Segundo o dicionário Priberam, contrafação é o “ato ou efeito de contrafazer, de reproduzir ou imitar fraudulentamente uma coisa, em prejuízo do autor ou do inventor” (2021). É neste mesmo sentido que o STJ, em julgado cuja decisão foi publicada no informativo de jurisprudência n. 666, conceituou contrafação como “a reprodução, no todo ou em parte, de marca registrada, ou sua imitação, quando a imitação possa induzir confusão” (2020).
Em síntese, produtos contrafeitos são aqueles que imitam, copiam ou plagiam outros; é o que vulgarmente se denomina de “pirataria”, prática que, conforme se verá a seguir, é cada vez mais comum na sociedade de consumo, em que adquirir produtos é motivo de realização pessoal e de aceitação social.
Consumir, outrora, visava suprir às necessidades da existência humana; consumia-se, pois, era preciso comer e beber; adquiria-se roupas, produtos de higiene pessoal, moradia, dentre outros, pois havia necessidade de tanto. Atualmente, consome-se como forma de satisfação de padrões pessoais e sociais, isto é, adquire-se produtos visando o valor social que eles detêm, para assim estar em consonância com os padrões impostos pela sociedade de consumo (DEL MASSO, 2011).
Bauman, refletindo sobre a modernidade líquida, explica bem a sociedade de consumo como uma realidade em que os sujeitos inseridos se rendem aos padrões impostos em busca de identidade e individualidade, que na verdade são inexistentes:
Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência de consumidor – a dependência universal de compras – é a condição sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de “ter identidade”. Num arroubo de sinceridade (ao mesmo tempo em que acena para os clientes sofisticados que sabem como é o jogo), um comercial de TV mostra uma multidão de mulheres com uma variedade de penteados e cores de cabelos, enquanto o narrador comenta: “Todas únicas; todas individuais; todas escolhem X” (X sendo a marca anunciada de condicionador). O utensilio produzido em massa é a ferramenta da variedade individual. A identidade – “única” e “indivisível” – só pode ser gravada na substância que todo mundo compra e que só pode ser encontrada quando se compra. Ganha-se a independência rendendo-se (2001, p. 108).
O consumo traz, então, o pertencimento, que está associado à identidade de cada indivíduo: cada produto consumido traz, na identidade do consumidor, uma reação deste frente ao bem que possui, mergulhado num universo de produtos e serviços, que deseja adquirir. Já se sente, então, integrado ao sistema, mas se não pode adquiri-los fará parte de uma dissonância com o sistema vigente na sociedade de consumo (SILVA, 2014).
“Parece que as imposições sociais de convivência estabelecem os mecanismos de integração social, sendo que o desrespeito traz o isolamento” (DEL MASSO, 2011, p. 30). Em outros termos, o mercado de consumo impõe ao consumidor padrões, e a sociedade os adota como forma de identidade do grupo; se o sujeito se amolda, pertence a ele, e, em caso contrário, estará alheio à realidade.
Concluindo, o consumo que outrora tinha por fundamento a sobrevivência, passa a encontrar seu fim nos desejos humanos, de satisfação e de aceitação, próprios e do meio em que vive.
Ocorre que se há procura, há demanda. Partindo-se deste pressuposto, e se valendo dele, o mercado tira proveito da sociedade de consumo, pois para se consumir é necessário pagar, e a finalidade mercadológica é a obtenção de lucro. Assim sendo, a ideia de sociedade de consumo é cada vez mais amplificada, alargada, pois quanto mais os fornecedores de produtos põem em circulação artigos diversos, que impõe novos padrões, maior a instigação do desejo dos consumidores de adquirirem:
O capitalismo inventa as necessidades, que se reproduzem de forma progressiva na sociedade, fazendo com que cada indivíduo tenha sonhos artificiais e necessidades que não fazem sentido, que não existem. O consumidor não tem a capacidade de analisar criticamente cada ato de consumo: “seria ele por necessidade ou por mera vontade?” A motivação para consumir nasce a partir de necessidade impostas pelo sistema capitalista (SILVA, 2014, p. 29).
Ressalta-se que aqui não se está advogando pela ideia de que apenas atualmente o consumo é praticado com fim, simplesmente, no desejo humano. O que se está a dizer é que na sociedade de consumo há, muito mais evidente, a necessidade da pessoa humana de se afirmar, por meio do consumo. Neste sentido, bem disse Silva (2014, p. 107), parafraseando Descartes, e com objetivo de retratar o cenário presente: “sou consumidor, logo existo”.
Artigos de luxo refletem informações sobre seu usuário, que os utiliza para transmitir mensagens de poder, status social e identificação (SANTOS, 2013). Acontece que nem todos – e na verdade a minoria apenas – têm condições socioeconômicas de atender aos padrões de consumo; basta se observar a discrepância entre o preço de um artigo, como, por exemplo, vestuário ou calçado, produzido por uma grife, cuja marca traz consigo “status social”, e outro cuja marca seja desconhecida. Neste contexto, a única via de acesso possível para satisfazer às necessidades de autoafirmação e de afirmação social é a contrafação.
Consigna-se que o fator econômico não é o único que leva consumidores a adquirir produtos contrafeitos. Nas lições de Santos, “os consumidores ávidos de experimentar novos produtos são os mais predispostos à compra de falsificações, já que, por via de um preço mais acessível, satisfazem o seu desejo assim como a necessidade de novas experiências” (2013, p. 22); o que se percebe é que, de fato, o fator da possibilidade econômica influência na aquisição de produtos contrafeitos. Porém, há também o fator da comodidade econômica, quando o consumidor embora tenha acesso e possibilidade de adquirir produtos autênticos, opta pelo falsificado por motivos de conveniência, visando gastar menos.
Enfim, na sociedade de consumo, em que se consome para existir enquanto indivíduo, e para ser aceito pelo meio, prega-se que vale tudo, inclusive, adquirir falsificações, imitações, produtos contrafeitos.
REFERÊNCIA
BAUMAN, Zygmunt. Trad. Plínio Dentzien. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DEL MASSO, Fabiano. Curso de direito do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
PRIBERAM. Dicionário, 2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/Contrafa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 15 mar. 2023.
SANTOS, Claudino C. Contrafação ou a motivação que nos conduz. Orientador: Pedro Ferreira. 2013. Dissertação (Mestrado) - Escola Superior de Porto, Porto, 2013.
SILVA, Daisy Rafaela da. O consumo na pós-modernidade: efeitos nas classes “D” e “E”. Campinas: Alínea, 2014
STJ. Informativo n. 666, 2021 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisar&livre=1.719.131-MG&operador=e&b=INFJ&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 14 jun. 2022.