A Lei 8.666/93. Algumas anotações

10/03/2023 às 15:44
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Carlos Roberto Claro1

10/03/2023

A Constituição Federal do Brasil, ao dispor acerca da Administração Pública, direta ou indireta, de qualquer dos poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com todas as palavras estabeleceu a obrigatoriedade de submissão à licitação pública nas hipóteses previstas em seu art. 37, inciso XXI2.

A razão desta determinação está implicitamente ligada a dois princípios deveras importantes, aos quais se submete a Administração Pública, isto, é, os princípios da moralidade e da igualdade3.

Pelo primeiro princípio, a Carta Federal exige que administradores públicos tenham conduta honesta e proba, em estrita consonância com o interesse público, afastando possibilidade de o agente se utilizar do cargo que para beneficiar esta ou aquela pessoa, de acordo com sua conveniência e interesse pessoal.

O Princípio da Igualdade, aplicado às licitações públicas, visa a oportunizar, a qualquer pessoa que pretenda contratar com o Poder Público, igualdade de condições, dentro dos critérios definidos pela Administração Pública, dando ensejo a que a entidade selecione a proposta que se lhe apresente mais vantajosa.

Hely Lopes Meirelles dispõe que a

licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculares para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos4

Em sendo inequívoco procedimento administrativo, a licitação se sujeita a uma série de atos estritamente formais, finalizados com a adjudicação do objeto do procedimento ao vencedor. O edital, se traduzindo na pedra angular da licitação, há de conter todas as diretrizes a serem seguidas por aqueles que se pretendam habilitar a participar da seleção. Havendo pontos omissos ocorrerá regência supletiva da Lei nº 8.666/93.

O licitante deverá preencher necessária e rigorosamente todos os requisitos de habilitação previstos no edital. Na Lei n.º 8.666/93 há a obrigatoriedade da fase procedimental de habilitação dos interessados em contratar com a Administração Pública, visando-se a garantir ao Poder Público a efetiva avaliação em relação à reunião, pelos eventuais contratados, das condições mínimas exigidas para a execução do objeto contratual.

Destarte, busca-se preservar a segurança jurídica do instrumento e estabilidade nas futuras relações, na medida em que considerada previamente a capacitação jurídica e técnica do licitante interessado, bem como sua idoneidade moral e econômico-financeira.

Os requisitos a serem observados pela Administração foram elencados no art. 27 da Lei de Licitações:

Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:

I - habilitação jurídica;

II - qualificação técnica;

III - qualificação econômico-financeira;

IV - regularidade fiscal e trabalhista;

V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7° da Constituição Federal.

Tratando-se, pois, de procedimento que visa a efetiva avaliação do interessado, no que diz com sua idoneidade e capacidade de assumir obrigações contratuais perante a Administração Pública em a execução do objeto por esta almejado, é de se ponderar que se trata, pois, de uma fase que poder-se-ia denominar de pré-contratual, sendo de somenos importância se o ajuste decorrerá de processo licitatório ou de sua dispensa ou mesmo inexigibilidade.

Destarte, qualquer que seja o procedimento administrativo a ser adotado para a conclusão de uma avença, a Administração Pública não poderá, via de regra, dispensar a fase de habilitação, sob pena de nulidade do procedimento.

Certamente que a exigência de comprovação de regularidade fiscal do licitante interessado se traduz em importante requisito.

O e. Supremo Tribunal Federal firmou posição no sentido de que a irregularidade fiscal não pode impedir o exercício de atividades empresariais5.

Isso não significa que a regularidade fiscal não possa ser exigida em procedimentos licitatórios, considerando que a limitação a que uma pessoa jurídica participe de uma licitação, em face de sua irregularidade com a Fazenda, não acarreta a inviabilização do exercício de sua atividade empresarial6.

Hely Lopes Meirelles assevera que:

Regularidade fiscal, como indica o próprio nome, é o atendimento das exigências do Fisco (quitação ou discussão dos tributos pelo contribuinte). Essa regularidade refere-se não só à inscrição no cadastro de contribuintes federal (CPF ou CGC), como também nos cadastros estadual e municipal, se houver, relativos ao domicílio ou sede do licitante. No caso de cadastro municipal, a inscrição refere-se ao imposto sobre serviços, motivo pelo qual a lei exige que deve ser pertinente ao ramo de atividade do licitante e compatível com o objeto contratual7

A lei em comento, visando à celeridade e desburocratização de determinados atos (contratos) administrativos, previu certas exceções à regra, no §1º do art. 32:

Art. 32 (...)

§1º A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão

A doutrina nacional é no sentido de que há indisfarçável equívoco na lei em análise, quando facultou a dispensa integral da documentação elencada nos artigos citados, considerando a certeza de indispensabilidade dos documentos relativos à habilitação jurídica em qualquer hipótese de contratação.

Ora, ninguém é autorizado a contratar com entidade pública se não possuir capacidade jurídica para tanto. Esta regra geral parece ser óbvia. O jurista Marçal Justen Filho assenta que:

O dispositivo induz, ainda, amplitude inocorrente. Podem ser dispensados determinados requisitos (tais como qualificação técnica, qualificação econômico-financeira e regularidade fiscal). Porém, a prova da habilitação jurídica nunca poderá ser dispensada. Logo e no mínimo, esse requisito é obrigatório em toadas as hipóteses, mesmo porque se não estiver presente sequer será válida a proposta apresentada8

Mesmo que a Administração, se utilizando de seu poder discricionário, dispense os documentos concernentes à habilitação jurídica (art. 28), à qualificação técnica (art. 30) e à econômico-financeira (art. 31), a documentação referente à regularidade fiscal (art. 29) poderá ser dispensada, somente em relação aos incisos I a III, na medida em que a prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei (inciso IV), deverá ocorrer nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão. Não se olvide da vedação constitucional constante do art. 195, § 3º, da Carta Federal.

A Lei 8.666/1993 não faz qualquer referência à participação de pessoas jurídicas por intermédio de matriz ou filiais em procedimentos licitatórios.

É comum que o edital contenha regra acerca dessa situação, determinando que toda a documentação deva ser relativa ao mesmo CNPJ, isto é, documentos da matriz, ou, no caso de participação por uma filial, estes devem ser desta entidade.

Entrementes, nem todos os documentos podem ser emitidos em nome da filial, por questões burocráticas. Importante, então, que a entidade interessada em participar de licitação por intermédio de filial providencie, a tempo e modo corretos, uma consulta à Administração Pública, a fim de esclarecer por escrito quais os documentos que podem ser emitidos em nome da matriz, mesmo sendo a licitante uma filial. O e. Tribunal de Contas da União já decidiu a respeito9.

Eram estas as breves considerações.


  1. Advogado desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná (2013-2023); Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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  2. Inc. XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

  3. Art. 37, caput: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: ...omissis... A redação deste dispositivo bem demonstra quão atrasado estava o país no ano de 1988, pois, fazer constar da Lei Maior que os agendes hão de obedecer aos princípio da moralidade, da impessoalidade e da eficiência é exigir o mais óbvio, que certamente não carecia estar escrito. Acerca da moralidade, escreve Hely Lopes Meirelles que constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o ‘conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração’. Direito Administrativo Brasileiro. 20ª edição. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 83. Grifos no original. Sobre o tema: José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 10ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 617. Acerca da impessoalidade, assim disserta José A. da Silva: O princípio ou regra da impessoalidade da Administração Pública significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário. Este é um mero agente da Administração Pública, de sorte que não é ele o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal. Op. cit., p. 615.

  4. Op. cit., p. 247.

  5. REMESSA NECESSÁRIA. TRIBUTÁRIO. ISSQN. FALTA DE COMPROVAÇAO DA REGULAIRDADE FISCAL. INTERDIÇAO DAS ATIVIDADES EMPRESARIAIS DO CONTRIBUINTE. IMPOSSIBLIDADE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. REMESSA CONHECIDA. SENTENÇA MANTIDA. 1) Não deve o Estado impedir atividade econômica de uma empresa, seja por dívidas tributárias ou por falta de comprovação da regularidade fiscal da empresa, por tratar-se de medida coercitiva. Precedentes do STF. 2) A interdição das atividades empresariais do contribuinte em razão da imputação da prática de infrações à legislação tributária, sem instauração do competente processo tributário administrativo constitui afronta aos princípios do devido processo legal, ampla defesa e exercício das atividades econômicas. 3) Entendimento do STF no sentido de não impedir a atividade econômica de uma empresa por possuir dívida tributária, razão pela qual a interdição da empresa em razão da não comprovação da regularidade fiscal não deve ser aplicada pelo Município, por afronta ao princípio da proporcionalidade. 4) Remessa conhecida. 5) Sentença mantida. TJES, Remessa ‘ex-officio’ 00021479820048080021. E há outra decisão do STF: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. DIREITO TRIBUTÁRIO E DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CLÁUSULA DA RESERVA DE PLENÁRIO. ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL PLENO DO STF. RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO ESTADO. LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL. MEIO DE COBRANÇA INDIRETA DE TRIBUTOS.

    1. A jurisprudência pacífica desta Corte, agora reafirmada em sede de repercussão geral, entende que é desnecessária a submissão de demanda judicial à regra da reserva de plenário na hipótese em que a decisão judicial estiver fundada em jurisprudência do Plenário do Supremo Tribunal Federal ou em Súmula deste Tribunal, nos termos dos arts. 97 da Constituição Federal, e 481, parágrafo único, do CPC. 2. O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente entendido que é inconstitucional restrição imposta pelo Estado ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quanto aquelas forem utilizadas como meio de cobrança indireta de tributos. 3. Agravo nos próprios autos conhecido para negar seguimento ao recurso extraordinário, reconhecida a inconstitucionalidade, incidental e com os efeitos da repercussão geral, do inciso III do §1º do artigo 219 da Lei 6.763/75 do Estado de Minas Gerais. STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 914.045-MG, rel. Min. Edson Fachin, julg. 13/10/205. A Súmula 70 do STF tem este teor: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo.

  6. Observe-se este julgado do e. Supremo Tribunal Federal: ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. MINISTRO DE ESTADO. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO SONORA. ANULAÇÃO DO ATO QUE DECLAROU A HABILITAÇÃO DO LICITANTE. FASE POSTERIOR AO JULGAMENTO DAS PROPOSTAS. POSSIBILIDADE. CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. EXIGÊNCIA LEGÍTIMA. VINCULAÇÃO AO EDITAL. NÃO SUJEIÇÃO AO FISCO ESTADUAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO NO MOMENTO ADEQUADO. SEGURANÇA DENEGADA. (fl. 370). STF, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 32.055, Distrito Federal, relator Min. Gilmar Mendes, julg. 24/06/2016. Colhe-se do corpo do acórdão: Assim, a mera irregularidade de apresentação de certidão negativa de débitos estaduais com data vencida não induz à convicção de que a impetrante não gozava, efetivamente, de regularidade fiscal. E, ainda que assim não fosse, precluiu o momento para a descoberta da irregularidade, uma vez que a lei e o edital impuseram, taxativamente, um marco temporal para sua verificação: até a declaração de habilitação dos concorrentes. Diferente seria, argumentandum tantum, caso restasse comprovada a má-fé da impetrante, caso juntasse à proposta concorrencial certidão fraudulenta, cuja falsidade somente fosse descoberta após o processo de habilitação/qualificação. Mas este não é o caso dos autos.

  7. Op. cit., p. 269.

  8. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª. São Paulo: Dialética, 2000.

  9. TC 022.343/2008-6. Item 14. Acrescente-se que, se a matriz participa da licitação, todos os documentos de regularidade fiscal devem ser apresentados em seu nome e de acordo com o seu CNPJ. Ao contrário, se a filial é que participa da licitação, todos os documentos de regularidade fiscal devem ser apresentados em seu nome e de acordo com o seu próprio CNPJ.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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