CRM é condenado a indenizar paciente vítima de abuso.

03/04/2023 às 10:05
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A decisão do STJ, condenando o CRM pelo crime do médico, é um recado claro da sociedade aos conselhos estaduais de medicina, e ao próprio CFM.

A comunidade médica foi impactada nesta semana, pela manutenção da condenação, por parte da Segunda Turma Superior Tribunal de Justiça – STJ, de um dos Conselhos Regionais de Medicina a indenizar uma adolescente, que sofreu abuso sexual durante uma consulta médica.

A decisão do STJ aponta a negligência do CRM no acompanhamento dos profissionais que atuam sob sua tutela. Segundo os ministros, o médico em questão nunca deveria ter sido habilitado ao exercício da medicina. O autor dos crimes possuída um considerável histórico de antecedentes, tanto na juventude quanto no curso da formação médica. Chegou a ser expulso de duas residências médicas, em função da má conduta. Ainda assim, foi aceito e registrado pelo CRM.

O caso nos induz a uma inevitável reflexão: qual é o papel dos Conselhos Regionais de Medicina e do CFM? A má prática dos profissionais que atuam sob sua tutela, seria mesmo de sua responsabilidade? Em casos como o presente, entendemos que a resposta é positiva.

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são regulamentados pela Lei nº 3.268 de 1957. Constituem juntos uma autarquia, parte da administração pública indireta. Exercem, portanto, uma atividade pública, tendo o interesse público como alvo. O art. 2º da referida lei dispõe:

Art. 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.

Portanto, a atuação dos conselhos não deve ser focada em extremos. Nem corporativista (protegendo unicamente os interesses dos médicos), nem como um tribunal de exceção (perseguindo e punindo médicos indevidamente). Deve haver um equilíbrio, sempre com vistas ao interesse publico. Contudo, se perguntarmos a qualquer leigo a função dos conselhos, certamente a resposta será a defesa incondicional dos interesses dos médicos. E embora esta não seja a função, é exatamente a impressão que os conselhos passam à sociedade: uma atuação extremamente classista, em defesa unicamente da própria classe, e não do interesse público. Por outro lado, a opinião de grande parte dos médicos é de que os conselhos atuam exatamente em sentido contrário.

Podemos estender as críticas acima à maioria dos conselhos profissionais de classe (advogados, engenheiros, dentistas, etc.), E certamente, os mais prejudicados com a omissão das entidades é a própria classe profissional a eles vinculada. Sobretudo, por permitir que incompetentes e criminosos atuem em meio aos bons profissionais, maculando publicamente a imagem de toda a classe. E quem ganha com isso? Somente os criminosos, que encontram em atividades como a médica a oportunidade perfeita para praticar seus crimes, em função da submissão e confiança depositadas pelos pacientes.

No recurso apresentado do STJ, o CRM alegou não lhe caber a exigência atestado de sanidade física e mental, para o exercício da medicina. Ora, se de fato houvesse foco no interesse público, no lugar de tal alegação o CRM poderia propor ao CFM uma normativa que traga tal diretriz, pois a presença de psicopatas na medicina só cresce. Além disso, no aludido caso bastaria uma simples pesquisa ou avaliação dos registros pessoais e criminais do cidadão, para atestar sua total contraindicação à carreira médica. Pois falamos de uma pessoa com sérios transtornos e um longo histórico de má conduta, iniciado muito antes do ingresso na carreira médica e continuado no curso exercício da profissão, sem que houvesse sua interdição, suspensão ou cassação.

Em sua defesa, o CRM alegou que qualquer providência de sua parte só poderia existir mediante alguma denúncia. Contudo, o objetivo dos conselhos é a fiscalização do exercício técnico e moral dos profissionais e elas vinculados (letra C, art. 15, Lei nº 3.268/57, que prevê as atribuições dos Conselhos Regionais). Não atender a este comando legalmente imposto é uma grave omissão, e configura claro ato de negligência. A decisão proferida pelo STJ foi exatamente neste sentido, sendo sustentado pelo ministro relator que “um conselho profissional, entre outros interesses, busca a prevalência de profissionais registrados com condutas éticas, apurando desvios e acompanhando aqueles (inclusive com assistência e orientação) que já se mostram tendentes a possíveis excessos comportamentais.” Segundo a decisão, a omissão do CRM foi determinante para que o abuso ocorresse, estando presente o nexo causal, e a obrigação de indenizar a vítima.

A condenação do CRM neste caso traz à memória diversos outros crimes absurdos, cometidos por psicopatas que nunca deveriam ter recebido o nobre título de médico. Na semana passada um pediatra foi preso por estupro no RJ, tendo pelo menos 14 denúncias criminais anteriores, sendo 8 de mulheres. Em janeiro, um anestesista foi preso no RJ por estuprar diversas pacientes desacordadas, sendo apreendido em seu consultório vasto material de pedofilia. Menos de 1 ano antes, outro anestesista foi preso no RJ pelo estupro de uma paciente durante sua cesariana. Meses antes, um médico foi preso pela terceira vez em MG, acusado do abuso de mais de 100 crianças e adolescentes. A lista é imensa, e a cada dia nos deparamos com mais casos de criminosos praticando a medicina, livremente. E podemos afirmar algo, sem sombra de dúvidas: antes de médicos, eles já eram monstros.

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Por estes motivos, segundo o STJ que há uma clara negligência dos conselhos em excluir de sua análise estes aspectos, antes de conceder a alguém o título de médico. E esta omissão possibilitaria o exercício da medicina, por pessoas que não reúnem condições sequer para viver em sociedade, mas que se qualificam a cuidar de pacientes que lhes confiam suas vidas, muitos em estado de grande fragilidade, e de total submissão e confiança. Presas perfeitas, entregues nas garras dos predadores.

A conduta sustentada pelos conselhos, conforme apontado pelo STJ, é um enorme desserviço prestado à toda sociedade, que sofre com casos estarrecedores a cada semana. À toda a classe médica, que vê sua imagem maculada por criminosos que nunca deveriam ter feito o juramento de Hipócrates. Mas principalmente aos pacientes, que são vítimas de crimes bárbaros, pelas mãos de quem lhes jurou cuidado, empatia e humanidade.

A manutenção da condenação do CRM pelo STJ é um recado claro do Poder Judiciário e da Sociedade Civil, a todos os Conselhos Profissionais de Classe. Um segundo passo neste sentido, pode ser a responsabilização pessoal dos conselheiros, nas situações em que sejam comprovadamente omissos em relação às suas atribuições legais.

Pois segundo Juscelino Kubitschek, que em 1957 sancionou a lei que rege a atuação dos conselhos de medicina, “É inútil fechar os olhos à realidade. Se o fizermos, a realidade abrirá nossas pálpebras e nos imporá a sua presença”.

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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