Caso chico picadinho: uma incógnita. problemáticas jurídicas e psíquicas

13/03/2023 às 18:20
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CASO CHICO PICADINHO: UMA INCÓGNITA. PROBLEMÁTICAS JURÍDICAS E PSÍQUICAS

“Se eu tivesse alguma coisa para dizer, lá fora, para o público, seria perdão!”

Francisco Costa Rocha

Por Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

Questões iniciais

Em uma cela na antiga Casa de Detenção e Tratamento de Taubaté, um homem idoso, de compleições frágeis, é o mais antigo integrante do sistema prisional brasileiro. Francisco Costa Rocha, “Chico Picadinho”, como ficou conhecido pelos prisioneiros da Casa de Detenção do Carandiru em sua primeira condenação, foi responsável pelo assassinato seguido de esquartejamento de duas mulheres. A primeira, no ano de 1966, a bailarina e massagista austríaca Margareth Suída, na madrugada de 03 de agosto. Apresentados mais cedo num bar localizado em uma das várias galerias do centro de São Paulo, encaminharam-se ao fim da noite para o apartamento que Francisco dividia com o amigo Caio, um médico que conhecera na aeronáutica, localizado na Rua Aurora, região rotulada como “Boca do Lixo”. No chamado quadrilátero do pecado, famoso pelas casas de meretrício, bares, teatros e cinemas eróticos, que se estende desde as Avenidas Ipiranga e São João, República e Luz, o casal sobe até o apartamento 83, do número 72.

Após o encontro caloroso, a noite seria encerrada com o assassinato da mulher e posterior esquartejamento do cadáver. Inicialmente, a suspeita era de vivissecção, devido ao colega de quarto de Francisco ser médico, motivo, inclusive, de suspeita temporária recaída sobre Caio. De frente à carnificina que o próprio Francisco orquestrou, ele simula então uma visita corriqueira a sua mãe que morava no Rio de Janeiro, quando por lá foi preso e levado a julgamento.

Apesar da brilhante atuação de defesa pelo conceituado advogado criminalista Flávio Markman, o réu é condenado a 18 anos de reclusão por homicídio qualificado, além de 2 anos e 6 meses pela destruição do cadáver, em concurso material, sendo ulteriormente a pena reduzida para 14 anos e 4 meses de reclusão.

Nesse sentido, delineia-se a peculiaridade do caso, que já perdura há mais de quatro décadas, gerando polêmica no meio jurídico e da saúde mental.

Após a condenação pelo homicídio da Rua Aurora, Chico foi avaliado pelo corpo médico prisional (Instituto de Biotipologia Criminal), com parecer favorável concluindo pela cessação da periculosidade, embasando a progressão de regime, parcialmente cumprido em colônia agrícola, e sua liberdade condicional. Segundo o parecer para efeito de livramento condicional expedido pelo Instituto citado, foi excluído o diagnóstico de personalidade psicopática e estabelecido que Francisco tinha personalidade com distúrbio de nível profundamente neurótico.

Logo após seu retorno à vida cotidiana, Francisco, apesar de registrado bom comportamento em cárcere, inclusive tendo trabalhado diretamente com a diretoria da prisão, retornou à vida desregrada e boêmia no centro paulistano, com insucesso do casamento celebrado ainda quando cumpria pena.

Com o passar do tempo, entregue ao consumo excessivo de álcool e outras drogas, novamente Chico repete a cena de outrora: enquanto hospedado na casa de um amigo de sua mãe, na Avenida Rio Branco, também no centro de São Paulo, após um encontro com a prostituta Ângela de Sousa Silva, Francisco asfixia sua parceira durante o ato sexual e utilizando-se de facas e um cerrote, lança mão do esquartejamento no intuito de se livrar dos despojos. Mesmo com a experiência que passara na primeira vez que esquartejou alguém, Chico deixa a cena do crime ainda um tanto desorganizada, com a sutil diferença de o local estar um pouco mais limpo, porém sacos com os restos mortais foram deixados no apartamento. Após o ato, Francisco exausto, dorme no sofá e acorda depois de três horas com toda certeza de seu feito, resolve então contar para o seu amigo, e tão logo desloca-se ao Rio de Janeiro, onde é preso pela segunda vez pelos policiais da delegacia de Magé, em decorrência de denúncia anônima.

No segundo julgamento, exatos dez anos do primeiro assassínio e dois em liberdade, “Chico Picadinho” é condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão. Deveria ter sido libertado em 1998, por ter cumprido sua pena integralmente, mas isso não aconteceu. À época, o máximo que um detento poderia permanecer encarcerado, mesmo após a unificação das penas, seria trinta anos. Com a entrada ao universo jurídico da Lei nº 13.964/2019, chancelou-se o máximo de quarenta anos de privação de liberdade, segundo alterações introduzidas no parágrafo primeiro do artigo 75 do Código Penal.

Francisco Costa Rocha, atualmente com 79 anos, ainda está em regime de segregação, que se estende por mais de 45 anos. Sua liberdade não foi concebida em decorrência de uma interdição na esfera cível, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, descortinando-se um quadro anômalo de encarceramento no sistema penal brasileiro, pois, segundo a defesa de Francisco, ele estaria sendo punido com prisão perpétua, inexistente em nosso país. Todavia o pedido de desinternação foi rejeitado pela justiça.

Pela reforma penal de 1984, pela qual foi excluído o sistema denominado “duplo binário”, o Magistrado sentenciante aplicará a pena de reclusão, ou a medida de segurança, caso detectada a alteração mental que implique o tratamento hospitalar ou ambulatorial. Não mais se faculta a aplicação sucessiva de reclusão e medida de segurança. No caso de Francisco, alega-se que ele continuaria representando perigo à sociedade se fosse colocado em liberdade.

Controvérsias

Depois da segunda condenação, Francisco foi diagnosticado enquanto um sujeito psicopata. De acordo com Robert Hare, psicólogo canadense, especialista em psicologia criminal, a psicopatia é um transtorno de personalidade que apresenta aspectos como comportamento antissocial, ausência de remorso, compaixão, altruísmo, empatia, sentimentos rasos, emoções muitas vezes explosivas, impulsividade, baixa tolerância às frustrações, agressividade. No caso aqui, esta condição não implica inimputabilidade, pois o indivíduo tem total ciência de seus atos, diferentemente de uma psicose, que a grosso modo, seria a perda do contato com a realidade, podendo apresentar surtos psicóticos com relatos de delírios, sensação de perseguição, visões, alucinações auditivas.

Por ser um transtorno de personalidade, a psicopatia não é considerada doença mental, e, portanto, não é passível de tratamento ambulatorial, internação assistida, ou qualquer tipo de monitoramento com o intuito de o sujeito “se curar” e voltar ao convívio social. Cabe ressaltar que nem todo psicopata é assassino e muito menos, serial killer, esta estatística é bem baixa, cerca de 2% dos considerados psicopatas poderão vir a cometer homicídios.

O réu Francisco foi condenado, por um lado, na sistemática da reclusão pautada na presunção quanto a possibilidade de reincidência em crime violento. De outro lado, a internação, ou tratamento ambulatorial, é aplicada por tempo indeterminado, enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade, observado o prazo mínimo de um a três anos. Tal normatiza, que se reveste de feições perpétuas por omissão, não foi alterada pela reforma de 1984, pois tanto a parte geral do Código Penal como a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), mantiveram o texto legal que positiva a indeterminação de tempo para a medida de segurança. Ou seja, a alegação é a de que Chico não teria condições de retornar ao âmbito da sociedade, contudo, a internação deveria observar o prazo máximo da pena abstratamente cominada, ou o máximo permitido em lei, cerca de 40 anos.

Se considerarmos o diagnóstico de psicopatia, realmente não há como dizer que exista uma espécie de “superação” de periculosidade para homicidas. Eles sempre serão assim, pois são maneiras de ser, correspondentes à personalidade, ao comportamento, à forma que eles veem, operam e atuam no mundo. No caso de Chico, além de estar em privação de liberdade até hoje, o prazo máximo de 40 anos já está em muito ultrapassado. No Brasil, é vedado o apenamento perpétuo; não houve um quadro de aplicação sucessiva de medida de segurança, curso de ação inviável de acordo com a legislação em matéria penal, ao passo que a manutenção da custódia decorre de interdição cível, que não significa privativa de liberdade.

A interdição, nos termos do Código Civil, deve ser aplicada quando um indivíduo não detém o discernimento para atos da vida cível, ou seja, não tem condições de prezar por sua autonomia, como assumir obrigações, estabelecer relações contratuais, zelar por sua condição financeira e material, necessitando a nomeação de curador especial. Embora, muitas vezes, isso seja necessário, não seria a casuística aqui relatada, hoje os tempos são outros. Há décadas a luta é pautada justamente pela desinternação e acompanhamento não segregatório, permitindo que o sujeito esteja em constante contato com a realidade para além dos muros, possibilitando a construção de laços sociais, na medida do possível.

Imputável ou inimputável?

No direito brasileiro, a noção de imputabilidade ou semi-imputabilidade, reflete o critério biopsicológico normativo, o que significa dizer que não é suficiente o agente padecer de alguma enfermidade mental – sendo a condutopatia (psicopatia, sociopatia entendemos como sinônimos), enquanto frieza de emoções e ausência de empatia, traços de personalidade e não doença mental – faz-se mister, demonstrar por meio de produção de prova pericial, que o transtorno afeta o caráter do réu. Atentemo-nos ao precedente:

(...) Reconhecimento da inimputabilidade. Impossibilidade. Critério biopsicológico normativo. Incidente de insanidade mental. Laudo pericial conclusivo que atesta a imputabilidade do acusado. Fundamentação concreta adotada pelo juiz a quo. Prequestionamento de violação do art. 5º, incisos LIV e LV, da CF, e art. 386, VI, do CPP. Recurso improvido. 1. Em tema de inimputabilidade (ou semi-imputabilidade), vigora o critério biopsicológico normativo. Assim, não basta simplesmente que o agente padeça de alguma enfermidade mental (critério biológico), faz-se mister, ainda, que exista prova (V. G. Perícia) de que este transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilícito do fato (requisito intelectual) ou de determinação segundo esse conhecimento (requisito volitivo) à época do fato, no momento da ação criminosa. (...). (TJES; Apl 0002876-18.2008.8.08.0011; Primeira Câmara Criminal; Relª Subst. Desª Rozenea Martins de Oliveira; Julg. 31/01/2018; DJES 16/02/2018) 

Sendo assim, a psicopatia não isenta a capacidade do indivíduo entender o caráter ilícito de seus atos. Ainda que os psiquiatras que analisaram o caso de Francisco na oportunidade do julgamento de 1976, tenham considerado o acusado semi-imputável, pontuando que, por algum momento, houve um quadro dissociativo da realidade – tal como os psicóticos, como já vimos, o réu teve completa noção do que fez o tempo todo.

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Nesse viés interpretativo, inúmeros juristas defendem que em acatamento ao princípio de proporcionalidade, segurança jurídica e mais meia dúzia de vetores interpretativos garantistas, a internação deveria observar o prazo máximo da pena abstratamente cominada, ou a máxima permitida em lei, 30/40 anos, entendimentos referendados pelas cortes de sobreposição.

Conforme tracejado, desdobram-se três problemáticas no caso concreto quando em paralelo ao ordenamento jurídico. Francisco Costa Rocha foi condenado à reclusão, e no Brasil, é vedado o apenamento perpétuo; não houve um quadro de aplicação sucessiva de medida de segurança, curso de ação inviável de acordo com a legislação matéria penal; a manutenção da custódia decorre de interdição cível, que não irradia feixes penais, mormente privativos de liberdade.

Na casuística telada, o Parquet utilizou-se como sustentáculo legal, além das disposições insertas no Código Civil de 2002, o Decreto nº. 24.559, de 03 de Julho de 1934, da Era Vargas, pelo qual se dispõe acerca da interdição de direitos concernentes às pessoas com problemas penais. Como cediço, a produção legiferante é dinâmica e reflete fatores sociais e históricos multifacetados. Nessa vertente, observa-se que a norma teve sua vigência inaugurada em cenário no qual a internação era a regra e não se verificava uma atenção sensível à saúde mental, num distanciamento entre direito e medicina, ao revés do que perquire em caráter primevo no ordenamento contemporâneo, e cuja aplicação atual mostra-se anacrônica. Os tempos são outros, há décadas o perfil encampado é o da desinternação e acompanhamento não segregatório, num melhor compasso com o texto constitucional.

Quem é “Chico Picadinho”?

Francisco Costa Rocha nasceu no dia 27 de abril de 1942 em Vila Velha, Espírito Santo. Filho de um poderoso exportador de café e sua amante, Dona Nancy, sempre muito enferma com problemas pulmonares, tão logo ele conheceu a rejeição, tendo que ir morar em um sítio com um casal de empregados que trabalhavam para o seu pai. Estes, também não demonstravam afeto pelo menino que, praticamente, ficava sozinho a maior parte do tempo. Suas maiores companhias eram os animais que ali habitavam.

Relatos de sua história contam que neste período, Chico demonstrava certo sadismo e prazer em torturar animais, principalmente enforcar gatos. Dizia ele que era para verificar se eles tinham sete vidas. Ainda na infância, quando começara seus estudos em uma escola católica, teria presenciado abuso sexual envolvendo um de seus colegas. Desde então, seu comportamento que já vinha numa ascendente em termos de desvio de conduta, foi ficando cada vez mais antissocial e distante afetuosamente. Reprovou no quarto ano, depois abandonou os estudos por completo.

Passados dois anos que Chico estava morando no sítio, Dona Nancy fora buscá-lo. Ele mal reconhecia a figura materna que estava ali diante de seus olhos, e a partir deste momento, o garoto iria vivenciar as instabilidades dos futuros relacionamentos de sua mãe com diversos homens, presenciando as mais diversas situações, inclusive o próprio coito.

Na adolescência, ele passou a integrar um grupo denominado “senta pua”, onde sofreu constantes abusos sexuais. Chico conhecia muito bem a prática sexual quando observava sua própria mãe e seus parceiros; vivência que ganhava ainda mais força, agora envolvendo sexo com violência, além de experiências homossexuais.

Francisco sempre alimentava o desejo de entrar para a Escola Naval, sem êxito, acabou se alistando na Aeronáutica quando completou 18 anos. Mais tarde ainda tentou entrar para a academia da Polícia Militar, mas não obteve sucesso. Chico, segundo contam, tinha problemas disciplinares e era avesso ao cumprimento de regras, horários, normas e ordens.

Quando adulto, se deu muito bem em ser corretor de imóveis, justamente pela liberdade de horários e flexibilidade de agenda. Assim dava-se início a uma vida regada a bares, casas noturnas, prazeres sexuais a qualquer hora do dia, consumo exacerbado de bebidas alcoólicas, tabaco e outras drogas diversas. Curiosamente, Francisco cultivava um gosto sofisticado pelas artes, principalmente música e literatura, aspecto que pode causar certa estranheza, devido aos conteúdos assombrosos que habitavam em sua mente.

Chico passou a ser assíduo frequentador da famosa “boca do lixo”, zona conhecida pela prostituição e uso de drogas, desde os primórdios do século vinte. Francisco se relacionava muito bem, porém sem assumir compromisso com mulheres e homens influentes nos setores culturais e sociais da boemia, preferia apenas cultivar encontros casuais. Expressava uma ótima articulação comunicativa e aproveitava os benefícios advindos de favores sexuais. Para ele, gozar a vida neste caminhar era bastante confortável e natural.

Interessante refletir que quando Chico praticou aqueles atos anteriormente citamos no início deste artigo, ele não saia “à caça” de possíveis vítimas como comumente seriais killers planejariam e agiriam. Seja com intenções de poder, dominação, desejos puramente sexuais, perversão, diversão e controle. Tudo parecia ter acontecido no rompante do momento.

Nos autos do processo, temos as versões de que Chico via na vítima Margareth Suída semelhanças com a vida de Dona Nancy, na medida em que ambas se relacionavam com homens por dinheiro ou status. Numa outra versão, Margareth teria caçoado de Chico porque ele queria fazer sexo anal com ela, incitando que aquele ato não era coisa de homem. Chico, então, num ato de total impulsividade teria asfixiado a vítima e, para se ver livre do corpo e facilitar a ocultação, esquartejou-o.

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Cabe lembrar, que o assassino quase conseguiu uma terceira vítima. Revoltado por descobrir no momento do ato sexual que ela estava grávida – para ele soava como algo inaceitável, impuro – depois de asfixiá-la, a feriu na região abdominal, porém a mulher ainda estava viva, e na sequência, a moça conseguiu se evadir do local.

Ao ser perguntado sobre seus crimes, Chico em momento algum exprime arrependimento, remorso, compaixão pelas vítimas e o fim que havia dado aos seus corpos. Aliás, durante todos estes anos, ele concedeu muitas entrevistas, relatos, contou sua história, participou de reportagens e contribuiu com a escrita de livros. Sempre falou de maneira confortável, muito bem articulada. É um leitor assíduo de grandes autores da literatura, filosofia e, até mesmo, a psicanálise freudiana.

Em nenhum dos crimes de Chico, parece ser o caso de perda momentânea da consciência. Relembrando que, durante o julgamento pelo assassinato de Ângela, chegou-se à conclusão de que Chico tinha uma personalidade psicopática. Houve ainda, a possibilidade de colocar como pano de fundo de suas atitudes, a embriaguez, no entanto, não se desdobra um caso de embriaguez patológica clinicamente demonstrada.

Vimos que desde a infância, ele apresentava sinais de um padrão de comportamento repetitivo, mórbido, intolerante ao controle, à ordem, ao compromisso, seja com pessoas, seja com trabalhos que envolvam o espírito de equipe, companheirismo, fidelidade, responsabilidade, altruísmo e empatia, como é o caso, por exemplo, da Academia de Polícia. Geralmente, psicopatas não se encaixam neste perfil, são mais nômades, libertinos, descompromissados; não mantém por muito tempo estabilidade em seus empregos e relacionamentos afetivos. Claro que há sempre exceções quanto às subjetividades. Ver o caso, por exemplo, do famoso serial killer BTK (Bind, Kill, Torture), Dennis L. Rader, que levava uma vida familiar calma, era casado, tinha filhos e um emprego estável, mantendo esta máscara de homem cordial, cidadão exemplar e ainda, religioso, por muitos anos, dando substrato à sua sobrevivência social.

Dentro do desenvolvimento psicossexual de Francisco, como já vimos, ele nasceu de uma relação extraconjugal e foi rejeitado pelo seu pai. Apesar de ter sido criado pela mãe, teve que lidar com um período de afastamento de aproximadamente dois anos, quando ela adoeceu. Ao retornar a morar com ela, ainda vivenciou de perto diversas situações sexuais desviantes. Também durante a infância, Chico apresentou comportamento sádico em relação a animais, asfixiando gatos por diversão.

Todo este rol de comportamentos nem sempre é um padrão para um futuro psicopata homicida. Existem traços formativos desde a tenra idade, porém isso pode cessar. É importante considerar o acompanhamento de profissionais da saúde mental logo nos primeiros sinais de comportamento apático, diversão mórbida, crueldade com irmãos mais novos e animais, mentiras, dissimulações, interesse sexual intrusivo, enurese noturna por longos anos, terror noturno, piromania.

Em termos psíquicos, podemos dizer que psicopatas são fronteiriços, ou seja, transitam entre neurose e psicose, pois sua conduta (condutopatia) e motivações parecem fugir de certa normalidade psíquica, porém, ao mesmo tempo, não alucinam. Também podemos colocá-los enquanto sujeitos perversos, pois além das questões sexuais desviantes, estes “fazem uso” hostil e abjeto do outro, quase que anulando o indivíduo que, para eles, representam coisas descartáveis, apenas para gozo.

A perversão, junto da neurose e da psicose, é uma das formas de organização psíquica, porém não é exclusiva da psicopatia. Dizemos que todo sujeito recalca nas profundezas de seu inconsciente, suas obscuridades, seus conteúdos mais inaceitáveis e repulsivos que a consciência não suportaria. Podemos dizer que no sujeito perverso, suas fantasias mais desprezíveis ganham força e perpassem mais facilmente as barreiras morais do superego (instância do juízo), culminando em práticas destrutivas e altamente condenáveis pela sociedade.

Vimos o quanto Chico em sua juventude, antes de se tornar um assassino real, fez pequenos “ensaios” asfixiando gatos. Nem sempre a prática de maus tratos ganha força e requinte ao longo do tempo, porém no caso aqui, exprime significativa proximidade com o modo de agir de Chico quando asfixiava suas vítimas.

Considerar Francisco Costa Rocha um psicopata é interessante em termos jurídicos, pois isto culminou em medidas cabíveis para sua condenação. Contudo, falar do ser humano apelidado de “Chico Picadinho”, suas atitudes e escolhas é, no mínimo, intrigante, pois ele em nenhum momento planejou seus assassinatos e mais, quando perguntado certa vez na prisão, se caso fosse solto, cometeria novamente os atos, ele respondeu algo do tipo, “talvez, provavelmente”, “não posso afirmar que não faria”. Mais uma vez estando bem à vontade discorrendo sobre seus crimes que chocaram tanto à época, e diríamos, até os dias de hoje. Ele mesmo nunca ficou estarrecido, nem surpreso, nem transtornado e, de certa forma, é possível afirmar que sentia gozo com tudo aquilo que se propôs a fazer e, provavelmente, continuaria a repetir a dose. As autoridades, talvez, sabiamente, não arriscaram “pagar para ver”.

A questão que oportunamente se coloca é: será que matar aquelas mulheres significava uma espécie de catarse particular, muito circunscrita, delimitada de tudo que Chico havia vivido e sentido? Raiva, abandono, ressentimento, rancor, rejeição, ódio, vingança... É possível cogitarmos tal ressonância.

Afinal, que conteúdos do real psíquico habitavam em sua mente? Por que Chico não conseguia se controlar durante a relação sexual e matava suas amantes? Será que o ato final de esquartejamento era mesmo para se desfazer dos restos mortais ou aquilo ressoava algum conteúdo manifesto perturbador de seu inconsciente?

Vejamos que mesmo após se deparar com a primeira cena pós esquartejamento, sanguinolenta e confusa, ainda assim Chico repete exatamente o mesmo feito com sua segunda vítima. Não cogitou em momento algum livrar-se do cadáver por um caminho mais rápido e menos trabalhoso. Escolheu ficar mais de três horas retalhando o corpo. Até que se cansou e dormiu pesadamente, para somente depois de seu “merecido descanso”, acordou e saiu da cena do crime.

Seria a repetição do desfecho sua maior fonte de gozo? Ou um macabro ato falho?

Realmente, Chico Picadinho é uma figura incógnita e repleta de controvérsias.

Considerações finais

Em tom de epílogo, no ano de 1995 Francisco foi transferido da Penitenciária do Estado para a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Em 1998, cumprida sua pena, foi deferida uma liminar na ação de interdição em trâmite no juízo cível, inabilitando sua libertação, pela fundamentação alhures exposta. Em março de 2017, foi proferida decisão pela magistrada titular da Vara de Execuções Penais da comarca de Taubaté, Sueli de Oliveira Zeraik Armani, determinado a restituição gradual da liberdade do interditado, entendendo pela arbitrariedade da prisão naqueles termos, com aquiescência do MP. Todavia, a segunda instância fez coro de vozes com o argumento de que o apenado deveria ser mantido na Casa de Custódia à disposição da justiça cível para tratamento medicamentoso e psicoterápico, e por decisão do desembargador Ricardo Dip, da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidiu-se pela manutenção da custódia.

Apesar do incidente instaurado nos autos da interdição, tombados sob o nº 0005327-65.1998.8.26.0625 - Interdição - 04/03/2020 do TJSP, pelo qual se objetivava a desinstitucionalização do interditado, o juízo cognoscente não o acolheu, constando da decisão recente no andamento processual, segundo a qual:

“(...) o caso em tela, reconhece-se a situação excepcionalíssima de alguém que, efetivamente, já teve o sacrifício de sua liberdade por prazo superior ao que estabelecido no Estatuto Penal (em seu artigo 75), isto é, 30 (trinta) anos, de forma ininterrupta, ainda que tenha havido recente alteração legislativa, por crimes bárbaros que cometeu e foi condenado com trânsito em julgado. E, mais, que o transcurso do prazo da sanção penal/corporal encerrou-se no ano de 1998, mais especificamente, em 21.11.1998. O que suscitado (instauração para procedimento de desinstitucionalização) passa necessariamente por predicado inexistente no incapaz Francisco Costa Rocha dado que, conforme inúmeros documentos/laudos médicos constantes dos autos, “tem personalidade congênita psicopática, que se manifestou cedo em sua vida, e que não suscetível a nenhuma espécie de influência pela terapêutica, tendo alto índice de periculosidade latente” (fls. 51 destes autos, peritos Drs. Wagner Farid Gattaz e Antonio José Eça, em data de 11.1.1978). (...) Depreende-se, portanto, salvo melhor juízo, sob o ponto de vista médico legal, que sua capacidade de auto gerir-se e à seus bens, esteja de forma absoluta, prejudicada.” mantida a literalidade estrita da transcrição. É de outro laudo constante dos autos: “...Portanto, no caso de Francisco, temos a seguinte associação de fatores: prognóstico sombrio, em termos de reversão dos quadros clínicos, pelas próprias características destes; inexistência de terapêutica eficaz conhecida e baixíssima aderência às terapias propostas, mesmo que de pouca eficácia comprovada. Ora, estes fatores tornam bastante grande a possibilidade de reincidência, a qual, por sinal, já ocorreu quando do abrandamento da primeira pena. Não restando dúvidas, como é o caso, quando ao nexo causal entre os quadros clínicos apresentados e os crimes cometidos, é óbvia a conclusão de que o examinado não apresenta condições de convívio fora do ambiente de custódia no qual já se encontra. Livre na sociedade, este indivíduo é perigoso para si próprio, por incapacidade de gerir a sua vida e também para os outros, pelo descontrole intenso que episodicamente apresenta dos seus impulsos agressivos e sexuais perigosos. (...)”

No ano de encerramento de sua pena, outro caso de forte repercussão social e destaque na crônica Policial brasileira ressurgia ao lume popular, com a liberação de João Pereira da Costa o “Bandido da Luz Vermelha”, após trinta anos de prisão. Visivelmente transtornado, fazia uso de medicação psiquiátrica, tratamento que não foi dispensado em momento ulterior; ausência de atenção mínima que culminou em sua morte por um pescador, agindo em legítima defesa, alguns meses após sua liberdade. Nesse caso especificamente, vislumbra-se todo um quadro de pertinência de interdição com posterior acompanhamento externo. Repise-se, na situação em tela, ainda que as conclusões psiquiátricas repousem em ominoso prognóstico de reincidência, cumulado com a inexistência de plano terapêutico eficaz para o estado psicopático, o cárcere advindo de interdição cível apresenta-se como um quadro, reitera-se, totalmente anômalo e não legalmente resguardado.

Inclusive, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n º 13.146/2015 – que irradiou feixes sobre o quadro das interdições, reconheceu-se a total capacidade dos então judicialmente declarados relativamente capazes. Nesse passo, por todos os prismas pelos quais se analisa o caso Francisco Costa Rocha, não se verifica substrato jurídico à manutenção da prisão. Decerto, a deficiente e desbragada elaboração legislativa, sem a preocupação de eficácia num plano abstrato e abrangente para sua aplicação concreta, resulta em situações não ortodoxas, no que se convencionou rotular informalmente de “gambiarra jurídica”.

Inquestionável a existência de uma lacuna legal para o tratamento jurídico do psicopata, relegando situações casuísticas a “soluções” também pragmáticas, ou nem tanto, pois, não raro, se invectiva contra princípios fundamentais como a segurança jurídica, lastro inseparável do molde garantista da Constituição Federal.

Nesse meio tempo, Francisco Costa Rocha, “Chico Picadinho”, permanece no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico “Doutor Arnaldo Amado Ferreira”, denominação do Centro de Detenção e Custódia de Taubaté, desde o ano de 2002. Talvez, uma inovação legislativa concebida em cotejo harmônico às diretrizes de saúde mental, delineie uma opção, no entanto, no atual cenário, remanescem as indagações, as quais ecoam sem resposta adequada. Ao que tudo indica, Chico passará os anos que ainda lhe restam, isolado e longe da sociedade. À obviedade, não se contesta a noção de que a segregação de indivíduos de alta periculosidade, medicamente aferida, seja uma realidade que destoe da segurança pública, mas uma norma bem elaborada, melhor servirá tanto ao apenado, como à sociedade de forma geral. Este é o verdadeiro espírito das leis.

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Sobre o autor
Marcus Vinicius Silva Hemerly

Bacharel em Direito graduado pela FDCI - Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim. Servidor Público do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, lotado na Comarca de Mimoso do Sul. Doutor h.c. em Literatura.

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