A disciplina jurídica dos campos de altitude em Santa Catarina

30/03/2023 às 18:04

Resumo:


  • A pecuária de corte em Santa Catarina se desenvolve há séculos, principalmente na região serrana e do oeste do estado.

  • O pastoreio nos campos era a principal forma de alimentação do rebanho, impulsionando a produção de carne bovina local.

  • A região foi altamente antropizada, com a introdução de novas espécies de forrageiras e regulamentação do uso dos campos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A pecuária de corte no Estado de Santa Catarina tem se desenvolvido ao longo de séculos. Inúmeras propriedades rurais, especialmente no planalto catarinense, têm se desenvolvido a partir desta atividade. É tipicamente a região serrana e do oeste catarinense que tem abraçado essa atividade desde há muito.

Neste período todo, a atividade do pastoreio nos campos foi a principal forma de alimentação do rebanho, beneficiando também as indústrias locais de produção de carne bovina, em especial.

Assim, a região foi altamente antropizada, uma vez que, no início da colonização, pouca tecnologia havia para que se pudesse falar em campos melhorados. Os campos rústicos, então, foram utilizados para o fornecimento de alimento para a criação em geral.

Agreguemos a isso o manejo tradicional pelo fogo. Juntos, o pastejo, o manejo pelo fogo e a adição de novas espécies de forrageiras demonstram a presença humana nos locais, incompatível com o conceito de remanescentes, vez que evidenciam alto grau de antropização.

Naquela época pouco se falava em proteção de campos de altitude. Mesmo para outros tipos vegetacionais do bioma Mata Atlântica catarinense pouca ou nenhuma proteção havia, resultado também da intenção do Estado no desenvolvimento, numa boa parte dos casos até incentivando (incluindo incentivos fiscais) culturas e ocupações, de maneira que raros remanescentes vegetacionais se mantiveram intocados, ou seja, em estágio primário de conservação.

O tempo se passou e a necessidade da efetivação de proteções foi se consolidando, e também tornou-se agenda política legislativa. Daí surgiram diversos diplomas legais, incluindo um código florestal (1965) e um decreto tratando do bioma Mata Atlântica.

Nas propriedades, também, novas gerações de agricultores foram aportando e novas necessidades surgiram, em especial aquelas aliadas a uma melhor produtividade, de onde os campos melhorados passaram a ser uma realidade, quer dizer, campos aonde novos tipos de forrageiras foram introduzidas (até mesmo exóticas) para que a conversão dessa massa vegetal em carne bovina fosse otimizada no pastoreio do rebanho. Obviamente que, havendo intervenção humana, não são mais campos primários e nem mesmo secundários em seus diversos estágios de regeneração!

Aliando a necessidade de conservação com a viabilidade de uso uma nova gama de normas surgiu, de maneira que o uso intensivo dos campos passou a ser mais regulado.

A legislação, a partir da Constituição Federal de 1.988, passou a ser atributo das três esferas da federação: União, Estados e Municípios, de maneira que, para a União, caberia a normatização geral e aos estados e municípios o regramento particularizado.

No tema específico deste artigo o regramento básico é o Código Florestal Brasileiro, A lei da Mata Atlântica, a Lei de Crimes Ambientais, a lei de Política Ambiental Brasileira, e, no estado de Santa Catarina, o código ambiental catarinense.

Como regra geral a Lei da Mata Atlântica, que assumiu a diretiva do tema revogando o decreto 750/93 que jazia pendurado no código florestal anterior (lei 4.771/65), determinou que os remanescentes de vegetação do bioma (aí incluídos os campos de altitude) deveriam ser protegidos e elencou atributos e condições de identificação desses remanescentes, PORÉM não abraçou todos os atributos, abrindo espaço para que as unidades da federação e os municípios ampliassem a caracterização.

Estranhamente, ou quem sabe propositadamente, o atributo “altitude” faltou na norma geral, em especial no caso denominado campos de “altitude”.

Tampouco a legislação federal disse o que seria um remanescente, apesar de ter regrado que tais vegetações teriam estágios de sucessão, e seriam classificadas como “primárias” (praticamente nenhuma intervenção humana) e secundárias em estágio avançado, médio e inicial de regeneração.

Para cada um desses estágios a lei e as normas associadas permitem e regulam determinado tipo de uso, ENTRETANTO, a lei o faz para os remanescentes, e isso está EXPRESSO na própria lei! (Sabemos, do ditado jurídico, que in claris cessat interpretatio).

Vejamos (da Lei da Mata Atlântica):

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se integrantes do Bioma Mata Atlântica as seguintes formações florestais nativas e ecossistemas associados, com as respectivas delimitações estabelecidas em mapa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, conforme regulamento: Floresta Ombrófila Densa; Floresta Ombrófila Mista, também denominada de Mata de Araucárias; Floresta Ombrófila Aberta; Floresta Estacional Semidecidual; e Floresta Estacional Decidual, bem como os manguezais, as vegetações de restingas, campos de altitude, brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste.                 (Vide Decreto nº 6.660, de 2008)

Parágrafo único. Somente os remanescentes de vegetação nativa no estágio primário e nos estágios secundário inicial, médio e avançado de regeneração na área de abrangência definida no caput deste artigo terão seu uso e conservação regulados por esta Lei. (grifo nosso)

O artigo 2º é de clareza cristalina!

Os remanescentes “podem” estar nos locais identificados no mapa do IBGE (“podem”), e somente serão protegidos os “saldos” de vegetação (“os remanescentes”).

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ALÉM DISSO a lei nomina campos de altitude, de maneira que, ao nominar o termo por completo deixou propositadamente de regrar outros tipos de campos porventura existentes! (quando a lei define ela cria como que um conjunto, nos termos matemáticos da palavra, e o que está fora do conjunto não pertence!)

Não há muito mais a dizer a respeito, MENOS para o estado de Santa Catarina, que aprofundou a proteção e regulou o uso dos campos de altitude “não remanescentes”, ou seja, dos campos de altitude que já não são mais vegetação primária ou secundária em qualquer estágio!

Fez também o que se espera em termos de proteção ambiental: protegeu e regulou o uso dos remanescentes desse instituto.

A legislação catarinense, cumprindo prerrogativa constitucional, (1) definiu o termo remanescente, (2) agregou nos atributos de campos de altitude o parâmetro altitude e (3) regulou os estágios sucessionais, tudo a bem da segurança jurídica que deve contemplar o tripé econômico-ambiental-social, e essa atitude foi ratificada pelo tribunal de justiça do estado na ADI 8000030-60.2017.8.24.0000, que evocou também o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em sede de Recurso Extraordinário, assim decidindo:

“ART. 28, INCISOS VII E XV DA LEI ESTADUAL. DEFINIÇÃO DE ÁREA URBANA CONSOLIDADA E CAMPOS DE ALTITUDE. ART. 16-C, 2º, DA LEI FEDERAL Nº 13.465-2017 DEFINE ÁREA URBANA CONSOLIDADA. EDIÇÃO DA NORMA ESTADUAL, CONTRARIANDO OS CRITÉRIOS MÍNIMOS CARACTERIZADORES DA ÁREA URBANA CONSOLIDADA, VEICULADOS NA LEI FEDERAL CITADA. CAMPOS DE ALTITUDE. LEI FEDERAL Nº 11.428/2006 QUE NÃO DEFINE CAMPOS DE ALTITUDE, NEM MESMO ESTABELECE OS AMBIENTES EM QUE ESTÃO SITUADOS OU AS FAIXAS DE ALTITUDE CORRESPONDENTES A ESTA ESPÉCIE DE FORMAÇÃO FLORESTAL. SILÊNCIO DA LEI FEDERAL EM ESTABELECER NORMAS DE CARÁTER GERAL. CÓDIGO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE COM COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PLENA, CONFERIDA PELO ART. 24, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECLARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO VII E RECONHECIMENTO DA CONSTITUCIONALIDADE DO INCISO XV, AMBOS DO ART. 28, DA LEI ESTADUAL Nº 14.675/2009. (grifo nosso) (RE 1264788 – 13/07/2021)”

Para finalizar esse trabalho, que é uma visão panorâmica do regime jurídico de campos de altitude no Brasil e, em especial no estado de Santa Catarina, nos cabe dizer que campo de altitude, juridicamente falando, é um instituto diferente de campos gerais, campos nativos, ou campos “qualquer que seja o nome”, justamente porque, quando o mundo técnico é “legislado” a norma assume abstratamente o instituto criado, ficando a técnica em um segundo plano, tudo por opção do sistema jurídico e do legislador...

Por isso há um inconformismo de muitos da área ambiental a dizer que os campos de altitude estariam desprotegidos, especialmente no estado de Santa Catarina, quando, o que ocorre, é exatamente o contrário, nenhum estado regulou tão profundamente o tema quanto o nosso, de maneira completa.

Agora, se o legislador optou, em sede federal ou estadual ou mesmo municipal, em deixar sem regramento os “outros” campos, não nos cabe a abordagem pois trata-se de uma opção de um dos poderes da república (legítimo, diga-se de passagem).

MESMO ASSIM, em sede de caso concreto, não se está a pé, porque o sistema jurídico, em sua plenitude hermética, quando acionado numa determinada situação (ainda mais situação ambiental) aonde exista um suposto vácuo jurídico (lacuna da lei), pode completar o sistema usando a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

E o CONAMA, Batman?

O CONAMA estabelece as regras aonde uma unidade da federação não legislou, uma vez que também já é tranquilo dizer que as leis em sentido estrito (norma emanada do poder legislativo) assumem as rédeas quando em conflito com as resoluções desses órgãos colegiados.

Este o nosso modesto entendimento.

Sobre o autor
Julis Orácio Felipe

Julis Orácio Felipe é advogado em Joinville, Santa Catarina, especializado na área ambiental e pós graduado em administração com ênfase em Contralodoria e Custos, ex conselheiro do Conselho Estadual de Meio Ambiente de Santa Catarina - CONSEMA/SC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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