FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL
Modelos Sudamericanos
TATIANA CONCEIÇÃO FIORE DE ALMEIDA
Advogada, Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires - UBA, Professora, Autora, Articulista/Investigadora da equipe internacional Latin-Iuris (Instituto Latinoamericano de Investigación Y Capacitación Jurídica); Membro da Comunidad para la investigación y el estúdio laboral y ocupacional-CIELO; Coautora em diversas Obras Coletivas; Coordenadora do Livro Previdenciário um olhar Crítico sobre Constitucionalidade e as Reformas (2016); Um Olhar Crise além dos Direitos Sociais (2019); e Previdenciário: Novas Tecnologias e Interações entre o Direito, a Saúde e a Sociedade; Participou como membro convidado da CPI da Previdência (ano 2017).
Resumo: O Financiamento da Seguridade Social é a peça-chave para a compreensão do ajuste fiscal em curso nos países Sudamericanos. Este artigo analisa o desmonte do financiamento da seguridade social pelas reformas, que extrapola a dimensão político-ideológicas de combate a pobreza, incorporados ao status de cidadania sob a visão do desenvolvimento das políticas sociais, capazes de promover o bem-estar social.
Palavras-chave: Financiamento; Seguridade social; Fundo público; “Questão Social”; Reforma; Bem Estar-Social; América Latina.
INTRODUÇÃO
O tema é extremamente abrangente, inclusivo, e eu vou tratá-lo, até pelos limites necessários de tempo e espaço, de uma forma muito seletiva, seria impossível esgotar todos os pontos necessários. O que vou dizer aqui, direi com muita convicção porque é resultado de alguns anos de reflexão, de estudo e de pesquisa. Mas quero dizer que são apenas ideias que eu apresento vocês como hipóteses de trabalho, não mais do que hipóteses de trabalho para discutirmos e, eventualmente, corroborá-las, confirmá-las, retificá-las ou revisá-las.
Sabemos que o conhecimento, especialmente social, tão encharcado de dimensões político-ideológicas, só avança à medida que há polêmica, que há confronto de ideias, que há discrepância de juízos. Então, o que eu vou formular aqui são questionamentos para instigar esse diálogo.
Primeiramente é preciso fazer uma breve consideração teórica acerca dessa expressão “Questão Social”, para mencionar um pouco a unidade latino-americana, uma vez que o que nos interessa, sobretudo nessa intervenção, são os países Sudamericanos.
O segundo momento pontuar acerca do enfrentamento contemporâneo dos direitos sociais incorporados ao status de cidadania sob a visão do desenvolvimento das políticas sociais, capazes de promover o bem-estar social.
E por fim e não menos importante, compreender o financiamento utilizado na América Latina (regime de repartição simples, regime de capitalização e regime misto), para entrega efetiva da proteção referente às insígnias da seguridade social e que garantem uma administração socialmente responsável destes fundos.
“Questão Social” para a unidade latino-americana
A “questão social”, expressão que representa desigualdades sociais que surgiu no século XIX, na Europa, com o objetivo de exigir a formulação de políticas sociais em benefício da classe operária, que estavam em pobreza crescente.
Para os filósofos do liberalismo, como John Locke e Adam Smith, a desigualdade social faz parte da natureza humana e da forma como os indivíduos se organizam na sociedade. Enquanto que os pensadores influenciados por Karl Marx e Friedrich Engels, é resultado de um processo histórico baseado na exploração de um grupo social por outro.
Isso para retratar que estudos filológicos sobre a “questão social”, datam a década de 30 do século XIX, curiosamente, ela passa a existir quase que simultaneamente ao surgimento de outra palavra em francês, “socialismo”, que foi utilizada, ao que se sabe, pela primeira vez, em 1832, por Pierre Leroux.
O período que vai de meados do século XIX até a terceira década do século XX é marcado pelo predomínio do liberalismo, que apregoa o funcionamento livre e ilimitado do mercado, o que, por si só, asseguraria o bem-estar geral, pois o Estado resume-se a fornecer a base legal para o mercado maximizar os benefícios aos homens.
A década de 1970 é um período transitório, marca o avanço de ideais neoliberais, que passa a existir como uma reação, no plano do pensamento, ao Estado intervencionista e de bem-estar, com o propósito de combater o keynesianismo e o solidarismo reinante e preparar as bases para um novo avanço do capitalismo, isso incentivados pelo Federal Reserve (FED, o Banco Central dos Estados Unidos), que decidiu elevar a taxa de juros, para – de acordo com uma concepção monetarista da economia – combater a inflação e garantir a estabilidade monetária.
Os neoliberais impõem que o Estado não deve intervir na regulação do comércio exterior, nem na regulação de mercados financeiros.
A estabilização monetária é apresentada como a principal meta e só seria assegurada, contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa natural de desemprego; uma reforma fiscal diminuindo os impostos sobre os rendimentos mais altos; e o desmonte dos direitos sociais, implicando a quebra da vinculação entre política social e esses direitos.
No contexto latino-americano a questão social analisa com rigor um intrincado novelo de conceitos, dados, e lógicas de interpretação da pobreza e da miséria, mostrando os mecanismos da construção social e das desigualdades sociais, através de alguns fatores que são causas, mas não o centro do problema.
Pois o custo social do neoliberalismo tem sido alto, especialmente para os países periféricos, quando “questões sociais” estão incluídas no controle dos salários, na erosão gradual dos sistemas de proteção social, nas ondas de desemprego, no crescimento lento e crises recorrentes nos países latinos americanos, na terceirização do trabalho, na elevação das tensões internacionais etc.
Em cenários não europeus, como na América Latina, o impacto de tais medidas neoliberais foi ainda mais violento, pois nesses cenários o Estado de bem-estar social nem sequer chegou a existir.
Na realidade, as medidas neoliberais foram primeiramente testadas na América Latina. É preciso lembrar que fomos cobaias do famigerado “consenso de Washington”, que foi um corpo de medidas standard, originariamente aplicado por organismos financeiros internacionais – Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) – e sustentado pelo departamento do tesouro americano nas economias que se encontravam em dificuldade para pagar suas dívidas externas.
Isso porque o Consenso de Washington foi primeiramente testado na América Latina, servindo para guiar a transição para o capitalismo na Europa do leste e central. Embora publicamente defendido por Thatcher e Reagan, foi aplicada apenas gradualmente e de forma desigual no Primeiro Mundo.
No Terceiro Mundo, ao contrário, a neoliberalização foi imposta em função da dívida, como um programa forçado de ‘ajuste estrutural’, que anulou todos os princípios centrais do desenvolvimentismo e obrigou Estados pós-coloniais a alienar os seus ativos, abrir seus mercados e reduzir gastos sociais.
1.1 Equacionando a “Questão Social”
Os estudos arqueológicos, etnológicos e antropológicos têm mostrado que a pobreza e a desigualdade acompanham o desenvolvimento da humanidade desde há muito. Pobreza e desigualdade não são apanágios, nem traços exclusivos do modo de produção capitalista.
As sociedades pré-capitalistas, as mais remotas e as mais próximas de nós, conheceram e conhecem fenômenos de polarização, pobreza e abundância e fenômenos de desigualdade.
O que torna a pobreza na sociedade capitalista uma pobreza de natureza distinta de todas as anteriores é que nesta sociedade é possível suprimir a pobreza, do ponto de vista da produção, da distribuição, mas não é possível do ponto de vista dos marcos jurídico-políticos em que opera essa sociedade.
Seria extremamente empobrecedor reduzirmos o trato da “questão social” tão somente a eixos de natureza econômica, técnica, social e política, há toda uma série de matizes, de composições que derivaram, inclusive, no século XX, dos confrontos dos trabalhadores, da classe operária organizada, de intelectuais vinculados aos interesses históricos da classe operária, da própria modificação da condução das políticas econômicas pelo debate que se viu profundamente empobrecido por dois fenômenos que caracterizam a chamada cultura pós-moderna.
O primeiro seria a (des)economicização dos estudos sociais, onde o debate crítico da economia é substituído por projeções de meros analistas de mercado. Segundo há uma profunda (des)historicização tratam o presente como se ele fosse absoluto, com apagamento direto das dimensões do passado.
E essas coisas ficam muito mais complicadas quando se tem que pensar a América Latina, porque boa parte dessas teorias, recentes e novas, foi requentada no forno da crise do Estado de Bem-Estar Social, ou do colapso da crise das instituições do Estado Social, inserindo problemas que não são nossos.
1.2. Unidade ou Identidade Latino-Americana
É preciso distinguir unidade de identidade.
Estou convencida de que há bases objetivas para uma unidade latino-americana, quanto à identidade latino-americana, parece-me que nós temos identidades.
Isso porque falar rigorosamente em unidade é ponderar a unidade do diverso, não em unidade do igual ou do idêntico, e a América Latina tem uma história que é muito diferenciada.
Pensar a América Latina é um todo extremamente complexo e diferenciado onde particularidades nacionais se destacam pela identidade, e criam uma base que é a diversidade que se põem objetivamente e fundam a unidade dos nossos países que padecem, historicamente, da heteronomia das suas decisões macroeconômicas.
O que une fundamentalmente a América Latina é esse elemento central, a heteronomia das suas orientações macroeconômicas.
Esse elemento basilar, molecular, tem implicações porque ele rebate na articulação dos movimentos das classes subalternas e põe a todos os latino-americanos um inimigo comum.
A América Latina é a região do planeta onde existem as maiores desigualdades e onde os mais ricos recebem uma proporção maior da renda, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2020 o produto interno bruto (PIB) caiu mais de 7% e 31 milhões de empregos foram perdidos. Estima-se que até 44 milhões de pessoas voltaram à pobreza como resultada da crise, durante a pandemia de COVID-19 na região.
Por trás desses números estão arraigados problemas estruturais, como baixa produtividade, informalidade do mercado de trabalho e desigualdade, que ganharam maior relevo neste contexto.
A lacuna entre riqueza extrema e pobreza extrema e vulnerabilidade que caracteriza a região ficou em evidência como nunca antes e se aprofundou ainda mais como resultado da pandemia de COVID-19.
O Relatório de Desenvolvimento Humano Regional 2021, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), analisa a armadilha em que está imersa a região, a qual impede o avanço rumo ao cumprimento da Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), deixando claro que os países da América Latina e do Caribe são mais desiguais do que os de outras regiões com níveis de desenvolvimento semelhantes, e seus indicadores sociais ainda estão abaixo do esperado para seu nível médio de renda.
O relatório explora fatores que se repetem e retroalimentam, um ciclo vicioso de alta desigualdade e baixo crescimento que deságua na pobreza multidimensional, que vai além da renda.
Seguindo essa linha de análise a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), demonstra através do relatório anual Panorama Social da América Latina 2020, que a pandemia desencadeou um cenário econômico, social e político complexo de baixo crescimento, aumento da pobreza, e crescentes tensões sociais.
Expondo as desigualdades estruturais que caracterizam as sociedades latino-americanas e os altos níveis de informalidade e desproteção social, bem como a injusta divisão sexual do trabalho e a organização social do cuidado, que comprometem o pleno exercício dos direitos e a autonomia das mulheres.
Ou seja, a magnitude da expressão “questão social” na América Latina se afere, em primeiro lugar, por esses indicadores de pobreza e extrema pobreza.
É evidente que a pobreza é uma questão multidimensional, e não é exclusivamente um fenômeno de natureza econômica, pois tem dimensões culturais, de sociabilidade, de direitos sociais, como lazer, saúde, estrutura familiar, etc., porém não se pode afastar de cena a sua elementaridade econômica.
E mais: resta provado, seja pela experiência histórica, seja pela análise teórica, que crescimento econômico não significa imediatamente redução de pobreza, nem absoluta, nem relativa.
Para resolver a “questão social” é preciso fazer a reforma do Estado, a Reforma da Seguridade Social.
A palavra “reforma” está conotada com os intentos clássicos da Socialdemocracia, de reformas progressistas ampliadoras de direitos. Porém, utiliza-se a palavra reforma para ocultar os efetivos mecanismos de contrarreforma, de amputação de direitos, de minimização de direitos e garantia da proteção social universal como pilar central do Estado de bem-estar, estabelecendo a dependência baseada na divisão internacional do trabalho.
Nesse aspecto para os países Sudamericanos transferência de renda compõe o cenário das políticas sociais dirigidas aos mais pobres.
Direitos Sociais X Status de Cidadania
Na esteira do reconhecimento de que ter renda é um direito de cidadania, as políticas sociais se reestruturam o elemento agregador dos direitos sociais.
Isto é, onde o acesso à renda como direito via políticas sociais torna-se um elemento da regulação socialdemocrata necessária para acionar o mercado, e nessa perspectiva, a renda que deveria ser pactuada para que as políticas sociais fossem objeto de mercado, passam a ser acessadas conforme as possibilidades da renda aferida.
Marshall aceitava uma espécie de igualdade humana básica, associada ao conceito de cidadania, a qual não é inconsistente com as desigualdades econômicas.
No entanto, esta referência se dava apenas para ‘as obrigações e não aos direitos de cidadania, do contrário o Estado assumiria a responsabilidade de conceder esses direitos, o que levaria a atos de interferência. Nesse sentido, a ideia de igualdade empregada no status de cidadão está dissociada da concepção de igualdade econômica.
Assim, o conceito de cidadania é dividido em três partes: civil, política e social.
O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual; o político se refere ao direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros desse organismo; e o social é tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.
Propunha que a cidadania se constituía através de uma sequência cronológica e lógica. Cronológica, porque primeiro se desenvolvem os direitos civis - aqueles ditos fundamentais; para então se chegar aos direitos sociais - aqueles que permitem a participação igualitária. E lógica, porque o progresso da cidadania está atrelado ao desenvolvimento econômico.
A primeira grande contribuição do capitalismo para o desenvolvimento dos direitos de cidadania civis foi que, com ele, estabeleceu-se o primeiro direito civil universal: o direito ao livre trabalho, quando o ser humano passou a ser dono da sua própria mão de obra e livre para trabalhar em qualquer atividade.
A segunda contribuição foi incorporar os direitos sociais ao status de cidadania sob a visão de que os serviços sociais não eram um meio de equalizar economicamente a sociedade, mas um mecanismo de instauração da igualdade de oportunidades.
Com esse contributo o Estado garantiria o mínimo de bens e serviços essenciais visando igualar o status de cidadão de todos os indivíduos, e não o seu nível de renda.
Políticas Sociais e o Bem-estar Social
O desenvolvimento das Políticas Sociais recai sobre os elementos da tríade: Estado, mercado e sociedade civil (família), que configuram as inter-relações entre essas instituições capazes de promover diferentes arranjos de bem-estar social.
Essas instituições, conforme se estruturam, impactam profundamente uma às outras e são mutuamente impactadas. A estrutura familiar influenciam as políticas sociais do Estado que são direcionadas para determinada resguardar esse núcleo elementar. O mercado não apenas influencia como é influenciado à medida que oferece esses serviços sociais suprindo uma demanda não abarcada pelo Estado e pelas famílias. A intervenção estatal é dimensionada a partir do tamanho do papel do Estado como garantidor desses serviços.
O cenário da segunda metade do século XX, pós-guerra, impulsionado pelo desenvolvimento e orientado pelas políticas keynesianas, do Estado de Bem-Estar Social (welfare state) foi à saída encontrada pelos países para sustentar as reformas demandadas pela população.
Tais recursos extrapolaram as necessidades governamentais e ficaram à disposição dos gestores. E com o excesso de recursos, a teoria de Keynes e a superestrutura administrativa em mãos, o governo pôde, enfim, prover os mais diversos serviços sociais, acelerando a recuperação do pós-guerra e abraçando a população nacional.
Observem que quando o Estado coloca sobre sua responsabilidade a execução de determinados serviços sociais, esses passam a serem consideradas políticas públicas com cunho social, ou seja, são políticas sociais. A partir daí, fica garantido o terceiro grupo de direitos da cidadania de Marshall, oferecido não só de forma legal, mas também na prática social.
O desenvolvimento do Estado de Bem Estar Social, fez com que a participação das famílias na provisão de serviços aos indivíduos diminuísse. Nessa perspectiva teórica, o processo de industrialização, caracterizado pela especialização da atividade produtiva, levou a profundas transformações na sociedade, modificando o papel de instituições tradicionais provocando a marginalização de alguns grupos sociais.
Com isso, novas demandas surgem para o Estado, que passa a assumir a função de garantir determinados padrões mínimos de vida por meio das políticas sociais.
O fornecimento de serviços sociais na maioria dos países é uma mistura de provisão social pública e privada. Para as provisões sociais serem consideradas públicas elas devem ser diretamente legisladas e administradas pelo Estado ou deve existir um mandato governamental para que setor privado forneça o serviço.
Diante desse cenário, o chamado Estado de Bem-Estar Social foi à saída encontrada pelos países para sustentar as reformas demandadas pela população. A estratégia de previsão social é instrumento essencial para inclusão social.
O sistema seguridade social que protege somente os trabalhadores assalariados e de forma contributiva (sistema bismarckiano) não corresponde aos anseios e responsabilidade social do atual contingente populacional e responsabilidade social. Já o financiamento da seguridade social no modelo beveridgiano é proveniente dos tributos e é estatal à gestão do sistema; e aponta para um modelo de seguridade social oposto à lógica de seguro social.
Financiamento da Seguridade Social na América Latina
A seguridade social é mais abrangente que os seguros sociais, estes que por si só não solucionam os contingentes e também não foram criados para suportar coberturas sem a correspondente arrecadação financeira.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a seguridade social é fundamental para a garantia do bem-estar da classe trabalhadora e de suas famílias, assim como de toda a coletividade, pois é um direito essencial do ser humano, importante para promover a paz e a inserção social.
A seguridade social quando bem gerida favorece a produtividade via política de saúde, a garantia de renda e o acesso aos serviços sociais. Porém, quando associada às políticas ativas do mercado de trabalho, torna-se instrumento poderoso de desenvolvimento econômico e social sustentável.
A América Latina introduziu seus programas de seguro social muito antes de outros países em desenvolvimento na África, Ásia e no Oriente Médio.
No final da década de 70, todos os países da região já tinham tais programas em vigor, mas com diferenças importantes entre eles. Em 1980, antes que o Chile iniciasse as reformas estruturais, os países latino-americanos foram qualificados e ordenados em três grupos: pioneiro-alto, intermediário e tardio-baixo.
Estes grupos se formaram com base na data em que introduziram seus primeiros programas de seguro social de previdência, assim como no grau de desenvolvimento alcançado para esses programas (medido por onze indicadores).
O grupo pioneiro-alto formado por Uruguai, Argentina, Chile, Cuba, Brasil e Costa Rica foi o primeiro a estabelecer os sistemas de seguros sociais na região.
Nas décadas de 20 e 30, alcançaram a maior cobertura e o maior desenvolvimento desses sistemas, sua população estava relativamente mais envelhecida e sua expectativa de vida era mais alta; entretanto, os sistemas adoeciam por estratificação, altos custos, déficit crescente e desequilíbrio financeiro e atuarial. Importante esclarecer que pela data de criação de seus programas e sua população jovem, a Costa Rica pertencia ao grupo intermediário; mas ao considerar a extensão da cobertura, o desenvolvimento e o custo de seu sistema, colocava-se no grupo pioneiro-alto.
O grupo intermediário integrado por Panamá, México, Peru, Colômbia, Bolívia, Equador e Venezuela introduziram seus programas principalmente nas décadas de 40 e 50, influenciados pelo Documento Beveridge e pelas convenções da OIT, conseguiram uma cobertura e um desenvolvimento médio para seus sistemas, os quais estavam menos estratificados, tinham um custo menor e uma situação financeira melhor em comparação ao primeiro grupo; ainda que alguns já enfrentassem desequilíbrio.
O grupo tardio-baixo composto pelo Paraguai, República Dominicana, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Honduras e Haiti foi o último a introduzir seus programas, nas décadas de 60 e 70, sua população era a mais jovem e sua expectativa de vida, a mais baixa; seus sistemas eram relativamente mais unificados e adoeciam de menos problemas financeiros, mas possuíam a menor cobertura e o menor desenvolvimento.
Originalmente, o Paraguai se encaixou no final do grupo intermediário; em parte pela data de criação de seus programas. Entretanto, em 2002, sua cobertura era uma das três mais baixas da região; sua população, uma das mais jovens; sua expectativa de vida, uma das mais baixas; e a sustentação financeira de seu sistema era alta em comparação com os outros países; por essas razões, se encaixou melhor no grupo tardio-baixo.
As diferenças significativas entre esses três grupos se refletiam de maneira diversa na vigência dos princípios de seguridade social.
Princípios da Seguridade Social na América Latina antes das Reformas
A análise da vigência dos princípios de seguridade social na América Latina antes das reformas estruturais mostra resultados mistos e com grande variedade entre os países
A cobertura média regional aumentou entre 1980 e 1990, apesar da grave crise da década de 80, e superava a norma mínima da OIT mesmo desconsiderando o Brasil, que tinha a maior força de trabalho e uma cobertura relativamente alta; porém, enquanto todos os países do grupo pioneiro-alto superavam amplamente a norma, cinco dos países restantes tinham uma cobertura inferior à mínima em benefícios.
Os sistemas estratificados que proliferaram principalmente, mas não apenas, no grupo pioneiro-alto introduziram desigualdades injustificáveis no nível de cobertura, nas condições de acesso, prestações e financiamento entre diversos setores ocupacionais; ainda que essas iniquidades fossem reduzidas por processos de unificação e normalização, subsistiam programas privilegiados para as forças armadas em quase todos os países, assim como para funcionários públicos e outros grupos em vários países.
As idades mais baixas para aposentadoria para as mulheres, combinadas com uma maior expectativa de vida e menor densidade de contribuição que os homens, geravam benefícios mais baixos, ainda que essas iniquidades fossem atenuadas com o benefício mínimo e com tabelas de mortalidade unissex.
O princípio da solidariedade era proclamado em todos os países, ainda que diminuído pela estratificação subsistente, pela baixa cobertura em metade dos países e pelos tetos de contribuição em muitos deles. Só seis países tinham programas assistenciais de benefícios, enquanto que os 14 restantes — que sofriam a maior incidência de pobreza — precisavam de tais programas.
O sistema tendia a gerar um efeito regressivo, embora atenuado ou revertido nos países que tinham alta cobertura, baixa estratificação e programas assistenciais.
O princípio de suficiência predominava, em tese, em toda a região; mas, na prática, dependia do nível de cobertura. As condições de acesso eram muito liberais no grupo pioneiro-alto, porém mais restritas no tardio-baixo.
O ajuste dos benefícios superou o aumento do custo de vida até 1980 na maioria dos países; entretanto, houve uma deterioração posterior, devido à alta inflação e ao ajuste estrutural.
A unidade de gestão existia em apenas três países, devido à estratificação especialmente no grupo pioneiro-alto, embora o processo de unificação tenha reduzido o número de instituições e estabelecido uma agência central administrativa.
A responsabilidade estatal variava de completa a muito reduzida; entretanto, com poucas exceções, o Estado teve um papel adverso.
O custo da administração era baixo nos países com maior cobertura e alto nos de menor cobertura.
Havia participação tripartite na administração em praticamente todos os países, mas, em vários deles, o governo tinha maioria ou controlava a escolha.
A sustentabilidade financeira variava; nove países tinham Capitalização Parcial Coletiva (CPC), embora adoecessem de desequilíbrio atuarial (com diferentes magnitudes), seis países se aproximavam da repartição, ou estavam virtualmente nela, com déficit maior, e os países pioneiros (com uma exceção) tinham repartição, sofriam de um déficit maior e requeriam subsídio estatal.
A tendência geral era a de um incremento do gasto sobre o PIB e do gasto com aposentadorias e pensões dentro do gasto geral.
Vigorava a “norma mínima” segundo a qual o trabalhador assalariado não pagava mais de 50% da contribuição total: 32% para os trabalhadores versus 68% para os empregadores e o Estado. Entretanto, a alta contribuição (especialmente no grupo pioneiro-alto) gerava incentivos para a evasão e a mora, e o Estado era um dos principais devedores.
O investimento era geralmente ineficiente devido à concentração em valores públicos e em outros poucos instrumentos de baixa rentabilidade; na metade dos países, o rendimento real era negativo, em grande parte devido à ausência de um mercado de valores e à interferência estatal.
A avaliação do desempenho latino-americano, com relação à vigência dos princípios de seguridade social, deve levar em conta o diverso nível de desenvolvimento de seus países e realizar-se de maneira comparativa com o resto do mundo.
As estatísticas disponíveis indicam que a maioria dos países da América Latina levava vantagem com relação a outros países em desenvolvimento, mas ficava abaixo dos países industrializados.
No entanto, a OIT advertia que, geralmente, os países industrializados se aproximam do pleno emprego, seu trabalho é basicamente formal, seus mercados de trabalho estão regulados, desfrutam de uma distribuição razoável de renda, contam com níveis altos de cumprimento das leis de seguridade social e com uma cobertura quase completa de suas populações.
Ao contrário, os países de desenvolvimento médio (como os da América Latina) enfrentam sérios problemas: altas taxas de desemprego e subemprego, tamanho importante e crescente do setor informal, distribuição de renda altamente desigual e carência de um sistema tributário capaz de arrecadar as contribuições do seguro social e fi nanciar programas assistenciais.
Em condições socioeconômicas tão diferentes, é óbvio que os princípios de seguridade social não podem funcionar igualmente.
Não obstante, os países pioneiros latino-americanos introduziram seus primeiros programas de seguro social antes dos Estados Unidos e do Japão, e toda a região contava com um seguro social associado à doença e à maternidade, enquanto que os Estados Unidos careciam de tal programa, e uma parte considerável de sua população carecia de seguro-saúde.
3.1 As reformas e a modificação dos princípios de seguridade social
Na última década, houve uma forte discussão internacional sobre os sistemas de previdência públicos e privados de seguro social.
Ambos os termos são ambíguos e carregados ideologicamente; portanto, para uma análise mais profunda, é preciso avaliar suas quatro características essenciais e diversas: contribuição, prestação, regime financeiro e administração.
O sistema público caracteriza-se por:
a) contribuição não definida (tende a aumentar em longo prazo por causa do envelhecimento da população e do amadurecimento do sistema);
b) prestação definida regulada por lei, (a qual pode fixar um benefício mínimo e um máximo, especificar a fórmula para o cálculo do benefício etc.; mas, na prática, essas regras não são sempre cumpridas);
c) regime financeiro de repartição ou de Capitalização Parcial Coletiva (CPC); e,
d) administração pública (por uma entidade autônoma ou diretamente pelo Estado).
O sistema privado caracteriza-se por:
a) contribuição definida (fixa no longo prazo, apesar de que o envelhecimento da população forçará eventualmente seu incremento ou a redução do montante do benefício);
b) prestação não definida - incerta, (determinada pelo acumulado na conta individual do segurado, o qual, por sua vez, dependerá do seu salário, do montante e da densidade de sua contribuição e do rendimento do investimento do fundo em sua conta, além de fatores macroeconômicos como o crescimento, a inflação etc.);
c) regime financeiro de Capitalização Plena e Individual (CPI); e,
d) administração privada, embora também possa ser múltipla (pública, privada, e mista).
O debate entre sistemas de previdência públicos e privados está intimamente ligado a dois tipos de reformas implementadas no mundo: estruturais ou não estruturais.
As estruturais transformam fundamentalmente o sistema público; seja substituindo-lhe completamente pelo privado, introduzindo um componente privado ao público, ou criando um sistema privado que possa competir com o público.
Enquanto que as reformas não estruturais ou paramétricas melhoram o sistema de previdência público para fortalecê-lo financeiramente em longo prazo; por exemplo, aumentam a idade para aposentadoria ou as contribuições, ou regulam de maneira mais rigorosa a fórmula para o cálculo do benefício.
3.1.1 Reformas Estruturais
Existem três modelos gerais de reformas de previdência estruturais na América Latina: substitutivo, paralelo e misto.
Modelo Substitutivo
O modelo substitutivo é seguido em seis países: Chile (o pioneiro, em 1981), Bolívia e México (1997), El Salvador (1998), a República Dominicana (planejada sua implantação gradual em 2003-200619) e Nicarágua (planejado seu início em março de 2004).
Esse modelo fecha o sistema público (não se permitem novos filiados) e o substitui por um sistema privado, com contribuição definida, prestação não definida, regime financeiro Capitalização Plena e Individual (CPI), e administração privada.
Exceto no México, onde a prestação pode ser definida ou não definida, isso porque, quando a reforma foi promulgada, todos os que estavam segurados mantiveram o direito ao tempo de aposentadoria, e de escolher o melhor benefício entre o regulado pelo sistema público de prestação definida (fechado) e o baseado na conta individual do sistema privado.
Outra exceção é a República Dominicana, onde a administração é múltipla.
Modelo Paralelo
O modelo paralelo é aplicado em dois países: Peru (1993) e Colômbia (1994).
O sistema público não é fechado, mas sim reformado (integralmente, na Colômbia, e parcialmente no Peru), criando um novo sistema privado e os dois competem entre si.
O sistema público ou privado, com contribuição não definida e definida, prestação definida e não definida, regime financeiro Repartição no Peru e Capitalização Parcial Coletiva (CPC) na Colômbia, e administração pública e privada, com exceção da Colômbia, onde a administração é múltipla.
Modelo Misto
O modelo misto é seguido em quatro países: Argentina (1994), Uruguai (1996), Costa Rica (2001) e Equador (2004).
Esse modelo integra um sistema público, que não se fecha e outorga um benefício básico (primeiro pilar), com um sistema privado, que oferece um benefício complementar (segundo pilar).
O sistema público ou privado, com contribuição não definida e definida, prestação definida e não definida, regime financeiro Repartição na Argentina e no Uruguai, e Capitalização Parcial Coletiva (CPC) na Costa Rica, administração pública, com a exceção de que a administração é múltipla nos três primeiros países.
Nos três modelos, o sistema privado de Capitalização Plena e Individual (CPI), tem dois componentes: um obrigatório e outro voluntário.
A filiação e a contribuição são obrigatórias no primeiro, enquanto que opcionais no segundo; a mesma administradora gerencia as duas contas, mas geralmente as separa; ambas as contribuições se beneficiam de impostos diferidos; o acumulado na conta voluntária não pode ser retirado até a aposentadoria na maioria dos países; em uma minoria, é possível fazê-lo antes; na época da aposentadoria, o trabalhador pode retirar o montante da conta voluntária ou combinar ambos os fundos para o cálculo de seu benefício.
O que podemos verificar na prática é que entre 1980 e 2014, trinta países privatizaram total ou parcialmente seus sistemas públicos de previdência, constituindo quatorze deles na América Latina (em ordem cronológica: Chile, Peru, Argentina, Colômbia, Uruguai, Estado Plurinacional da Bolívia, México, República Bolivariana da Venezuela, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Equador, República Dominicana e Panamá).
Sendo que a partir de 2018, dezoito desses países haviam re-reformado os sistemas previdenciários, revertendo o total ou parcialmente a privatização. No caso latino-americano, a República Bolivariana da Venezuela (2000), Equador (2002), Nicarágua (2005), Argentina (2008), e o Estado Plurinacional da Bolívia (2009).
3.1.2 Reformas paramétricas ou ausência de reformas
Os oito países que não levaram adiante uma reforma de previdência estrutural são: Brasil, Cuba, Guatemala, Haiti, Honduras, Panamá, Paraguai e Venezuela. Na grande maioria desses países, houve uma maior discussão pública sobre a reforma do que na maioria dos países onde as reformas estruturais foram aprovadas.
Todos mantêm sistemas públicos com as características contribuição não definidos, prestação definida, regime financeiro de repartição ou Capitalização Parcial Coletiva (CPC) e administração pública.
É importante destacar que maioria dos países têm sistemas de previdência públicos, muitos dos quais têm realizado reformas paramétricas para assegurar sua sustentabilidade.
3.2 Financiamento do Seguro Social
Os sistemas públicos são criticados na América Latina por seu tradicional desequilíbrio atuarial, assim como financeiro, no caso dos mais envelhecidos, o que força os subsídios fiscais.
Além disso, a falta de equivalência entre contribuição e prestação (além do cálculo do benefício baseado em uma média salarial dos últimos ou melhores salários) fomenta a evasão, a subdeclaração de salários e a morosidade. Tampouco os investimentos dos sistemas previdenciários públicos tiveram bons rendimentos.
O sistema privado é baseado no princípio da equivalência, na contribuição definida (assumida por tempo indefinido) e no regime financeiro de Capitalização Plena e Individual (CPI), assim, assume-se que não enfrentará problemas de sustentabilidade e desequilíbrio atuarial, razão pela qual, não é necessário fazer avaliações atuariais periódicas, como nos sistemas públicos, ainda que devessem ser feitas projeções do custo fiscal de transição.
O que a reforma faz, na realidade, é revelar ou “explicitar” a dívida implícita ou escondida do sistema público de repartição, a qual tende a crescer com o amadurecimento do sistema e o envelhecimento da população, de forma que o custo fiscal de transição é um resultado lógico e, diferentemente dos sistemas de repartição, se reduzirá e desaparecerá.
A reforma normalmente elimina ou reduz a contribuição do empregador e a transfere ao trabalhador, com o objetivo de eliminar distorções no mercado de trabalho, reduzir os custos do trabalho, promover a criação de emprego e aumentar a competitividade das exportações. Os investimentos do fundo acreditam-se, serão muito mais eficientes e gerarão um rendimento maior do que o sistema público.
Antes das reformas, os sistemas públicos eram financiados com contribuições tripartites, onde a do empregador correspondia a uma média de dois terços do total; dessa forma, se cumpria a norma mínima de que o trabalhador não deve financiar mais de 50% das contribuições totais.
Com poucas exceções, as reformas estruturais violaram essa norma.
Somente três países não mudaram, em tese ou na prática, a contribuição do trabalhador e a do empregador: a Costa Rica transferiu as contribuições existentes a outros programas; o Equador só subiu a contribuição do trabalhador de alta renda; e o México aumentou o aporte estatal baseado na folha salarial.
Três países eliminaram a contribuição do empregador Chile, Bolívia e Peru.
Dois a reduziram: o Uruguai a reduziu ligeiramente e aumentou em igual proporção a do trabalhador, a Argentina a cortou pela metade por meio de isenções e bonificações (a contribuição do trabalhador foi cortada pela metade em 2001, mas está sendo elevada gradualmente desde 2003).
Seis países aumentaram a contribuição do trabalhador: Bolívia, Colômbia, El Salvador (em 367%), Nicarágua, Peru e República Dominicana.
Somente três países aumentaram a contribuição do empregador: Colômbia, Nicarágua e República Dominicana.
Na maioria dos países, a eliminação ou redução da contribuição patronal provocou, em grande parte, um aumento da contribuição do trabalhador, ou do custo fiscal, ou de ambos.
Além da contribuição, os trabalhadores são responsáveis pelo pagamento das comissões para administração de seus fundos, exceto na Colômbia, onde são divididas com o empregador.
3.2.1 Problemas do Financiamento
A implementação fática da dignidade humana é o que legitima a existência do Estado nos ordenamentos constitucionais modernos.
Tal prática depende de políticas públicas orientadas que contam, para tal fim, com recursos próprios (contribuições) e meios de planejamento específico (orçamento).
O orçamento público não é mero documento financeiro ou contábil, atualmente é um instrumento de ação do Estado na ordem econômica e social, sendo necessário o exame ponderado dos mecanismos tributários e orçamentários que garantem as formas pelas quais os direitos sociais são implementados pelo Estado.
Analisando as instabilidades tributárias existe um total desrespeito pelas vinculações sociais, e no caso específico as contribuições sociais, que é a garantia de implementação dos direitos da seguridade social.
Se observarmos o viés orçamentário, notamos que, apesar das vinculações tributárias, não há qualquer seriedade na mensuração de gastos com a Seguridade Social.
Ao certo temos regras que norteiam a elaboração das metas orçamentárias, parâmetros pragmáticos assinalados no texto constitucional que abarcam questões relacionadas diretamente às relações jurídicas existentes entre a Administração e os Administrados.
Um dos problemas é baixa porcentagem de filiados que contribuem e o aumento da contribuição em muitos países expandem a informalidade e provocam uma queda não só na arrecadação, mas também na cobertura nos sistemas.
A facilidade com que os indivíduos na América Latina evadem a obrigatoriedade [de filiar-se e contribuir] cria dúvidas sobre sua utilidade, pelo menos nos níveis atuais de contribuição.
É provável que a magnitude da evasão esteja, em parte, associada ao nível das contribuições obrigatórias; se a alíquota de contribuição e o teto máximo do salário imposto fossem reduzidos, a frequência da contribuição aumentaria, especialmente entre os trabalhadores mais pobres e jovens, os quais têm outras demandas urgentes de consumo.
Outra causa importante para a inadimplência: os empregadores que descontam as contribuições do trabalhador, mas não as transferem (nos países onde há contribuição patronal) ou demoram em repassá-las à administradora ou agência central arrecadadora. Uma violação ainda mais grave é nos países onde só o trabalhador contribui.
Essa infração legal é sancionada, na maioria dos países, não somente com o pagamento das dívidas das contribuições ajustadas à inflação, mas também com juros e multas e, até mesmo, com o fechamento da empresa.
A ausência de depósito deve aparecer no relatório periódico da administradora destinado aos segurados sobre o estado de seus cadastros; porém, muitos deles não as examinam ou não as entendem ou ignoram seu direito de reclamar.
As administradoras também podem reclamar o pagamento (em alguns países, podem cobrar um encargo adicional como incentivo) e recorrer aos tribunais caso não obtenham êxito; entretanto, o procedimento judicial é, com frequência, lento e caro.
O empregador é responsável pelo desconto e repasse das contribuições em todos os países.
Mas, a arrecadação delas (assim como a manutenção de registros) é centralizada na metade dos países (Argentina, Costa Rica, Equador, México, República Dominicana e Uruguai), administrada por uma entidade especial pública, ou pelo seguro social, ou por uma agência privada sem fins lucrativos.
Nos outros seis países, a arrecadação é descentralizada: o empregador deve preencher diversas planilhas de pagamento para cada entidade administradora, o que constitui um problema para as empresas pequenas.
A arrecadação centralizada simplifica o processo de pagamento para as empresas pequenas (as quais só precisam preencher uma planilha; embora isso não constitua um problema para as empresas grandes que utilizam métodos eletrônicos) e deveria controlar melhor o pagamento da contribuição, além de reduzir o custo administrativo por economias de escala.
Diante desse quadro temos duas premissas verdadeiras: o elevado custo dos direitos sociais, e que as contribuições sociais nos dias de hoje é a excelência da máquina arrecadadora federal.
Nesse bojo, a possibilidade de atendimento aos direitos sociais, que demandam de uma prestação positiva do Estado tem dois fatores determinantes: os fatores sócio-politico-econômico, e o sistema jurídico fundado no direito financeiro constitucional.
E nem precisamos ser experts para comprovarmos que o orçamento clássico intervencionista versus a necessidade de programar os gastos públicos com vistas às atividades econômicas de metas mínimas estabelecidas para a preservação, garantia e efetivação dos direitos sociais fundamentais e manutenção do Estado de bem-estar.
Conclusão
O modelo latino-americano de financiamento anterior tem estrutura no Estado corporativo organizado desde os seus primórdios no século XX.
Ocorreu uma expansão evolucionista em círculos concêntricos, resultando no Estado de Bem-Estar Social truncado e sui-generis atual.
Uma cobertura com cláusulas generosas foi concedida primeiramente aos assalariados de alta renda. Mais tarde, essa cobertura foi estendida para incluir os grupos mais fracos, geralmente com o objetivo de legitimizar governos e estratégias de desenvolvimento nacionais. A base financeira que tornou possível essa generosa expansão foi à estrutura demográfica jovem, juntamente com a possibilidade de se aumentar progressivamente os “círculos de cobertura” para incluir novos grupos de contribuintes.
À medida que os planos de previdência começaram a amadurecer e alcançaram os limites da expansão da cobertura (setores informais crescentes, possibilidades decrescentes de expandir os padrões de ocupação assalariada), juntamente com mudanças demográficas na estrutura etária, a dinâmica fundamental da estrutura ruiu e a seguridade social na América Latina entrou em crise.
Os desequilíbrios financeiros foram à razão da necessidade reformista dos sistemas de seguridade social na América Latina. Entretanto, as reformas sociais não são, tipicamente, isentas de custos para o Estado.
Um dos componentes é a “dívida invisível” acumulada pelos segurados e a “dívida social” por aqueles que, eles mesmos, nunca contribuíram com a previdência social, mas que sofreram com o “ajuste” e a “austeridade fiscal”.
O segundo componente de custo está associado à desativação do sistema velho e à criação de um novo, que fez parte das reformas estruturantes seja pelo modelo substitutivo, paralelo ou misto.
Um terceiro custo é aquele relativo à provisão de serviços sociais e de substituição de receita àqueles que não têm condições de se tornarem segurados e não estão qualificados a receber benefícios sob os novos sistemas.
Portanto, precisamos enfrentar uma série de questionamentos:
O Estado está se “livrando” dos compromissos financeiros ao implementar a reforma, então quais são os efeitos fiscais líquidos da transição para um novo arranjo entre o Estado e o setor privado?
Há formas alternativas de financiar os gastos com a previdência social, especialmente aqueles dirigidos aos grupos sociais mais vulneráveis, que não sejam contribuições sobre a folha de salários?
O conceito de “direcionamento social” de despesas e de contribuições sociais foi concebido como uma forma de realocar recursos para a promoção e a reintegração dos grupos mais vulneráveis de pobres, bem como de outros grupos de pobres, dentro de um ambiente social em mutação. Uma questão inicial é onde estabelecer o limite entre seguro social (com base contributiva) e assistência social (sem base contributiva)?
O que seria um melhor direcionamento social para ambos os tipos de gastos previdenciários na América Latina e de onde viriam tais contribuições?
Quais foram os privilégios que alguns grupos acumularam no passado e qual seria a função da previdência social com respeito à diminuição da pobreza no futuro?
Qual o papel da previdência social no provimento de serviços e de renda: qual deve ser o principal objetivo, manter os atuais padrões de vida ou prover um nível básico de renda/serviços básicos, a ser complementado pelo segurado, se desejar, através de seguro privado?
Do lado da contribuição, qual deverá ser o peso alocado à renda oriunda do trabalho no financiamento da previdência social, em contraposição ao uso de tributos gerais ou específicos?
Finalmente, mas não menos importante, quais foram os efeitos das estruturas de contribuição à previdência social sobre o custo da mão-de-obra e sobre o nível de emprego?
Se ponderarmos o financiamento através do regime de repartição simples versus os sistemas de capitalização, um argumento importante contra os regimes de repartição simples é que supostamente desperdiçam os recursos da sociedade e que os métodos de capitalização poderiam contribuir para uma taxa mais alta de poupança agregada, e, consequentemente, para níveis mais altos de investimento.
O volume considerável de recursos que já foi redirecionado para planos de capitalização levanta algumas dúvidas: será a previdência social em regime de capitalização uma forma adequada de aumentar a poupança agregada em uma sociedade?
A seguridade social alcançou de fato este objetivo na América Latina, onde este argumento foi apresentado nas reformas estruturantes.
Um ponto inicial a ser reconhecido é que os gastos sociais só podem ser financiados pela renda nacional atual.
Assim, permanece sempre o problema de dividir a renda nacional entre os economicamente ativos e os inativos (no caso das aposentadorias e pensões); nenhuma renda pode realmente ser deslocada do passado para o presente, nem para o futuro.
Um segundo ponto que permanece ambíguo é se realmente ocorrem os efeitos sobre a poupança que, dizem-se, os esquemas de capitalização têm. Cabe refletir se a poupança previdenciária compulsória elimina outras poupanças pessoais. E se o mito do “fundo de poupança” como pré-requisito para o investimento, desfeito totalmente por Keynes, está por ser resgatado.
Diante destas reflexões, será que os resultados iniciais foram alcançados (ou não) com as reformas na América Latina?
Em terceiro ponto, deve-se considerar o fato de que esquemas maduros de fundos de capitalização adquirem as mesmas características do sistema de repartição simples, tornando-se o seu equivalente econômico. As diferenças que permanecem são questões de conveniência e de administração.
Quarto ponto, os fundos adquirem um poder considerável com um grande volume de recursos acumulados, especialmente dentro de estruturas historicamente controladas por grupos financeiros nacionais e conglomerados estrangeiros, como tem sido o caso na América Latina.
Quais são então, as regras que garantem uma administração socialmente responsável desses fundos?
Compreendo que o desenvolvimento do financiamento da seguridade social, deve estar um passo adiante da “questão social” traduzida na pobreza, e combatida pelo modelo de Estado de Bem-Estar Social, pois sabemos que está foi uma política que surgiu como consequência de interpretações que acompanharam a evolução dos ideais socialdemocratas em um sentido amplo e que se baseava em uma estrutura corporativa e estatizante.
Entretanto, os custos das estruturas cada vez maiores da seguridade social aumentaram significativamente em uma época de crescente desemprego causado por mudanças nos padrões tecnológicos e de uma maior sensibilidade aos choques econômicos internacionais através da integração econômica global das sociedades.
As tendências de aumento da pobreza e da privação tanto em países desenvolvidos como no Terceiro Mundo, convergiram na direção de um modelo de Estado regulatório-subsidiário, no qual o Estado transferiria, na medida do possível, a função protetiva para as mãos do setor privado, sob o argumento que isto garantiria maior eficiência e custos menores.
Esses sistemas privados seriam complementados por uma política pública dirigida aos pobres, sendo baseado na ideologia liberal e dirigida aos ricos está, portanto, em acordo com o princípio da “subsidiariedade” doutrina social católica, complementada por um componente reduzido de Estado de Bem-Estar Social, dirigido aos pobres.
Apesar de suas atuais dificuldades e fraquezas, o financiamento da seguridade social na América Latina tem realizações verdadeiras que merecem reconhecimento.
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