Parquet: será que ele se deu conta de seu papel na CF88?

03/03/2023 às 15:11
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O Ministério Público, por meio de jurisprudência econômica, tem deixado de patrocinar diversas causas sociais, a despeito de ser o defensor da ordem jurídica por força de preceito constitucional.

Palavras-chave: Direito Constitucional. MINISTÉRIO PÚBLICO. Função institucional. competência. DEFESA DA ORDEM JURÍDICA.
 

Um dos dispositivos mais nobres e inovadores da atual Constituição reside no artigo 127, segundo o qual o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Por sua vez, a Constituição do Estado de São Paulo possui redação idêntica1.

Segundo já antiga lição do professor Hugo Nigro Mazzilli2,


Num sentido lato, portanto, até o interesse individual, se indisponível, é interesse público, cujo zelo é cometido ao Ministério Público (CR, art. 127); a defesa do próprio interesse coletivo também pode coincidir com o zelo do interesse público empreendido pela instituição (CR, art. 129, III) (…) O novo texto constitucional menciona a defesa da ordem jurídica como objetivo da atuação ministerial (art. 127). Há muito consagrado o Ministério Público como instituição fiscal da lei, essa sua destinação constitucional deve ser compreendida à luz dos demais dispositivos da Lei Maior que disciplinam sua atividade, e, em especial, à luz de sua própria finalidade tuitiva de interesses sociais e individuais indisponíveis. Além disso, não se pode olvidar que o art. 129, IX, lhe veda exercer outras funções que não sejam compatíveis com sua finalidade, como, por exemplo, a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. (g. n.)


 

Da mesma forma salienta a professora Nathalia Masson, quando aduz que3


A Constituição da República de 1988 dispensou ao Ministério Público tratamento especial, colocando-o a salvo dos demais Poderes e assegurando à instituição e aos seus membros autonomia e independência na busca da realização dos interesses da sociedade. Fortaleceu-o institucionalmente para oportunizar a efetivação dos elevados fins que caracterizam a destinação constitucional dessa importantíssima instituição da República, a quem compete defender a ordem jurídica, proteger o regime democrático e zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis. (g. n.)


 

Portanto, uma das principais funções do Ministério Público reside na defesa da ordem jurídica, o que abarca um amplo campo de atuação, desde que não exerça a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas, atribuição própria da Advocacia Pública.

Nada obstante, no Estado de São Paulo, temos visto na prática alguns órgão de execução4 da instituição ministerial invocarem regularmente a Súmula n. 7 do Conselho Superior para deixarem de exercer sua função constitucional. Eis os seus termos5:


O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos de consumidores ou de outros, entendidos como tais os de origem comum, nos termos do art. 81, III, c/c o art. 82, I, do CDC, aplicáveis estes últimos a toda e qualquer ação civil pública, nos termos do art. 21 da Lei nº 7.347/85 (LACP), que tenham relevância social, podendo esta decorrer, exemplificativamente, da natureza do interesse ou direito pleiteado, da considerável dispersão de lesados, da condição dos lesados, da necessidade de garantia de acesso à Justiça, da conveniência de se evitar inúmeras ações individuais, e/ou de outros motivos relevantes.


 

Ademais, em seu fundamento, o enunciado sumular consagra a ideia de que o Ministério Público tem legitimidade para tutelar interesses individuais homogêneos, assim entendidos aqueles de natureza divisível pertencentes a titulares determináveis e que tenham entre si um vínculo fático decorrente de sua origem comum (art. 81, parágrafo único, III, CDC). Nesses casos, considerada sua relevância social (decorrente, por exemplo, da natureza do interesse, da considerável dispersão ou condição dos lesados, da necessidade de garantia de acesso à Justiça, da conveniência de se evitar inúmeras ações individuais) são aplicáveis os instrumentos legais de tutela coletiva (e.g. inquérito civil, ação civil pública) – art. 81, parágrafo único, III e art. 83, CDC; art. 21, Lei nº 7.347/85. É o caso da tutela dos interesses individuais homogêneos dos consumidores (contratos bancários, consórcios, seguros, planos de saúde, TV por assinatura, serviços telefônicos, compra e venda de imóveis, mensalidades escolares, serviços de internet, etc.) e de quaisquer outros que reúnam as características acima apontadas.

Sem embargo, qual seria a definição do conceito jurídico indeterminado “relevância social”?

Nessa senda, a própria súmula enumera algumas situações que podem ser consideradas de relevância social: natureza do interesse ou direito pleiteado, da considerável dispersão de lesados, da condição dos lesados, da necessidade de garantia de acesso à Justiça, da conveniência de se evitar inúmeras ações individuais, e/ou de outros motivos relevantes.

O Supremo Tribunal Federal, no informativo n. 955, asseverou que “o Ministério Público tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Com essa tese de repercussão geral (Tema 850), o Plenário negou provimento a recurso extraordinário interposto pela Caixa Econômica Federal. Na origem, o parquet federal ajuizou ação civil pública que visa ao tratamento unificado ou à unificação das contas vinculadas ao FGTS pertencentes a empregado que possui mais de um vínculo laboral. Ao prover parcialmente embargos infringentes, o tribunal a quo aduziu estar caracterizado direito individual homogêneo com forte conotação social.

No caso em apreço, o FGTS, de interesse “meramente” econômico do trabalhador, foi considerado de relevante valor social para fins de ajuizamento da ação coletiva.

Portanto, a solução de eventual dúvida sobre a importância do direito lesado amanhece no convencimento do membro do Parquet, que pode entendê-la enquadrável ou não nos exemplos acima citados.

Contudo, o entendimento dos órgãos de execução não pode amesquinhar o preceito constitucional, sob pena da vontade dos agentes públicos se tornar maior que a vontade do constituinte originário, o que consagraria verdadeira revolução da criatura contra o criador.

No ponto, brilhante observação do professor Marcelo Novelino, para quem6


Os interesses sociais, nos quais se incluem os interesses difusos e coletivos, são os que possuem relevância para a sociedade em geral. A atuação, nesse caso, não pressupõe a indisponibilidade de cada uma das parcelas que integram o interesse defendido, razão pela qual é legítima a defesa, pelo Ministério Público, "de interesses individuais, ainda que não sejam indisponíveis, desde que seja divisado um interesse social em sua tutela" (GARCIA, 2005). A legitimidade do Ministério Público para atuar na defesa dos interesses individuais indisponíveis persiste mesmo quando a ação visa à tutela de pessoa individualmente considerada, estando consubstanciada em uma norma autoaplicável, inclusive no que se refere à legitimação para atuar em juízo. Portanto, os interesses individuais disponíveis somente podem ser tutelados pelo Ministério Público no âmbito coletivo, ao passo que a defesa dos indisponíveis pode se dar tanto no âmbito individual (CF, art. 127) quanto no coletivo (CF, art. 129, III). (g. n.)

 

Com efeito, a própria Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, em seu artigo 41, inciso V, garante aos membros do órgão a prerrogativa, no exercício da função, de gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional.

Dessa forma, temos que a liberdade funcional não é absoluta, devendo ser exercida nos limites da independência funcional.

De acordo com o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello7:


As Comissões Parlamentares de Inquérito, à semelhança do que ocorre com qualquer outro órgão do Estado ou com qualquer dos demais poderes da República, submetem-se, no exercício de suas prerrogativas institucionais, às limitações impostas pela autoridade suprema da Constituição. (MS n. 30.906-DF)

 

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Por conseguinte, por mais brilhante e gabaritado que seja o órgão ministerial, sua independência funcional deve atenção à autoridade suprema da Constituição da República, sob pena de abuso de poder.

Conforme já dizia o saudoso e magnífico Hely Lopes Meirelles8,


A responsabilidade pelos atos discricionários não é nem maior nem menor que a decorrente dos atos vinculados. Ambos representam facetas da atividade administrativa, que todo homem público, que toda autoridade, há de perlustrar. A timidez da autoridade é tão prejudicial quanto o abuso de poder. Ambos são deficiências do administrador, que sempre redundam em prejuízo para a Administração. O tímido falha, no administrar os negócios que contrariem os interesses particulares; o prepotente não tem moderação para usar do poder nos justos limites que a lei lhe confere. Um peca por omissão; outro, por demasia no exercício do poder. (g. n.)

 

Nesse diapasão, a Lei Maior prescreve ser um dever do Ministério Público a defesa da jurídica, e não mera faculdade, passível de tergiversação.

Com efeito, conforme obtempera o Ministro da Suprema Corte Luís Roberto Barroso9:


O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.

 

De semelhante maneira, o professor Pedro Lenza enfatiza que o princípio da máxima efetividade10:


Também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social.

 

Além disso, podemos constatar que a nenhum outro órgão constitucional foi atribuída a função de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Por exemplo, a Defensoria Pública atua seguramente apenas quando houverem “necessitados”, na maioria das situações pessoas hipossuficientes, conforme o artigo 134 da Constituição de Outubro. De seu turno, a Advocacia Pública labora na representação judicial e extrajudicial dos entes públicos, além das atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo e das unidades federadas (CF, arts. 131 e 132).

Ademais, o inquérito civil é de uso exclusivo do Ministério Público, que será seu presidente, conforme o artigo 8º, § 1º, da Lei Federal n. 7.347 de 198511.

Nessa esteira, conforme os ensinamentos do Ministro do Tribunal Constitucional Alexandre de Moraes12,


A Constituição Federal de 1988 ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal com a titularidade exclusiva da ação penal pública quanto no campo cível como fiscal dos demais Poderes Públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a titularidade do inquérito civil e da ação civil pública. (g. n.)

 

Assim, sendo função precípua da instituição a defesa da ordem jurídica, não pode ela abrir mão de sua competência, sob pena de falência e subversão do sistema constitucional, deixando a sociedade sem seu defensor natural.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª Ed. - São Paulo: Saraiva, 2020.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26ª Ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.

MASSON, Nathália. Manuel de Direito Constitucional. 8ª Ed. - Salvador: Juspodivm, 2020.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª Ed. - São Paulo: Malheiros, 2020.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª Ed. - São Paulo: Atlas, 2020.

NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 16ª Ed. - Salvador: Juspodivm, 2021.


 

1 Artigo 91 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

2 Manual do Promotor de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991, pág. 80/81.

3 Manuel de Direito Constitucional. 8ª Ed. - Salvador: Juspodivm, 2020, Pág. 1354.

4 Artigo 7º da Lei Federal n. 8.625 de 1993: São órgãos de execução do Ministério Público: I – o Procurador-Geral de Justiça; II – o Conselho Superior do Ministério Público; III – os Procuradores de Justiça; IV – os Promotores de Justiça.

5 Disponível em: https://biblioteca.mpsp.mp.br//PHL_IMG/CSMP/S%C3%BAmula%20CSMP-Consolidada.pdf Acesso em: 2/3/2023.

6 Curso de Direito Constitucional. 16ª Ed. - Salvador: Juspodivm, 2021, Pág. 833/834.

7 Curso de Direito Constitucional. 16ª Ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pág. 1.651.

8 Direito Administrativo Brasileiro. 44ª Ed. - São Paulo: Malheiros, 2020, pág. 171.

9 Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª Ed. - São Paulo: Saraiva, 2020, pág. 301.

10 Direito Constitucional. 26ª Ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022, pág. 352.

11 O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.

12 Direito Constitucional. 36º Ed. - São Paulo: Atlas, 2020, pág. 1.125.

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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