O uso da Internet como chupeta e o problema do abandono digital

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Segundo Fiorelli e Mangini, a internet é, metaforicamente, a estação rodoviária virtual, em que o navegante, o internauta, livre de limitações geográficas experimenta as seduções da rede mundial, viajando pelas informações que lhe são disponibilizadas. Este universo de possibilidades se encontra acessível a todos, inclusive aos que são referidos como “malandros do cyber-espaço”: pessoas mal-intencionadas, que se valem das ferramentas tecnológicas para pôr em prática atividades que, normalmente, são exploradas em espaços públicos, como rodoviárias, envolvendo, por exemplo, drogas, sexo, dinheiro, dentre outras. Contudo, diferenciam-se em dois aspectos: o primeiro é que, cada dia mais, a Internet é visitada por crianças e adolescentes, sem acompanhamento de seus responsáveis, e que, por inexperiência e imaturidade, são mais vulneráveis às investidas dos “cyber-malandros”; além disso, os males das rodoviárias confinam-se nas localidades próximas, ao passo que as mazelas da internet não têm limite geográfico (2016, p. 316-317).

A verdade é que a Internet, ao mesmo tempo que indissociável de nossas vidas, pois inimaginável um contexto em que inexistam smartphones, notebooks, tablets, e demais aparelhos eletrônicos que permitem acesso a ela, é território perigoso para os chamados “nativos digitais” (PALFREY; GASSER, 2011), ou “geração net” (GONÇALVES, 2015), nascidos na era das tecnologias, e que desde cedo são introduzidos a elas.

Em experimento (BARRA, 2004) envolvendo crianças e a Internet, concluiu-se que o estágio de desenvolvimento em que se encontram não é obstáculo ao uso da Internet; a despeito, as crianças mais novas, de pouca idade, são ativos e competentes utilizadores dela. Ademais, constatou-se que a rede mundial de computadores se revela lenta para os pequenos, fazendo com que se aprofundem, cada vez mais, em seu uso, em busca de estímulos satisfatórios.

Alguns pais e demais responsáveis se aproveitam da aptidão e profundo interesse dos seus pelo mundo virtual, usando dele para entretê-los e distraí-los; pode-se dizer que, em muitos lares, a Internet se tornou uma eficaz substituta da chupeta.

Ocorre que naquele mesmo experimento se chegou a uma conclusão preocupante: “as crianças não procuram, na maior parte das vezes, os sites infantis” (Ibid, p. 66), explorando os mesmos locais da rede que “cyber-malandros”, e, até mesmo, que “cyber-criminosos”.

Deste contexto emerge a problemática do abandono digital, que, segundo Ghelman (2021), é caracterizado pela negligência dos pais com relação à segurança dos filhos no ambiente virtual.

Voltando à metáfora inicial, se não é prudente a uma criança sair de casa sem supervisão de um responsável, para ir à rodoviária, o mesmo deve ser dito sobre deixá-la à própria sorte, navegando sozinha na Internet, e suscetível à interação com estranhos que possuem as mais variadas intenções.

Trata-se de uma das perspectivas do princípio constitucional do cuidado com as crianças e adolescentes, previsto no art. 227, da CF, que estabelece ser dever da família, destacando-se os pais e demais responsáveis, colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

No plano infraconstitucional, o dever de cuidado em ambiente virtual, para se evitar o abandono digital, encontra-se previsto no art. 29, da Lei 16.965/2014, melhor conhecida como Marco Civil da Internet:

Art. 29. O usuário terá a opção de livre escolha na utilização de programa de computador em seu terminal para exercício do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores, desde que respeitados os princípios desta Lei e da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2014).

A responsabilização por abandono digital variará conforme a esfera de violação dos direitos da criança e do adolescente, podendo ser civil, criminal ou administrativa, de acordo com a casuística, e a intensidade da lesão ao bem jurídico. Entretanto, é certo que ele deve ser, de todo modo, evitado, preservando-se a integridade física, emocional e sexual daqueles que estão em desenvolvimento.

Nota-se que a tarefa da parentalidade no universo digital não é das mais simples (TEIXEIRA; MEDON, 2020), em especial porque os “nativos digitais”, a “geração net”, fazem do mundo virtual seu mundo, das redes sociais sua comunidade, dos jogos virtuais seu passatempo. Em síntese, permanecem mais conectados ao mundo virtual do que ao mundo real, não havendo outra alternativa, aos incumbidos de lhes garantir o cuidado devido, adequar-se à realidade trazida pelas novas tecnologias.

REFERÊNCIA

BARRA, Sandra Marlene Mendes. Infância e internet - interacções na rede. Sociedades contemporâneas, reflexividade e acção: População, Gerações e Ciclos de Vida, Braga, ano V, p. 63-68, 2004. V Congresso Português de Sociologia. Disponível em: https://associacaoportuguesasociologia.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628eddb83d72_1.pdf. Acesso em: 26 set. 2022.

BRASIL. Constituição Federal (1988). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

BRASIL. Marco Civil da Internet (2014). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia Jurídica, 7. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

GHELMAN, Débora. Abandono digital é negligência e pode levar à punição dos pais. Migalhas, Ribeirão Preto, 5 jan. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/338538/abandono-digital-e-negligencia-e-pode-levar-a-punicao-dos-pais. Acesso em: 2 out. 2022.

GONÇALVES, Marta Sofia Andrade. Controlo e supervisão parental na internet: o caso dos pré-adolescentes. Orientador: Professor Dr. Pedro Quelhas Brito. 2015. 95 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Economia do Porto, Porto, 2015. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/79353/2/35491.pdf. Acesso em: 27 set. 2022.

PALFREY, John; GASSER, Urs. Trad. Magda França Lopes. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração dos nativos digitais. Porto Alegre: Artmed, 2011.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Felipe. Pandemia, telas, crianças e home office: uma combinação que põe em xeque a proteção dos dados pessoais das crianças na quarentena. Migalhas, Ribeirão Preto, 7 mai. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/326241/pandemia--telas--criancas-e-home-office--uma-combinacao-que-poe-em-xeque-a-protecao-dos-dados-pessoais-das-criancas-na-quarentena. Acesso em: 2 out. 2022.

Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

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