O livro de Dinamarco, de modo geral, é um estudo sobre outra perspectiva do processo. O autor é contrário a visão de que o direito processual desfruta de total autonomia em relação ao direito material. Dinarmarco se contrapõe a idéia de que o processo é um fim em si mesmo, combate a percepção do processo através da técnica pela técnica. O célebre professor se opõe a perspectiva autonomista ou cientificista em favor da perspectiva da instrumentalidade do processo.
A leitura do livro possibilita perceber a visão de que o processo é um instrumento que visa tutelar o direito material, onde a técnica existe a serviço de um fim, a justiça. Da leitura de Dinamarco é possível inferir que existe uma ética no processo e que o mesmo tem a finalidade de pacificação social.
A compreensão da obra faz refletir sobre o atual momento de transição de perspectivas, migrando da perspectiva autonomista para a da instrumentalidade do processo. De fato, a transição ainda não ocorreu de modo efetivo. Ainda há o apego excessivo a aplicação rígida da técnica pela técnica, vide a comprovação através da nossa própria atuação nos estágios curriculares nos diversos órgãos do judiciário, em que alguns operadores do direito prezam apenas pela forma e relegam o escopo da justiça. Todavia, percebe-se que é latente um pensamento moderno, uma intenção instrumentalista de que a técnica serve para dar resultados, para promover a maior quantidade de justiça possível. Essa nova concepção, delineada por Dinamarco ganha terreno entre os processualistas e operadores do direito.
Ampliando o estudo desse livro, percebeu-se que a visão do jurista em questão, foi preconizada por Guiseppe Chiovenda que já afirmava que o ideal do processo deveria ser “dar a quem tem direito” o quanto possível e, de forma prática, tudo e exatamente aquilo que tivesse direito. Desse modo, os autores convergem afirmando que o processo, instrumento de realização dos direitos, somente obtém êxito integral em seu mister quando for capaz de gerar, na realidade social, resultados idênticos aos que decorreriam do cumprimento natural e espontâneo das normas jurídicas.
Dinamarco também coaduna-se com outros estudiosos contemporâneos como Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery que assim lecionam:
O juiz deve desapegar-se do formalismo, procurando agir de modo a propiciar às partes o atingimento da finalidade do processo. Mas deve obedecer às formalidades do processo, garantia do estado de direito. [...] O Código adotou o princípio da instrumentalidade das formas, segundo o qual que importa é a finalidade do ato e não ele em si mesmo considerado. Se puder atingir sua finalidade, ainda que irregular na forma, não se deve anulá-lo.1
Nesse âmbito, é salutar destacar que a concepção do processo por Dinamarco alia-se às idéias de Mauro Cappelletti e Bryant Garth na obra Acesso à Justiça. Os três brilhantes pensadores compartilham da apreensão de que é necessário pensar o processo dentro de uma conjuntura social, política, histórica e cultural.
Os autores defendem que para atingir tal finalidade, deve prevalecer o princípio da instrumentalidade das formas, pois se o ato tiver atingido o seu objetivo (as formas são instrumentos com vistas a certa finalidade), não importa a inobservância da forma.
Segundo Dinamarco, a instrumentalidade das formas é um método de pensamento referente aos vícios dos atos processuais. O autor afirma que se a lei diz que certo ato deve ter determinada forma é porque o legislador teologicamente pensou em alcançar objetivo daquele ato de forma pré-determinada.
O pensador exemplifica da seguinte maneira, por exemplo, a citação deve ser feita na residência da pessoa, o oficial de justiça deve ir até lá etc. O princípio da instrumentalidade das formas prega que, se o ato tiver atingido o seu objetivo (as formas são instrumentos com vistas a certa finalidade), não importa a inobservância da forma. A coisa mais importante, no entanto, é a citação em si, se não o indivíduo não saberá que tem um processo contra ele. Mas se não foi citado e, mesmo assim, compareceu e contestou, é porque de algum modo sabia do processo. O objetivo foi alcançado. Eis a instrumentalidade das formas.
Em síntese, Cappelletti e Garth, de maneira análoga a Dinamarco, alegam que de maneira nenhuma se pode aceitar que em nome da aplicação de técnicas processuais, um inocente venha a ser condenado ou o que é igualmente gravoso, que um culpado seja absolvido. Vale transcrever de forma idêntica as sábias palavras de Dinarco que atestam tal posicionamento:
Não basta afirmar o caráter instrumental do processo sem praticá-lo, ou seja, sem extrair desse princípio fundamental e da sua afirmação os desdobramentos teóricos e práticos convenientes. Pretende-se que em torno do princípio da instrumentalidade do processo se estabeleça um novo método do pensamento do processualista e do profissional do foro. O que importa acima de tudo é colocar o processo no seu devido lugar, evitando os males do exagerado processualismo e ao mesmo tempo cuidar de predispor o processo e o seu uso de modo tal que os objetivos sejam convenientemente conciliados e realizados tanto quanto possível. O processo há de ser, nesse contexto, instrumento eficaz para o acesso à ordem jurídica justa.
Voltando ao tema da instrumentalidade das formas, todavia, agora fazendo alusão aos capítulos finais da obra, percebeu-se que o autor fez aproximações entre tal princípio e o aspecto negativo da instrumentalidade do processo. O negativo está relacionado à negação do processo como valor em si mesmo e repúdio aos exageros processualísticos a que o aperfeiçoamento da técnica pode insensivelmente conduzir. Também é importante, já que comentado o aspecto negativo, fazer breve comentário sobre o aspecto positivo. Tal perspectiva é marcada pela preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo de proveito quanto à obtenção dos resultados propostos.
Na segunda parte do livro, principalmente nos capítulo IV ao VII, o autor esclarece que o processo possui suas finalidades sociais e políticas, isto é, esse instrumento não está restrito apenas a finalidades jurídicas. Assim, entende-se que o processo deve ser encarado como instrumento de que se serve o Estado a fim de alcançar seus objetivos, e, nesse sentido, é que se fala em escopos sociais, políticos e jurídicos (instrumentalidade positiva do processo).
Não obstante, o escopo jurídico do processo se situar presente na própria atuação da vontade concreta do ordenamento jurídico, segundo o autor, dois são os principais escopos sociais do processo: pacificar com justiça e educar a sociedade. Conforme já dito, o processo possui ainda escopos políticos, haja vista que, por intermédio do contraditório, o cidadão participa da formação dos atos estatais. Ademais, também através do processo, o Estado demonstra seu poder soberano, ao impor sanções àqueles que desrespeitam o direito positivo.
O autor de “A instrumentalidade do Processo” afirma que, hodiernamente, o procesualista moderno já têm consciência da necessidade de abandonar a visão exclusivamente interna do direito processual em seus institutos, princípios e normas, e que já tomou o posicionamento de buscar a ampliação das investigações instrumentalistas, todavi, ainda urge coordenar tais posições em torno de uma ideia central, que é, justamente, a instrumentalidade do sistema processual aos seus escopos sociais, políticos e jurídico.
Ainda no que tange a transição para a perspectiva instrumentalista mencionada anteriormente, vale dizer que essa só se tornará plena, ou melhor dizendo, apta a produzir um “processo justo” à medida que de maneira gradativa forrem sendo superadas as três ondas de acesso a justiça definidas por Mauro Capelletti e depois também explanadas por Ada Pellegrini como “ondas renovatórias”.
Assim, num primeiro momento, seria preciso garantir aos jurisdicionados um amplo acesso a justiça, ou seja, viabilização ao acesso a justiça aos pobres, pois o processo é extremamente caro e não se admite que por falta de dinheiro um cidadão deixe de perseguir o que é seu por direito, nesse aspecto é imprescindível a criação de mecanismos que permitam a inclusão, independentemente da condição econômica, do jurisdicionado ao acesso a justiça, caso contrário, estas pessoas ficarão excluídas da proteção jurisdicional. Visando a atendimento a está questão surge, por exemplo, a Lei da Assistência Judiciária Gratuita, os Juizados Especiais para causas de menor complexidade.
Numa segunda etapa, devido ao fato de viver-se numa sociedade de massa surge a necessidade de garantir a defesa aos direitos difusos (que se caracterizam por serem titularizados por uma pluralidade indeterminada de pessoas, como exemplo temos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) e os direitos coletivos (que se caracterizam por uma pluralidade determinada ou determinável de pessoas), para tal intento têm-se vários instrumentos que viabilizam estes direitos como a ação civil pública, mandado de segurança coletivo, ação popular.
Por fim, a terceira onda a ser concretizada busca a plena satisfação dos jurisdicionados com a criação de mecanismos para que a justiça seja cada vez mais eficaz, tenha celeridade e efetividade, assim, as reformas processuais são importantes, mas, é necessário também pensar um processo mais moderno e eficiente, com o objetivo de apresentar uma solução justa, adequada e efetiva ao jurisdicionado.
Portanto, para a transição para a perspectiva da instrumentalidade mister se faz a aplicação das ondas renovatórias, com o acesso a justiça sem obstáculos, quer seja de origem econômica quer seja de origem formal, o resultado há de ser sempre um “processo justo e efetivo”.
Todavia, nesse âmbito, é de extrema importância ressaltar que a instrumentalidade do processo não significa desobediência às leis, mas, sim propiciar um processo civil de resultados e efetividade. A visão instrumentalista repudia o conceitualismo, o garantismo exacerbado ao jurisdicionado e ao positivismo jurídico, e adota como método de trabalho o uso dos princípios constitucionais como ponto de partida, onde o princípio do devido processo legal tem a missão organizatória como meio de acesso a uma “ordem jurídica justa”.
Também é bastante interessante dentro da obra, a análise que o autor faz sobre o direito processual constitucional. Por meio de Dinamarco foi possível compreender que a Constituição tem sido de grande significado instrumentalista e de muita utilidade para a tomada de consciência da natureza instrumental do processo. Nesse contexto, são muito sapientes as constatações que Dinamarco faz ao afirmar que o processo é miniatura do Estado democrático ou microcosmos do Estado-de-direito. Ao conceituar desse modo, o célebre jurista quer dizer que o processo é construído através da liberdade e com abertura para a participação efetiva dos seus sujeitos, os quais são tratados segundo as regras da isonomia.
Por fim, na parte final da obra, o autor prima por deixar claro que a instrumentalidade já tão apregoada pela modernidade não significa repudiar os valores subjacentes à garantia constitucional da legalidade e do devido processo legal. Os operadores do direito devem estar norteados aos ditames da lei e devem saber que esta precisa ser interpretada teleologicamente para fazer justiça.
Notas
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 618.︎