com aparência de objetos inofensivos.
Assim, hodiernamente, para haver subsunção no tocante a hediondez do art. 16. da Lei 10.826/03 c/c art. 1º, Parágrafo único, inciso II, da Lei 8.072/90, o agente deveria ser surpreendido em sua posse ou portando a famosa caneta de James Bond, agente secreto da saga 007, o qual, na verdade, se tratava de uma arma de fogo dissimulada em forma de caneta.
Retroatividade da Lei penal mais benéfica
Como visto, na redação anterior da Lei 8.072/90, considerava-se delito hediondo a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16. da Lei nº 10.826. Após a mudança legislativa, passou-se a considerar delito hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido. Nesse passo, vale lembrar que o Estatuto do Desarmamento prevê sanções diversas para as condutas de portar/possuir armas de fogo de uso restrito e proibido.
A mudança legal apontada, que substituiu o adjetivo restrito por proibido, trata-se de evidente lei penal mais benéfica, eis que passou a considerar crime hediondo somente a conduta de possuir/portar arma de fogo de uso proibido, de modo que não se pode interpretar que as armas de uso restrito se trata de crime de natureza hedionda.
Portanto, na linha do que defende Renato Brasileiro, ante a nova redação conferida à Lei dos Crimes Hediondos, de acordo com o critério legal para definição de crime hediondo, é possível concluir que a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, prevista no caput do art. 16. da Lei n. 10.826/03, com redação dada pela Lei n. 13.964/19, não são mais considerados hediondos, funcionando o Pacote Anticrime, nesse ponto, como verdadeira novatio legis in mellius, daí por que o novo regramento deve retroagir em benefício de tais condenados.
A incongruência legislativa – falta de tecnicismo na elaboração das leis penais.
De acordo com Nader5,
“[...] a formulação do Direito escrito pressupõe conteúdo e forma: o primeiro diz respeito a um composto normativo, cientificamente estudado, e o segundo trata da técnica a ser aplicada na construção do texto, de modo que este traduza as expressões exatas mediante o uso correto das palavras e expressões que o compõem.”
Por sua vez, por técnica legislativa entende-se o emprego de fórmulas e métodos destinados a melhorar a qualidade da estruturação e da sistematização dos instrumentos normativos, assim como o uso da linguagem, o que pode ser identificado através dos princípios a ela aplicados, quais sejam: o da generalidade, o da clareza, o da precisão, o da unidade de objeto e o da logicidade6.
Nesse sentido, veja-se que um dos aspectos que exige atenção especial quando da redação das disposições legais (e aqui se fala em lei penal) é a precisão.
Ocorre que não raras vezes os magistrados, especialmente nos tribunais superiores, em um esforço de interpretação, conferem sentido a textos confusos, contraditórios e lacunosos. O art. 1º, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 8072/90, como visto, é um exemplo disso, porquanto peca pela falta de técnica legislativa, na medida que não se tem a precisa compreensão do sentido da norma, de modo que o seu alcance caberá mais uma vez ao intérprete fazê-lo, justamente o que propusemos no presente trabalho.
Essa reflexão decorre do fato de que o legislador – e no caso brasileiro isso é patente – acaba criando leis, seja pela força política, seja pela pressão da mídia, sem que se tenha um estudo prévio de sua racionalidade, o que acaba gerando um sério problema aos aplicadores do direito diante dos casos concretos que lhes são colocados para solução.
Em verdade, as leis penais brasileiras são sinônimo de “legislação simbólica”, cuja concretização normativa é deficiente7.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, conclui-se que a alteração promovida pelo Pacote “Anticrime” e analisada ao longo deste texto apresenta aspectos positivos, apesar das críticas anteriormente destacadas, seja pela ausência de técnica legislativa, seja pela celeridade na aprovação do pacote, que acabou conferindo-lhe características de direito penal promocional e emergencial. Ainda assim, a modificação legislativa demonstra alinhamento com o objetivo da lei, especialmente no que se refere ao endurecimento da legislação penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada, volume único, 7. Ed. Salvador: JusPODIVM;
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999;
MARROQUIM, F. M. de C. Breves notas sobre técnica legislativa. Textos Brasileiros.
HOMMERDING, Adalberto Narciso; LYRA, José Francisco da Costa. Racionalidade das leis penais e legislação penal simbólica .1. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 20
Notas
1 Art. 1º, Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16. da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados. (Redação dada pela Lei nº 13.497, de 2017)
2 O critério adotado pela legislação brasileira para rotular determinada conduta como hedionda é o sistema legal. De modo a saber se uma infração penal é (ou não) hedionda, incumbe ao operador tão somente ficar atento ao teor do art. 1º da Lei 8.072/90 (...). Lima, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada, volume único, 7. Ed. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 203
3 Art. 3º, parágrafo único, inciso II, alíneas a, b e c, Anexo I ao Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019
4 Art. 3º, parágrafo único, inciso III, alíneas a e b, Anexo I ao Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019
5 2 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999 p. 275-87.
6 MARROQUIM, F. M. de C. Breves notas sobre técnica legislativa. Textos Brasileiros. Disponível em: <https://www.brasilbrasileiro.pro.br/fabio.pdf >. Acesso em: 12 jul. 2022.
7 HOMMERDING, Adalberto Narciso; LYRA, José Francisco da Costa. Racionalidade das leis penais e legislação penal simbólica .1. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2014.