Reis Friede[1]
Resumo: o debate que envolve o Jusnaturalismo e o Juspositivismo tem inspirado as reflexões de juristas e filósofos. Muito embora se possa afirmar que grande parte das históricas controvérsias associadas ao confronto entre o Direito Positivo e o Direito Natural já tenham sido superadas, subsistem inúmeros aspectos que merecem uma dedicação acadêmica. Não obstante opiniões divergentes, as quais pugnam pelo enfraquecimento teórico do assunto, o passar dos séculos demonstra justamente o contrário, posto não ter conseguido eliminar a estima dos pensadores pela temática ora desenvolvida. Deste modo, o presente artigo discorre sobre a transição do Jusnaturalismo para o Juspositivismo.
Palavras-chave: Direito Natural. Jusnaturalismo. Juspositivismo.
Abstract: The debate regarding Jusnaturalism and Juspositivism has been inspiring the reflections of jurists and philosophers for a long time. Although it may be affirmed that a great deal of the historical controversies associated to the confrontation between the Positive Law and Natural Law has already been overcome, there are numerous aspects which deserve an academic dedication. Notwithstanding divergent opinions, which struggle for the theoretical weakening of the subject, the passing of the centuries demonstrates precisely the opposite, given that it could not eliminate the esteem of the thinkers for the subject in discussion. Therefore, the current work analyses the transition from Jusnaturalism to Juspositivism.
Keywords: Natural Law. Jusnaturalism. Juspositivism.
1. Introdução
2. A Plurivocidade do Termo Positivismo
2. A Transição do Jusnaturalismo para o Juspositivismo: a Escola de Exegese e a Escola Histórica
4. Conclusão
5. Referências Bibliográficas
1. Introdução
NOBERTO BOBBIO, aludindo às pesquisas empreendidas por KUTTNER, afirma que o primeiro uso da fórmula Direito Positivo (jus positivum) teria ocorrido pelas mãos de ABELARDO, filósofo medieval do fim do século XI, registrando, outrossim, que investigações anteriores apontavam que o emprego inaugural de tal expressão teria sido por DAMASO, nos idos do século XII. Para ABELARDO, segundo narra BOBBIO (1995, p. 19), o Direito Positivo illud est quod ab hominibus istitutum, ou seja, apresenta como característica o fato de ser posto pelo ser humano, ao contrário do Direito Natural, posto por algo ou alguém que está além dele, como a natureza ou Deus.
Contemporaneamente, a expressão Direito Positivo pode ser definida como o conjunto de normas jurídicas estabelecidas com o fim de regular a vida em sociedade. É o Direito cuja elaboração depende da vontade humana, revelando-se através da forma escrita (lei) ou não-escrita (norma consuetudinária, norma costumeira ou costume jurídico). É, ainda, o Direito institucionalizado, passível de ser imposto coercitivamente, abarcando a Constituição, as leis, os códigos, os tratados, as medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções, os decretos, as portarias, etc.
Tal conjunto de normas jurídicas, como se vê, é criado a partir de decisão humana, seja através da atuação estatal (o processo de produção normativa, por exemplo), seja de modo socialmente difuso, por meio do qual se forjam os denominados costumes jurídicos. Assim, a análise do Direito Positivo de um dado país permite compreender as nuances de uma sociedade, mormente se considerarmos a essência do brocardo ubi societas, ibi jus (“onde está a sociedade, está o Direito”). Com efeito, diante do poder soberano inerente ao Estado, cada país estabelece, no âmbito do respectivo território estatal, e em atenção à realidade social, o pertinente Direito Positivo, revelador, em última análise, do modo de ser de uma determinada comunidade.
2. A Plurivocidade do Termo Positivismo
Ao definir o termo em destaque, BOBBIO (1995, p. 15) adverte que não se deve confundi-lo com o denominado Positivismo Filosófico, explicando, ainda, que tal designação advém da expressão Direito Positivo, empregada em contraposição à noção de Direito Natural.
De sua parte, DINIZ (2000, p. 102) também reconhece a plurivocidade do termo em exame, que tanto pode designar o chamado Positivismo Sociológico (ou Sociologismo Eclético, de AUGUSTO COMTE, bem como as perspectivas teóricas que a ele se assemelham) como o estrito Positivismo Jurídico, o qual, ao “arredar o direito natural, procura reconhecer tão-somente o Direito Positivo, no sentido de direito vigente e eficaz em determinada sociedade, limitando assim o conhecimento científico-jurídico ao estudo das legislações positivas, consideradas como fenômenos espácio-temporais”.
SGARBI, fazendo alusão às lições de BOBBIO, afirma que o Positivismo Jurídico tem historicamente se revelado como um “método do estudo do Direito”, como uma “teoria do Direito” e como uma “ideologia do Direito”, ensejando, respectivamente, o Positivismo Metodológico, o Positivismo Teórico e o Positivismo Ideológico, assim explicados:
“1) ‘Positivismo jurídico como método’: segundo BOBBIO, o positivismo jurídico como método diz respeito ao modo como os positivistas jurídicos delimitam o objeto de suas pesquisas e, por conseguinte, a função que atribuem à pesquisa que empreendem. Dessa maneira, é possível caracterizar o positivismo jurídico pela distinção comum aos positivistas entre ‘direito real’ e ‘direito ideal’, isto é, entre o direito considerado como ‘fato’ (o direito que é) e o direito considerado como ‘valor’ (o direito que deveria ser ou que se gostaria que fosse). O objetivo desta distinção é relevante para o jurista positivista porque ele estuda o direito ‘real’, o direito tal como se apresenta nas ordens jurídicas. Portanto, sua preocupação não é com o conteúdo do que descreve, porquanto podem estar em sua análise prescrições que ofendam um ‘ideal valorativo’, como, também, pode estar em sua análise algo consentâneo com esse ‘ideal’. ‘Estar’ em ‘conformidade’ com certo ‘ideal valorativo’ ou ‘não estar’ em ‘conformidade’ com este ‘ideal valorativo’ não influencia sua atividade;
2) ‘positivismo teórico’: como teoria, afirma BOBBIO que o positivismo jurídico expressa um conjunto de formulações sobre a ‘natureza do direito’. Seis itens resumem seus aportes principais: a) a teoria da coatividade (que supõe que a força é um elemento essencial e típico do direito); b) a teoria imperativista (as normas jurídicas são comandos); c) a supremacia da lei (as demais ‘fontes’ do direito são subordinadas à lei; d) a teoria da coerência (a defesa da ausência de contradições entre as normas que compõem o ordenamento jurídico); e) a teoria da plenitude (que nega que haja lacunas no direito); e f) a interpretação mecanicista (que considera ser a interpretação jurídica apenas silogística);
3) ‘positivismo ideológico’: segundo BOBBIO, o mais exato seria chamar esta teoria de ‘positivismo moral’, porque ela estatui a obediência moral de atender ao direito. Há duas versões para esta teoria: a) ‘versão forte’: estabelece a obediência incondicional ao direito não importando o que nele é prescrito; b) ‘versão moderada’ ou ‘fraca’: afirma que o direito serve, por sua mera existência, à realização de determinados valores que consagra (ordem, paz social, segurança, justiça legal etc.), independentemente da justiça substancial de suas normas.” (SGARBI, 2007, p. 714-715)
STRUCHINER (2005, p. 25), por sua vez, recorda que a elocução Positivismo Jurídico tem sido utilizada para traduzir formulações teóricas até mesmo inconsistentes sob o prisma jusfilosófico, algumas delas rechaçadas por pensadores havidos como ícones do tema em questão. Compilando as mais diferentes abordagens sobre o assunto, o aludido autor refere-se às seguintes:
a) Positivismo Jurídico como ceticismo ético, que inadmite a existência de princípios morais e de justiça válidos universalmente e acessíveis à razão humana.
b) Positivismo Jurídico como positivismo ideológico, segundo o qual o Direito Positivo, qualquer que seja o conteúdo das normas nele contidas, ostenta validade ou força moral obrigatória, razão pela qual seus destinatários devem, por força de um dever moral, obedecer aos ditames positivamente estabelecidos, independentemente de seu conteúdo.
Destarte, ainda de acordo com STRUCHINER (2005, p. 26), e sob a ótica do positivismo de matiz ideológico, um dado sistema normativo, para que possa ser etiquetado como Direito (ou, da mesma forma, para que uma norma possa ser qualificada como jurídica) não necessita passar por algum crivo inspirado a partir de critérios de moralidade; por conseguinte, juízes e sujeitos jurídicos estão moralmente obrigados a render obediência ao Direito Positivo.
Nesse particular, BOBBIO defende que a denominação mais exata de tal concepção (ideológica) deveria ser positivismo moral, na medida em que ela preconiza a obediência moral de atender ao Direito, perspectiva que se desdobra em duas variantes: a versão forte, que estabelece a obediência incondicional ao Direito, não importando o que nele é prescrito, e a versão moderada ou fraca, que “afirma que o Direito serve, por sua mera existência, à realização de determinados valores que consagra (ordem, paz social, segurança, justiça legal etc.), independentemente da justiça substancial de suas normas” (SGARBI, 2007, p. 715).
c) Positivismo Jurídico como formalismo jurídico, abordagem segundo a qual o Direito compõe-se (exclusiva ou predominantemente) de normas promulgadas (explicita e deliberadamente) por órgãos legislativos e não por normas consuetudinárias ou jurisprudenciais, do que se depreende que tal sistema normativo ostenta as seguintes nuances: é fechado (o conjunto de normas estabelecidas pelo Poder Legislativo exaure o Direito); é completo (ausência de lacunas); é consistente (ausência de contradições e antinomias normativas); é preciso (ausência de ambiguidades sintáticas); e é autossuficiente (no sentido de prever, para cada caso, uma solução única) (STRUCHINER, 2005, p. 31).
d) Positivismo Jurídico como positivismo conceitual. Em tal percepção, conforme STRUCHINER, quando da identificação do Direito, não se deve empregar critérios valorativos, mas, sim, fáticos/empíricos/objetivos; deve-se, pois, atentar para a neutralidade, justamente o que possibilita identificar e descrever o Direito de um determinado grupo social sem se comprometer valorativamente com o conteúdo das normas jurídicas. Assim, um sistema jurídico (ou mesmo uma norma nele contida) pode ser injusto, o que não lhe retira o atributo da juridicidade (STRUCHINER, 2005, p. 32).
3. A Transição do Jusnaturalismo para o Juspositivismo: a Escola de Exegese e a Escola Histórica
O século XVIII é crucial para o início do declínio das teorias jusnaturalistas, ocasião em que grandes filósofos e juristas começam a desenvolver diversas concepções juspositivistas do Direito, cujo aspecto central e comum corresponde exatamente à rejeição das ideias que concebem a existência de um Direito Natural. Historicamente, conforme assevera BOBBIO (1995, p. 27), a transição do Jusnaturalismo para o Juspositivismo guarda relação com a formação dos Estados Modernos, fenômeno no qual se observou um processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado. Recorda o autor italiano que, naquela quadra, “a sociedade medieval era constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais, cada um deles dispondo de um Ordenamento Jurídico, produzido pela própria sociedade”. Igualmente, FERRAZ JR. (2015, p. 49-51), ao advertir que “há um sentido filosófico e um sentido sociológico de positivação”, explica que o primeiro “designa o ato de positivar”, vale dizer, a ação de “estabelecer um Direito por força de um ato de vontade”, enquanto que a segunda significação traduz um fenômeno que, no século XIX, “será representado pela crescente importância da lei votada pelos parlamentos como fonte do Direito”.
Sintetizando o pensamento daquela época, AGUIAR (2004, p. 146) preceitua que a “colocação da lei no patamar de um comando estratificado, abstrato e absolutamente coercitivo atendia certamente ao reclamo da sociedade da época, em repúdio aos desmandos e extravagâncias produzidos pelo Absolutismo”. Com feito, o valor da segurança jurídica, em tal conjuntura, adquire relevante dimensão, o que somente poderia ser alcançado pelo primado da lei. É neste contexto, pois, que surge o Positivismo Jurídico, em sua contraposição ao Jusnaturalismo. No mesmo sentido, BARZOTTO ilustra que o Positivismo Jurídico, enquadrado no paradigma cientificista, possui como promessa teórica a segurança:
“No Estado Liberal, o valor dado à segurança alcança um patamar superior àquele realizado pelo Estado Absolutista. Neste último, o Estado fornece segurança contra a ação dos outros indivíduos. No Estado Liberal, a ordem jurídica garante a segurança do indivíduo contra o próprio Estado.” (BARZOTTO, 2007, p. 15)
A expressão Positivismo Jurídico, desta feita, pode ser sucintamente definida como a doutrina que inadmite a existência de qualquer outro Direito senão o denominado Direito Positivo, isto é, aquele estabelecido pelo Estado, opondo-se, portanto, ao Jusnaturalismo. Neste contexto, o Direito passa a ser concebido como decorrência da exclusiva vontade humana, fruto da atuação estatal, fenômeno que, segundo um segmento doutrinário, conduziu ao enfraquecimento teórico do Direito Natural, dado histórico observado, por exemplo, nas denominadas Escolas de Exegese (França) e Histórica do Direito (Alemanha), ambas percebidas, de um modo geral, como precursoras do Positivismo Jurídico, cuja construção teórica contou com as reflexões de verdadeiros expoentes da Filosofia do Direito.
A Escola da Exegese (que correspondeu, na Alemanha, à chamada Escola Histórica, e, na Inglaterra, à Escola Analítica) é frequentemente mencionada como uma das mais incipientes correntes positivistas surgidas ao longo da história do Direito. De seu inaugural surgimento na França do século XIX, notadamente à época da promulgação do Código Napoleônico (1804), diploma através do qual se procedeu à unificação do Direito Civil do referido país, o Exegetismo (que reuniu os mais renomados juristas franceses daquela quadra, tais como PROUDHON, BUGNET, DEMOLOMBE, POTHIER e outros) difundiu-se pela Europa Continental.
Relativamente ao que interessa no âmbito de uma abordagem juspositivista, impende registrar que a Escola de Exegese, em linhas gerais, apregoou uma nova concepção no modo através do qual o Direito deveria ser interpretado pelo jurista, a quem competiria, sob tal perspectiva, tão somente aplicar as normas legais ditadas pela vontade do legislador, enfatizando, pois, o método de ensino jurídico calcado exclusivamente na lei, idealizada como genuína manifestação da vontade geral do povo.
DINIZ, ao analisar as formulações teóricas trazidas à baila pela Escola de Exegese, principalmente sob o prisma do dualismo Direito Natural – Direito Positivo, explica que:
“A ciência do direito, no século XIX, encontra sua expressão mais característica no exegetismo. Para a escola da exegese, a totalidade do direito positivo se identifica por completo com a lei escrita; com isso a ciência jurídica se apegou à tese de que a função específica do jurista era ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. Todavia, é preciso não olvidar que o exegetismo não negou o direito natural, pois chegou a admitir que os códigos, elaborados de modo racional, eram expressão humana do direito natural, por isso o estudo do direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos. Visavam os franceses a construção de um sistema normativo estruturado de acordo com as normas da natureza, com o escopo de assegurar os direitos subjetivos fundamentais do homem, que lhe eram inerentes. O estudo do Código Civil seria a concretização desse ideal jusnaturalista. A lei e o direito constituem uma mesma realidade, pois a única fonte do direito é a lei e tudo o que estiver estabelecido na lei é direito.” (DINIZ, 2000, p. 50)
Destarte, sob a perspectiva da Escola de Exegese, o Código nada deixava ao arbítrio do intérprete, sendo considerado, pois, uma obra absolutamente perfeita, entendimento que, por ser deveras equivocado, deu margem a rigorosas críticas ao exegetismo legalista, tal como a formulada pela Escola Histórica.
Argumenta NADER (2017, p. 13) que a “Escola Histórica do Direito, de formação germânica, criada no início do século XIX, valorizou e deu grande impulso aos estudos históricos do Direito”, sendo certo que, para esta Escola, “o Direito era um produto da História.” REALE, ao situar temporalmente a Escola Histórica, alude às diversas conquistas tecnológicas alcançadas pela humanidade no decorrer do século XIX, quando se “operou a revolução técnica, especialmente através dos grandes inventos no plano da Física e da Química e das aplicações de natureza prática, notadamente através da utilização da força a vapor e, depois, da eletricidade”, o que fez com que a vida social se alterasse profundamente, provocando, assim, um “compreensível desajuste entre a lei, codificada no início do século XIX, e a vida com novas facetas e novas tendências”. Diante de tal transformação, explica REALE (2002, p. 283-284), as “pretensões de ‘plenitude legal’ da Escola de Exegese pareceram pretensiosas”, tendo em vista que, frequentemente, surgiam problemas sobres os quais os legisladores do Código Civil não haviam cogitado.
“Por mais que os intérpretes forcejassem em extrair dos textos de uma solução para a vida, a vida sempre deixava um resto. Foi preciso, então, excogitar outras formas de adequação da lei à existência concreta.
Foi especialmente sobre a inspiração da Escola Histórica de SAVIGNY que surgiu outro caminho, a chamada interpretação histórica. Sustentaram vários mestres que a lei é algo que representa uma realidade cultural, – ou, para evitarmos a palavra cultura, que ainda não era empregada nesse sentido –, era uma realidade histórica que se situava, por conseguinte, na progressão do tempo. Uma lei nasce obedecendo a certos ditames, a determinadas aspirações da sociedade, interpretadas pelos que a elaboram, mas o seu significado não é imutável.” (REALE, 2002, p. 283-284)
VENOSA (2006, p. 56, 58-59), por sua vez, confere à Escola Histórica do Direito (representada, principalmente, pelos jusfilósofos alemães GUSTAV VON HUGO, FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY e GEORG FRIEDRICH PUCHTA) o mérito de ter, pela primeira vez, repelido frontalmente o Direito Natural, aumentando, assim, “o abismo entre a teoria e a prática do Direito, que vinha do início do Jusnaturalismo”, de modo que “aquilo que a razão representara para os adeptos do Direito Natural passou a ser substituído pelos fenômenos históricos”.
Segundo afirma FERRAZ JR., a contribuição de GUSTAV VON HUGO (1764-1844), professor da Universidade de Göttingen, para o tema em análise pode ser constatada logo no primeiro volume de seu Lehrbuch Eines Civilistischen Cursus, quando o ilustre professor alemão propôs, “segundo um paradigma kantiano, uma divisão tripartida do conhecimento científico do Direito, correspondente a três questões fundamentais”: a) Dogmática Jurídica (“o que deve ser reconhecido como de direito?”), b) Filosofia do Direito (“é racional que o reconhecido como de direito assim o seja?”) e c) História do Direito (“como aquilo que é reconhecido como de direito se tornou tal?”).
“Estava aí em germinação uma concepção do direito não como um fenômeno que ocorre na História, mas que é histórico em sua essência, o que permitiria a qualificação do acontecimento presente também como história, criando-se a possibilidade do conhecimento jurídico como metodicamente histórico. Assim, para HUGO, a História do Direito aparece como ciência propriamente dita, enquanto a Dogmática Jurídica é uma espécie de continuação da pesquisa histórica com outros instrumentos.” (FERRAZ JR., 2015, p. 50-51)
De fato, GUSTAV VON HUGO, criticando a teoria jusnaturalista baseada na razão, procura desenvolver, metodologicamente, uma nova sistemática da Ciência Jurídica, na qual a dimensão histórica da relação jurídica passa a ser um ponto fundamental.
“Para [HUGO], o direito natural nada mais seria do que o direito positivo universal ou o jus gentium do direito romano, direito comum a todos os povos, constituído pela razão natural, do qual o jus civile ou direito natural é um desenvolvimento histórico e particularizado. Propugnou ele o estudo metódico e comparativo dos direitos nacionais, para chegar a uma história do direito universal, como base da ciência da legislação. Com isso a ciência jurídica aparece como ciência histórica, ou seja, como história do direito. Distinguiu a ciência do direito da dogmática jurídica. A história do direito seria a ciência propriamente dita e a dogmática jurídica, uma espécie de continuação da pesquisa histórica.” (DINIZ, 2000, p. 98)
FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY (1779-1861), reputado como aquele que efetivamente desenvolveu a aludida Escola Histórica, aprofunda as reflexões de GUSTAV VON HUGO sobre tal método, notadamente a partir dos seguintes aspectos críticos: de início, opõe-se à codificação do Direito, “por considerá-lo como manifestação característica da livre consciência do povo ou do espírito popular, sob a forma do costume, e não como um produto racional do legislador.” Ademais, o Direito, na ótica de SAVIGNY, “surge na história como decorrência dos usos e costumes e da tradição”, o que significa dizer que o “legislador não cria o Direito, apenas traduz em normas escritas o direito vivo, latente no espírito popular, que se forma através da história desse povo, como resultado de suas aspirações e necessidades.” Diante da concepção savignista, o Direito não seria criação arbitrária da vontade estatal, mas, sim, “produto da consciência popular (Volksgeist), em determinadas condições de tempo e lugar, da qual o costume é a manifestação autêntica, livre e direta”. Assim, exatamente como se sucede com a língua, que “principia espontaneamente no modo de falar de um povo”, o Direito, na perspectiva de CARL VON SAVIGNY, “também começa como conduta consuetudinária popular”, ou seja, “a partir da convicção espontânea do povo a respeito do que se entende por necessário e justo” (DINIZ, 2000, p. 98).
Nesta conjuntura de profundas mudanças experimentadas pelo mundo de outrora, mormente no que se refere ao fenômeno da codificação, a doutrina alude ao paradigmático embate travado entre CARL VON SAVIGNY e ANTON FRIEDRICH JUSTUS THIBAUT (1772-1840), outro jurista alemão da mesma época, professor da Universidade de Heidelberg, famoso por defender, exatamente como ocorrera na França em 1804, a adoção do mesmo modelo codicista no âmbito do Direito Alemão.
“Por um lado, THIBAUT era favorável à codificação para facilitar a integração alemã, nos moldes do que ocorrera na França, por ocasião do surgimento do código napoleônico. Por sua vez, SAVIGNY era contrário ao legalismo produzido com base no modelo codicista francês, propugnando, ao revés, a formação histórica do direito como decorrência da evolução espontânea dos costumes, produto do chamado espírito do povo (Volksgeist). Foi assim que SAVIGNY inaugurou e consolidou a Escola Histórica do Direito, também conhecida como o historicismo jurídico.” (SOARES, 2013, p. 158)
Com efeito, THIBAUT, na obra intitulada Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha (Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Rechts für Deutschland, 1814), “fundamentando-se nos muitos inconvenientes políticos e comerciais que ocorriam em razão das disparidades existentes entre as leis e os costumes dos Estados alemães” (CASTILHO, 2017, p. 116), e tendo como modelo o Código Napoleônico de 1804, pugnava pela criação de um codex comum para todos os Estados germânicos, iniciativa (de natureza nitidamente iluminista) que enfrentou forte oposição de SAVIGNY, que rechaçou tal proposta, publicando, em contraposição teórica, um texto denominado Da Vocação de Nosso Século para a Legislação e a Jurisprudência (Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, 1814), no qual se declara contrário aos propósitos de THIBAUT, enfatizando, em linhas gerais, a primazia dos costumes do povo (e de sua história) enquanto fonte primária do Direito.
SOARES (2013, p. 159), ao empreender uma análise das teses defendidas pelo Historicismo Jurídico, “afirma que seu grande mérito foi situar o Direito corretamente na zona ôntica dos objetos reais e, particularmente, culturais, afastando-se da influência metafísica do positivismo legalista, que colocava o Direito no campo dos objetos ideais”, não obstante terem sido formuladas as seguintes objeções teóricas à Escola Histórica do Direito:
“Os costumes jurídicos não trariam a segurança e a objetividade necessárias ao funcionamento do sistema jurídico; o espírito do povo (Volksgeist) seria um conceito vago, porque suscetível de múltiplas apropriações político-ideológicas (autocráticas ou democráticas), e artificialmente consensual, porque ocultaria, sob a aparência de uma unidade social, os conflitos entre grupos e interesses no seio de uma sociedade; e, por derradeiro, a conceitualização lógico-artificial do Direito Romano, com a valorização da doutrina como fonte científica do direito, seria incongruente com a defesa da espontaneidade dos costumes jurídicos gestados pelo povo alemão.” (SOARES, 2013, p. 159-160)
Discorrendo sobre as peculiaridades teóricas da Escola de Exegese (França) e da Escola Histórica (Alemanha), DINIZ assinala os seguintes pontos de identidade e de distinção:
“Na Alemanha, num certo momento histórico, deu-se a incorporação do Direito Romano à ordenação jurídica alemã, e os juristas alemães, os pandectistas do século XIX, dentre eles WINDSCHEID, BRINZ, GLÜCK, passaram a ter uma atitude rigorosamente exegética em relação aos textos do Corpus Iuris, bem semelhante à que os franceses tinham relativamente ao Código Napoleônico.
Todavia, havia uma diferença entre a posição dos pandectistas e a dos exegetas franceses. O ponto de partida dos franceses era a lei, considerada como princípio racional formulado para sempre pelo legislador, devido à idolatria dos códigos e das leis, retirando dos textos a cadeia de deduções silogísticas. Já o ponto de partida da escola dos pandectistas era, exclusivamente, os textos de Direito Romano; logo, só as fontes romanas importavam. Esta escola abeberava a tradição jurídica alemã a partir das fontes romanas, cultivando a história do direito romano e a interpretação dos textos da compilação justiniânea com o escopo de aplicá-los como fonte direta do direito alemão. Apesar da diferença do ponto de partida, havia uma semelhança de atitude: tanto a École d’Exégèse como o pandectismo desembocaram, por igual, num sistema rígido de fetichismo pelos textos e de construção sistemática, apregoando o uso do método dedutivo, exigindo a aplicação das leis de acordo com um processo rigorosamente silogístico.” (DINIZ, 2000, p. 54-55)
4. Conclusão
A expressão Positivismo Jurídico pode ser sucintamente definida como a doutrina que inadmite a existência de qualquer outro Direito senão o denominado Direito Positivo, isto é, aquele estabelecido pelo Estado, opondo-se, portanto, ao Jusnaturalismo. Neste contexto, o Direito passa a ser concebido como decorrência da exclusiva vontade humana, fruto da atuação estatal, fenômeno que, segundo um segmento doutrinário, conduziu ao enfraquecimento teórico do Direito Natural, dado histórico observado, por exemplo, nas denominadas Escolas de Exegese (França) e Histórica do Direito (Alemanha), ambas percebidas, de um modo geral, como precursoras de tal corrente do pensamento jusfilosófico.
5. Referências Bibliográficas
AGUIAR, Roger. O Positivismo e o Pós-Positivismo na Criação e Aplicação do Direito Civil Brasileiro; In CLEYSON MELLO, Novos Direitos: os Paradigmas da Pós-Modernidade, Niterói, Impetus, 2004.
BARZOTTO, Luiz Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo: Uma Introdução a KELSEN, ROSS e HART, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, Lições de Filosofia do Direito, compilação de Nello Morra, trad. e notas de Márcio Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues, São Paulo, Ícone, 1995.
CASTILHO, Ricardo. Filosofia do Direito, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2017.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 12ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação, 8ª ed., São Paulo, Atlas, 2015.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito, 39ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 26ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002.
VENOSA, Sílvio. Introdução ao Estudo do Direito – Primeiras Linhas, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2006.
SGARBI, Adrian. Teoria do Direito – Primeiras Lições, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007.
SOARES, Ricardo M. F. Elementos de Teoria Geral do Direito, São Paulo, Saraiva, 2013.
STRUCHINER, Noel. Para Falar de Regras – O Positivismo Conceitual como Cenário para uma Investigação Filosófica acerca dos Casos Difíceis do Direito, Tese de Doutorado, Departamento de Filosofia, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2005.
[1] Reis Friede é Desembargador Federal. Mestre e Doutor em Direito e Professor e Pesquisador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). Correio eletrônico: [email protected]. É autor do Livro Teoria do Direito.