Carlos Roberto Claro1
02 março 2023
Estabelece o art. 82-A da Lei 11.101/05, em síntese, que é vedada a extensão da falência e de seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada2, aos controladores e aos administradores da entidade falida, admitida a desconsideração da personalidade jurídica (CPC, art. 133).
Consoante parágrafo único, a desconsideração, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação do agente econômico, será decretada pelo juízo universal, observadas as regras do Código Civil e Código de Processo Civil.
Em primeiro lugar, de fato, não há falência de pessoa física no Brasil, e sim insolvência3. Em segundo, em havendo incidente de desconsideração, com a procedência do pedido, os sócios ou acionistas de entidade falida poderão ser responsabilizados4. Em terceiro, esta responsabilização nada tem a ver com extensão da falência e seus efeitos jurídico-econômico em relação às pessoas físicas. Em quarto, não se olvide que uma pessoa jurídica pode ser acionista ou sócia de outra. Em sendo esta falida, a situação é inalterada, ou seja, a lei veda a extensão da falência, podendo haver a desconsideração. Em quinto, pode ocorrer a desconsideração indireta em relação a outras pessoas jurídicas.
Instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o pedido pode ser julgado procedente, a fim de responsabilizar sócio ou acionista pelas obrigações da entidade falida, ocorrendo, por conseguinte, a constrição sobre bens pessoais. Acerca da responsabilidade patrimonial, assim disserta Nelson Abrão: Não cumprindo o devedor, espontaneamente, a obrigação, cria-se o poder coativo do credor sobre o seu patrimônio5.
Cuida a hipótese tratada neste ensaio da situação em que envolve bem de família (Lei 8.009/90). Estabelece o art. 3º do texto legal que a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, dentre outras hipóteses ali elencadas. Os incisos do dispositivo apresentam as exceções à impenhorabilidade de bem.
Subsiste a impenhorabilidade sobre imóvel residencial, decorrente de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estando no polo passivo sócio ou acionista de pessoa jurídica sob regime falimentar.
Não obstante o direito patrimonial do universo de credores em sede de falência, é colocado em degrau superior a segurança da família (direito [social] à moradia e vida digna - Constituição Federal, art. 6º), sem descuidar do próprio princípio da dignidade da pessoa humana6, colocado em degrau superior em relação aos demais.
Assim decidiu o e. Tribunal de Justiça de São Paulo:
FALÊNCIA. Sócios da falida que entregaram em caução, na fase de concordata preventiva, imóvel que serve de residência à família. Decisão que indefere pedido de reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família. Indeferimento reformado. Lei 8009/90. Caso concreto que não se amolda perfeitamente à exceção prevista no inciso V do art. 3º.
Interpretação restritiva da regra de exceção. Impossibilidade de renúncia. Matéria de ordem pública, cognoscível a qualquer tempo e grau de jurisdição. Direito patrimonial dos credores da falida que não supera o direito constitucional dos sócios à moradia e à dignidade. Caução, por fim, que foi prestada apenas pelo sócio-varão, sem outorga uxória.
Recurso provido7
Ainda,
Agravo Falência Arrecadação de bem imóvel de sócio - Alegação de impenhorabilidade (Lei 8.009/90) Mandado de constatação em que se certificou que a chácara não teria sinais de habitação diária, conforme informação obtida pelo oficial de justiça de vizinho que é desafeto do agravante Necessidade de realização de outra diligência para constatação da efetiva caracterização de bem de família Provimento, em parte, para anular a decisão e determinar que se realize outra constatação pelo oficial de justiça, antes de se decidir a respeito da liberação do imóvel dos efeitos da falência8
Por fim, assim decidiu a 19ª Câmara Cível do e. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
AGRAVO INTERNO CONTRA DECISÃO ASSIM EMENTADA: AGRAVO. FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE E DESVIRTUAMENTO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL. PRECEDENTES DO STJ. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo alcançar o patrimônio dos sócios-administradores que se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos, nos termos do que dispõe o art. 50 do Código Civil: comprovação do abuso da personalidade jurídica mediante desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, em detrimento do interesse da própria sociedade e/ou com prejuízos a terceiros. Tal incidente requer cautela e zelo para o seu deferimento, havendo necessidade de que seja apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social, com proveito ilícito dos sócios. No caso, a fundamentação para a desconsideração da pessoa jurídica está ancorada em abuso da personalidade e no desvirtuamento da autonomia patrimonial de acordo com as provas e os documentos carreados ao processo, indicativos de que houve transferência do patrimônio da falida para empresas sucessoras, dentro do período suspeito, o que sugere, ao menos em tese, o intuito de prejudicar os credores. De outro lado, o passivo da falida já atingiu o montante de 17 milhões de reais e portanto, o patrimônio da massa não seria suficiente para o pagamento dos débitos. Diante de tal panorama fático, impõe-se a manutenção da decisão agravada.
RECURSO DESPROVIDO NOS TERMOS DO ART. 932, VIII DO CPC DE 2015 C/C ART, 31, VIII, B, DO RITJERJ. Ao contrário dos sustentado neste agravo interno, há indícios mais do que suficientes de confusão patrimonial entre empresas do grupo de pessoas da mesma família. As razões do agravo interno são meras reiterações dos pontos já antes trazidos e devidamente enfrentados na decisão recorrida. Apenas no que toca à arrecadação do imóvel destinado à residência dos agravantes, cabe acolher o recurso. O bem de família, tal como estabelecido pela Lei 8.009/90, é impenhorável e não responde por qualquer tipo de dívida, civil, comercial, fiscal ou previdenciária, salvo as que se ajustarem às exceções previstas no art. 3º da referida lei, o que não é o caso. Trata-se de norma de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição. Para a configuração do bem de família, não há exigência de que o imóvel objeto de constrição seja o único pertencente à entidade
familiar protegida, desde que demonstrado que é efetivamente destinado à residência da família. Pela análise dos documentos de fls. 122/153 do Anexo 1, verifica-se a existência de diversas faturas de energia elétrica, assinatura de jornal, telefone fixo e tv por assinatura em nome dos agravantes, que demonstram o estabelecimento de moradia permanente no imóvel. Destarte, resta caracterizado o bem de família, que também inclui a hipótese do sócio que institui sua residência em imóvel registrado no nome da pessoa jurídica, conforme precedentes do STJ9
Destarte, não obstante o direito patrimonial do universo de credores - que fazem parte da massa falida subjetiva no processo falimentar -, mesmo havendo decisão julgando procedente o pedido de desconsideração da personalidade, a fim de atingir patrimônio pessoal de sócio ou acionista, a jurisprudência pátria tem decidido pela impossibilidade de constrição sobre bem de família, a teor da Lei 8.009/90. O entendimento jurisprudencial se nos parece mais correto e consentâneo com os ditames traçados a partir de 1988, considerando os princípios constitucionais, principalmente, o da dignidade da pessoa humana, inexoravelmente colocado em degrau superior.
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Advogado desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná (2013-2023); Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.
Aplica também a outros tipos societários, como sociedade anônima.︎
Até o momento, inexiste possibilidade de reestruturação/recuperação de pessoa física e a insolvência civil ainda está prevista no Código de Processo Civil de 1973 (art. 748), sendo que o atual diploma legal processual não contém qualquer dispositivo acerca da insolvência, estabelecendo o art. 1.052 que permanecem em vigor os ab-rogados enunciados de 1973, no tocante à “falência” do devedor insolvente.︎
Observe-se o art. 790, inc. II, do Código de Processo Civil.︎
Da ação revocatória. 2ª edição. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997, p. 15.︎
Constituição Federal, art. 1º, inc. III, art. 170, caput e 226. Sobre o tema: CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009. Desta obra, fiz constar: Conforme Immanuel Kant (1980 apud SARLET, 2006b), quando a coisa tem preço, outro pode ser equivalente, mas quando não se pode mensurar, quando a coisa está acima de todo e qualquer preço, aí estar-se-á inexoravelmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se encontra num degrau bem superior em relação aos demais princípios constantes do catálogo constitucional brasileiro. Op. cit., p. 33.︎
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TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2177597-34.2014.8.26.0000, rel. Des. Teixeira Leite, julg. 10/06/2015. Consta do v. acórdão: A natureza do instituto impede, também, a renúncia, não devendo o interesse patrimonial dos credores da falida superar os direitos à moradia e à dignidade da pessoa humana, garantidos constitucionalmente aos agravantes, seus sócios.︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Agravo de Instrumento n. 2022124-21.2015.8.26.0000, relator Des. Ênio Santarelli Zuliani, julg. 10/06/2015.︎
Agravo Interno no Agravo n. 0033165-77.2016.8.19.0000, relator Des. Ferdinando Nascimento, julg. 22/08/2017. Quanto a impenhorabilidade, consta do v. acórdão: Trata-se de norma de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição, de cunho eminentemente social e humanitário, que tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e a sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia. O interesse tutelado pelo ordenamento jurídico não é do devedor, mas da entidade familiar, que detém estatura constitucional (arts. 6º c/c 226 CRFB). Observe-se o seguinte fragmento, constante do v. acórdão proferido no REsp. n. 1433636/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma do STJ, julg. 02/10/2014: a determinação judicial de que, mediante desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida, fossem arrecadados bens protegidos pela Lei n. 8.009/1990 traduz-se em responsabilização não apenas dos sócios pelo insucesso da empresa, mas da própria entidade familiar, que deve contar com especial proteção do Estado por imperativo constitucional (art.226, caput).︎