3. ASPECTOS JURÍDICOS DA INTERNET
3.1. Introdução ao capítulo
O ambiente digital apresenta imensuráveis oportunidades e enormes desafios, nesse cenário, assim como os vírus ou as bactérias atacam o ser humano, as condutas nocivas atacam o sistema complexo virtual. A virtualidade traz uma nova visão de mundo, em que o artificial e o natural convivem em um mesmo espaço, onde a transposição de barreiras geográficas e temporais, além da veloz mutabilidade das informações tornam-se fatores de vantagens competitivas, ao mesmo tempo, representam grandes desafios, dessa forma, apresenta-se a importante da realização de reflexões sobre democracia e a qualidade das medidas de proteção e de controle sobre as condutas virtualizadas.
A consolidação de espaços públicos caracterizados pela pluralidade de ideias e pela inclusão social sem mediadores institucionalizados configura-se um novo paradigma que materializa uma contraposição ao “establishment” corporativo ou estatal e, nesse cenário, Estado, empresas e cidadãos interagem na virtualidade onde a mudança instantânea é a regra, dessa forma, a incerteza passa a ser reconhecida como algo inerente ao jogo da vida cibernética, as plataformas e os dispositivos digitais são instrumentos dotados de grande potencial propagador de serviços, de negócios e de informações das mais diversas espécies. No entanto, no Estado de Justiça a insegurança jurídica não é tolerada, e para o rumo, uma “bússola”, a Constituição.
Sob este prisma, a Carta da República protege o direito à livre expressão e a manifestação do pensamento, englobando tanto o meio físico como o meio digital, previsto como direito fundamental expresso no artigo 5º, IV e IX que versam sobre a ideia de que a pessoa humana é livre para ter opiniões, receber, difundir, procurar informações por qualquer meio.97 Em contraste, existem limites ao expresso direito quando envolvem os direitos previstos no próprio texto constitucional, conforme o artigo 5º, X que versa sobre a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização.98
Constata-se o fenômeno da colisão de direitos fundamentais e a consagração do juízo de ponderação de direitos constitucionais realizado através dos princípios de interpretação e dos métodos de hermenêutica que objetivam a extração da melhor norma possível para a solução de controvérsias jurídicas ou conflitos institucionais, apresenta-se como procedimento necessário para o equilíbrio harmônico e proporcional das liberdades públicas, essenciais à democracia no ambiente cibernético frente aos casos que emergem das relações entre os agentes do sistema complexo digital. Nesse sentido, paradigmas jurídicos como o Código Civil,99 o Código Penal,100 o celebrado Código de Defesa do Consumidor,101 assim como, mais recentemente, a Lei de Acesso à informação,102 o Marco Civil da Internet,103 a Lei Geral de Proteção de Dados,104 dentre outras produções legislativas aplicáveis à temática, reafirmam os direitos e as garantias constitucionais, contribuindo assim, em grande medida, com o controle e a disciplina das relações provenientes do cotidiano cibernético, consequentemente, com a estabilização das relações e a qualidade da democracia.
3.2. A Constituição como a “bússola” da “tecnoregulação”
O Estado Constitucional consolidou-se como um eficiente modelo de organização e de limitação do poder do Estado, assim como para a consecução do interesse público através da separação dos Poderes, da determinação dos direitos e das garantias fundamentais, da apresentação dos deveres individuais e coletivos, das formas de fomento para o desenvolvimento econômico e social, do incentivo à pluralidade partidária e ideológica, da exigência por igualdade, respeito e diversidade, do direito à segurança, à saúde, ao trabalho, à educação, à informação, à cultura, à ciência, ao meio ambiente, à paz, à família, à qualidade de vida, à integração local, regional, nacional e transnacional, aos direitos difusos, ao acesso aos meios de comunicação, do respeito aos símbolos e a história nacional, dentre outras grandes conquistas. A Constituição foi feita pelo povo, para o povo e com o povo para ser o seu marco normativo originário, de vocação democrática, desenvolvimentista e humanística, conforme o metaprincípio da dignidade humana que a ilumina.
Tratando-se de “origem”, Bomfati reflete sobre a evolução humana e os “primeiros direitos”:
“Nos primórdios dos tempos do Homo sapiens, cada grupo distinto se preocupava apenas com os seus, e hoje se fala em direitos humanos, pois entende-se que todos os homens têm direitos fundamentais iguais, não importando sua origem ou raça, muito menos o país em que vivem. Enfim evoluímos em todas as áreas e na maneira de fazer, entender e pensar as coisas. Embora não tenhamos registros de épocas imemoriais, podemos imaginar que os coletivos de Homo sapiens tinha regras, preceitos e normas de conduta a serem seguidos por todos”.105
A evolução da sociedade, do direito e do movimento constitucionalista culminou na formação dos Estados Constitucionais a partir de textos históricos que contribuíram com a construção do conjunto de direitos fundamentais, como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, artigos 10, 11 e 16:
Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.(...)
Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.106
Nesse contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 representa uma das mais importantes declarações de direitos de nossa história, retratando nos artigos 12, 18 e 19 os ideais de liberdade de expressão:
Artigo 12º Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. (...)
Artigo 18º Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo 19º Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.107
A Constituição “Cidadã” versa, em espaço reservado, sobre aos direitos fundamentais, tratando da liberdade de expressão no art. 5º, IV e IX, assim como no caput do art. 220. e parágrafos 1º e 2º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;(...)
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.108
Mendes109 ensina que a liberdade de expressão é um dos mais importantes e relevantes direitos fundamentais, referindo-se a uma das mais antigas reivindicações da história do homem. Reafirma que a Constituição versa sobre o tema liberdade de expressão diretamente no artigo. 5º, incisos IV e XIV e no artigo 220. Agrega que a liberdade de expressão, a comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, de críticas, de participação política, de expressão cultural, acadêmica e científica, todos mesmos na forma não verbal. Complementa, tratando que o direito de se comunicar livremente está associada a característica essencial do ser humano da sociabilidade, apontando para a premissa da legalidade no que se refere ao fato da liberdade de expressão não abranger condutas violentas, pois toda manifestação de opinião exerce algum impacto no ambiente em que é projetada. Sobre censura, referindo-se ao texto constitucional, classifica-a como uma ação inibitória exercida pelos Poderes Públicos centrada sobre o núcleo de uma mensagem. Significa impedir que as ideias e os fatos que o indivíduo pretenda difundir, tenham a anterior aprovação do Estado. Sobre o tema, lembra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando decidiu pela inconstitucionalidade da necessidade de autorização prévia em biografia a ser publicada na ADI 4815/DF.110
Araújo111 disserta que “a norma constitucional é autolegitimante, ou seja, colocando-se no vértice superior da pirâmide, sendo o polo irradiador de legitimação no interior do sistema jurídico”. Nesse sentido, entende-se que o ambiente digital valoriza a liberdade por seu próprio formato estrutural, trata-se da junção entre ciência, mercado e sociedade. Reafirma-se que as novas tecnologias da informação não violam a privacidade, contudo, as pessoas podem violar, utilizando-se dessas tecnologias. A Carta Magna apresenta no art.5º, X, o direito fundamental que impõe limites a livre expressão do pensamento:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente de sua violação.112
Sob esse prisma, aponta-se que as normas constitucionais representam a orientação do que é direito e do que é dever, apresentando os limites das condutas pela própria exteriorização do conjunto sistêmico dos direitos fundamentais. O equilíbrio entre as normas fundamentais constitui a essência e a oportunidade para a estabilização de crises na sociedade em sua origem, especialmente, quando presente em um ambiente tão complexo como o virtual, onde a sociedade conectada mantém seus alicerces em uma base híbrida de condutas físicas e virtualizadas pelas tecnologias da informação. Nesse cenário complexo, Barreto aponta para algumas normas constitucionais que influenciam diretamente o cotidiano cibernético:
“A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, prevê, em diversos de seus dispositivos, princípios e garantias do uso da tecnologia pelos cidadãos em suas mais diversas relações e para o desenvolvimento do país (arts. 1º, 3º, 4º, 5º, 6º, 215, 218, 219, 220, etc.), visando garantir a liberdade e os direitos fundamentais dos indivíduos no ciberespaço, permitindo-lhes participação democrática nele e fora dele.” 113
Sobre a colisão de direitos constitucionais no ambiente digital e o Marco Civil da Internet, Souza ensina:
“Nesse sentido, ter o respeito aos direitos fundamentais como norte desde a sua concepção traz para os debates envolvendo o Marco Civil uma camada de complexidade que não é desprezível. Não raramente, para se proteger um direito fundamental é preciso perceber que restrições precisarão ser realizadas na aplicação de outros. O debate sobre a colisão de direitos não é novo e as soluções encontradas na doutrina e na jurisprudência, como a ponderação entre princípios, sinaliza que o trabalho não se esgota com a aprovação do texto legal”. 114
Barroso115 trata sobre o tema, referindo-se à exteriorização da liberdade de expressão no ambiente digital, apontando para o fato de que “as empresas que oferecem plataformas para as mídias digitais, compreensivelmente, relutam em funcionar como censores privados”, acrescentando que para o Estado exercer a interferência no domínio da liberdade de expressão é “arriscada”. Indica que diante dessa questão, não teria um remédio jurídico totalmente eficiente ou politicamente simples.
3.3. Princípios Interpretativos e colisão de direitos fundamentais
Häberle,116 conforme a apresentação da obra realizada por Gilmar Mendes, disserta sobre a interpretação constitucional, ponderando que a hermenêutica adequada para a sociedade pluralista ou, conforme intitula, “sociedade aberta” deveria integrar, justamente, “aquele que vive a Constituição”, considerado o seu “legítimo intérprete”. Apresenta a premissa de que a metodologia jurídica tradicional vinculada a ideia de sociedade fechada, onde a interpretação constitucional é exclusiva dos juízes, por obvio, essencial, segundo a atribuição constitucional e pela virtude do conhecimento e pela exigência da técnica, não deva ser a única. Desenvolve o raciocínio de que todos os agentes internos do sistema exercem poder de construção e de modificação do extrato normativo que advém da interpretação do arcabouço jurídico através do processo de interações, potencializados, ao extremo, pelas novas tecnologias da informação presentes no cotidiano da sociedade conectada, exigindo-se uma nova forma de se compreender a lei. Nessa esteira, cidadãos, empresas públicas ou privadas, órgãos estatais dos diversos Poderes e esferas, associações e sociedade civil integram a estrutura da “força produtiva de interpretação”, considerada, ao menos, como “pré-intérpretes do complexo normativo constitucional”.
Entende-se que as relações sociais devam ser compreendidas como fontes materiais para produção legislativa exercida, em regra, pela representação política do povo e, nesse contexto, percebe-se, nitidamente, a importância da participação cidadã no processo de extração da norma no advento da interpretação do texto legal. Este processo vem a contribuir com a adequada regulamentação do cotidiano cibernético, identificada por sua velocidade, amplitude, complexidade e alcance, em grande medida, trasnacional. As imensuráveis interações sociais, negociais, institucionais e governamentais provocam e potencializam as colisões entre direitos, consequência não tolerada pelo Estado Constitucional.
Mendes117 afirma que a colisão entre direitos individuais atua como uma restrição imanente que legitima a intervenção na esfera do direito não submetido expressamente a uma limitação, eliminando-se a possibilidade de conflito com recurso da concordância prática. Entende que essa orientação tem a vantagem de não impor limitação embrionária ao âmbito de proteção de determinado direito, cingindo-se para legitimar constitucionalmente eventual restrição ao universo dos direitos fundamentais. No entanto, não há de se utilizar o pretexto de pretensa colisão para limitar direitos insuscetíveis, em princípio, de restrição, por isso a limitação decorrente de eventual colisão entre direitos constitucionais deve ser excepcional. Verifica-se que a própria cláusula de imutabilidade de princípios específicos serve como baliza para se evitar, mediante esforço hermenêutico, que se reduza o âmbito de proteção de determinados direitos. Complementa, ensinando que o juízo de ponderação, indispensável para o sopesamento entre valores em conflito, baseia-se na avaliação de circunstâncias peculiares de cada caso, dessa forma, afirma-se que a solução desses conflitos há de se fazer mediante a utilização do recurso da concordância prática, de modo que cada um dos valores jurídicos em conflito ganhe realidade. Traz os fundamentos de Alexy sobre a ponderação de direitos que reparte o referido processo em fases distintas, primeiramente, definindo-se a intensidade da intervenção, logo após, avaliando-se a importância dos fundamentos justificadores e, por último, realizando-se a ponderação em sentido específico e estrito.
Os princípios informativos ou instrumentais objetivam auxiliar a compreensão do significado das normas constitucionais e, nesse sentido, a doutrina criou vários enunciados, os chamados princípios de interpretação constitucional que contribuem com a solução harmônica da colisão de direitos constitucionais e dos conflitos entre normas infraconstitucionais, dessa maneira, representam importante contribuição para a manutenção do equilíbrio e da democracia no sistema complexo virtual.
Abboud ensina sobre as premissas metodológicas da nova interpretação constitucional:
“A ideia de uma nova interpretação constitucional liga-se ao desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da Constituição. Não importa em desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo, fundado na aplicação de regras – nem dos elementos tradicionais da hermenêutica: gramatical, histórica, sistemático e teleológico. Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na solução de casos concretos. Relevante, mas nem sempre suficiente.
Mesmo no quadro da dogmática jurídica tradicional, já haviam sido sistematizados diversos princípios específicos de interpretação da Constituição, aptos a superar as limitações da interpretação jurídica convencional, concebida sobretudo em função da legislação infraconstitucional e, mais especialmente, do direito civil. A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma constatação que, além de singela, nem sequer era original: não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização. No Direito contemporâneo, mudaram o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do intérprete.”118
Häberle, conforme Gilmar Mendes apresenta, ensina que “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública” e que “a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, tem-se, necessariamente, de indagar sobre os participantes no seu desenvolvimento funcional e sobre as forças ativas”. Compreende o processo que amplia o grupo de intérpretes, materializa-se pela própria consequência lógica da integração da fonte material da lei, ou seja, da realidade do cotidiano social no processo de interpretação da lei. Indica que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais devem ser ampliados e aperfeiçoados, especialmente no referente às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de interpretação no processo constitucional. Nesse contexto, impõe-se um refinamento do processo constitucional de modo a se estabelecer uma comunicação efetiva entre os participantes desse processo amplo de interpretação. “Portanto, o processo constitucional torna-se parte do direito de participação democrática.” 119
Aponta-se para alguns dos princípios informativos, citando-se o Princípio do Efeito Integrador que trata das resoluções de problemas jurídico-constitucionais, devendo ser dada preferência às soluções que favoreçam a integração política e social; o Princípio da Concordância Prática ou da Harmonização das Normas Constitucionais objetiva, justamente, que objetiva remediar a colisão de direitos fundamentais indicando a premissa de que cabe ao intérprete coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, realizando a redução proporcional de cada um deles. Parte da ideia de que a Constituição possui normas conflitantes entre si e que cabe ao intérprete não excluir uma dessas normas, mas coordená-las; o Princípio da Relatividade ou Convivência das Liberdades Públicas parte da premissa de que não existem direitos absolutos, pois todos encontram limites em outros direitos ou interesses coletivos também consagrados na Constituição; o Princípio da Força Normativa indica que deve ser dada preferência às soluções concretizadoras de suas normas que as tornem mais eficazes e permanentes; o Princípio da Máxima Efetividade, da Eficiência ou da Interpretação Efetiva propõe que na interpretação das normas constitucionais se atribua o sentido que lhes empreste a maior efetividade possível, a qual significa a realização do direito e o desempenho concreto de sua função social; o Princípio da Conformidade Funcional, Justeza ou Correção Funcional tem por finalidade impedir que órgãos encarregados da interpretação constitucional cheguem a um resultado que contrarie o esquema organizatório-funcional estabelecido pela Constituição. A conformidade funcional significa que cada poder deve agir segundo a função que lhe foi atribuída. É um princípio de competência; o Princípio da Proporcionalidade ou da Razoabilidade, consagrado implicitamente na Constituição e pode ser extraído do sistema de direitos fundamentais, foi desenvolvido para se evitar o arbítrio do Estado, negando-se a ação em desproporcionalidade ao Estado de Direito. Apresenta máximas parciais ou regras de adequação, se ele não é apto, ele não é adequado, e se não é adequado, ele não é proporcional. Não basta apenas que um meio seja adequado para atingir um fim, pois dentre os vários meios existentes, deve-se optar por aquele que seja o menos gravoso possível. 120
Entende-se que existe uma relação dicotômica entre a proibição da proteção insuficiente do direito fundamental e da proibição do excesso nessa defesa e, sob esse prisma, Souza121 apresenta um novo desafio no que se refere à análise da democracia digital e a importância da interpretação das normas pertencentes ao conjunto normativo competente para disciplinar as condutas e as interações do cotidiano virtual, ou seja, a “tecnoregulação”, objetivando trazer segurança cibernética, estabilidade e harmonia no sistema complexo virtual. Aponta para a necessária manutenção da neutralidade da rede, um dos pilares presentes no Marco Civil da Internet, através do sopesamento de direitos frequentemente em colisão, como o da livre expressão do pensamento e o da privacidade, assim como o da proteção de dados. Aponta para um exemplo de risco ao sistema provocado pelo Estado, citando a China, que passou a exercer controle direto sobre a internet, barrando certos conteúdos, aplicando em censura governamental, conduta que contraria os fundamentos nucleares da grande rede de computadores e dos diversos sistemas de informação, prejudicando o desenvolvimento das potencialidades do ambiente, justamente, de proporcionar espaços públicos para a pluralidade de ideias sem fronteiras ou mediadores, a expansão da democracia digital, da inclusão social, do bem estar social, da integração entre os povos, do exercício de cidadania, de geração de inovações e empreendedorismo, assim como de toda a cadeia de serviços e de negócios virtuais, estruturados em alicerces na confiança, na transparência e na segurança jurídica das relações. Fundamentos que se esperam de Estados democráticos, norteados por suas constituições e pelo compromisso da aplicação substancial de suas normas.
3.4. Métodos Hermenêuticos e a colisão de direitos fundamentais
Streck122 ensina que a hermenêutica é o ramo da filosofia que estuda os processos interpretativos e as técnicas de interpretação. Nessa ordem, a interpretação é a atividade de atribuir sentido a alguma expressão linguística. A hermenêutica é o estudo de como essa atividade deve ser desenvolvida.
Britto entende que a interpretação do Direito continua a ser realizada pelos métodos tradicionais do processo hermenêutico, dividindo em cinco fases. As primeiras quatro fases, chamadas de fases solteiras ou em separado, seriam as fases literal, lógica, teleológica e histórica ou histórico-evolutiva, enquanto a quinta fase, seria a única fase da forma casada ou em bloco, tratando-se da fase sistemática ou contextual. Apresenta as seguintes premissas:
“I – em todo esse processo hermenêutico nenhuma das fases é de ser aprioristicamente descartada;
II – o espaço da consciência pode se abrir para qualquer das etapas do processo, ou para duas delas, ou três, ou todas indistintamente, seja por efeito do que na teoria quântica é explicado como o poder de interferência do observador consciente “no acontecer” da realidade observada, seja por efeito daquela fenomenologia do imponderável que William Shakespeare insuperavelmente grafou, no Hamlet, com a asserção de que entre o céu e a terra há muito mais coisas do que supõe a nossa vã filosofia.”123
Abboud, sob outro prisma, versa sobre nova interpretação e casos difíceis:
“A nova interpretação constitucional surge para atender às demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural. Ela não derrota a interpretação tradicional, mas vem para atender às necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas.(...) A nova interpretação incorpora um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais referidas anteriormente. Dentre elas, a normatividade dos princípios (como dignidade da pessoa humana, solidariedade e segurança jurídica), as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação jurídica. Nesse novo ambiente, mudam o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma, muitas vezes, traz apenas um início de solução, inscrito em um conceito indeterminado ou em um princípio. Os fatos, por sua vez, passam a fazer parte da normatividade, na medida em que só é possível construir a solução constitucionalmente adequada a partir dos elementos do caso concreto. E o intérprete, que se encontra na contingência de construir adequadamente a solução, torna-se coparticipante do processo de criação do Direito.” 124
Häberle, seguindo a vertente de novos paradigmas para a interpretação da norma jurídica, disserta sobre a situação atual da teoria da interpretação constitucional, apontando para duas questões essenciais, a primeira seria a indagação sobre as tarefas e os objetivos da interpretação constitucional e, a segunda trata-se da indagação sobre os métodos. Apresenta a tese de que não se conferiu maior importância à questão relativa ao contexto sistemático em que tange aos participantes deste processo de interpretação, pois a teoria constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma “sociedade fechada”, concentrada, inicialmente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados. Trata da necessária exigência de que os métodos de interpretação estejam voltados ao interesse público e do bem estar geral, referindo-se aos agentes conformadores da “realidade constitucional”, com a proposta da tese de uma interpretação constitucional realizada com a contribuição de uma sociedade aberta, no sentido de que os critérios de interpretação deverão ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por coautoria interpretá-la. Nesse sentido, toda a atualização constitucional e a interpretação do texto deve ser garantida pela influência da teoria democrática, “é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potencias públicas mencionadas.” Expõe que:
“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma, é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição.”125
Mendes126 lembra que as constituições escritas surgiram com as revoluções do século XVIII até meados do século XX. A Constituição era interpretada, exclusivamente, pelos elementos desenvolvidos por Savigny. Trata-se dos métodos gramatical ou literal, lógico, histórico ou sistemático, contudo, com o fim da 2ª Guerra Mundial surgiu o Neoconstitucionalismo, que introduziu novos métodos de interpretação da Constituição elaborados pela doutrina alemã. Lembra o grande jurista português José Joaquim Gomes Canotilho através da célebre afirmativa de que não existiria um método justo, pois todos os métodos, apesar de partirem de premissas diversas, são complementares.
Nesse contexto, apresenta-se alguns dos métodos mais modernos, a começar pelo método Tópico-Problemático de Theodor Viehweg que se baseia na prevalência do problema sobre a norma, onde busca-se solucionar determinado problema por meio da interpretação da norma constitucional para o problema, ou seja, aplica-se a premissa da solução, particularizada, apropriada a cada problema específico. Tem o caráter aberto, fragmentário ou indeterminado, possibilitando retirar vários pontos de vista e várias soluções para o problema prático; o método Hermenêutico-Concretizador de Konrad Hesse parte da premissa de que a interpretação da Constituição deve considerar tanto o texto constitucional quanto a realidade em que será aplicada a norma, um processo de concretização. Deriva do método Tópico-Problemático, mas afasta-se dele por se basear no pressuposto do primado do texto constitucional perante o problema, da compreensão prévia de forma a proporcionar a individualização, estabelecendo antecipadamente o entendimento do conteúdo da norma individualizada, ou seja, deve-se iniciar por meio de uma atividade criativa do intérprete, partindo da Constituição para o caso concreto, ao inverso do Tópico Problemático. O intérprete atua como mediador entre a norma e a situação concreta dentro de uma realidade social. Deve partir do pressuposto subjetivo para o objetivo até que o intérprete chegue a uma compreensão da norma, em círculo hermenêutico de movimento pendular; o método Integrativo ou Científico Espiritual de Rudolf Smend indica que a Constituição não pode ser entendida, simplesmente, como um estatuto de organização que estrutura o Estado, facultando e impondo certas atividades de forma estática. Nesse sentido, a Constituição deve ser interpretada como algo dinâmico, renovando-se constantemente no passo das modificações da vida em sociedade. É método de cunho sociológico, baseando-se na premissa de que o intérprete deve levar em conta os valores subjacentes ao texto constitucional, integrando o sentido de suas normas a partir da captação “espiritual” da realidade da comunidade; o método Concretista ou Normativo Estruturante de Friedrich Muller versa que o preceito jurídico é apenas uma parte de um iceberg normativo, dessa forma, terá de ser concretizada não só pela atividade do legislador, mas, também, pela atividade do Judiciário, da Administração e do Governo. Sob esse prisma, opera indutivamente e não dedutivamente, tendo recebido influência da semântica prática. Surge da necessidade de se superar a fase positivista do desenvolvimento jurídico, fazendo necessária a distinção do texto normativo estático, elaborado pelo legislador com o da norma, resultado da interpretação do texto. Pelo referido método, o texto da norma não se confunde com a norma, pois enquanto aquele é dado de entrada no processo de concretização, ao lado do caso, a norma será o produto da atividade concretizante do jurista, buscando-se a norma de decisão. Para concretizar o texto da norma, o operador do direito retira os elementos do texto e conforma-os com dados que transcendem, ou seja, dados extrajurídicos, axiológicos, políticos, doutrinários e dos precedentes causais. Em seguida, em confrontação com a realidade, é estruturado o programa da norma para a sua concretização por meio dos elementos clássicos como o gramatical, histórico, teleológico, sistêmico, lógico, popular, doutrinário, autêntico, genético e evolutivo. Superada a etapa acima, constrói-se a norma jurídica, que diante do caso, será aplicada como norma de decisão, aceitando-se a distinção entre texto constitucional e norma constitucional. Sintetiza com a premissa de que a norma constitucional não é o pressuposto da interpretação constitucional, mas o seu resultado. 127
Verifica-se que a utilização dos métodos hermenêuticos e dos princípios de interpretação constitucional representa um importante instrumento para a eficaz extração da norma jurídica do texto normativo contribuindo para a consecução da composição dos conflitos que surgem e são objetos do exercício jurisdicional em todas as esferas, gerando intensos debates e controvérsias, essencialmente, nos órgãos superiores como o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. A extração do significado da norma não se consolida, em muitos casos, exclusivamente, com a estrita utilização da interpretação literal, nesse sentido, para se chegar a uma possível solução devem ser observadas as diversas dimensões do conflito que no ambiente virtual não se apresentam na forma estática, pois refletem um cenário extremamente dinâmico e complexo.
Nesse contexto, expressa-se reflexões sobre a relativização da hermenêutica constitucional, baseando-se na premissa de que o juiz constitucional já não interpreta isoladamente, pois muitos são os participantes do processo, assim como as formas de participação ampliam-se acentuadamente. Reafirma que todas as forças pluralistas são potenciais intérpretes da Constituição baseadas na realidade do cotidiano da sociedade e que a Constituição material subsiste sem a exclusiva interpretação realizada pelo Poder Judiciário, não sendo o processo constitucional formal a única via de acesso ao processo de interpretação, pois o processo de interpretação constitucional seria “infinito”, bastando-se analisar a história e perceber que o constitucionalista configura apenas um mediador. Finaliza indicando que o processo de interpretação constitucional deva ser ampliado além do concreto, acrescentando que:
“O raio de interpretação constitucional amplia-se graças aos “intérpretes da Constituição da sociedade aberta”. Eles são os participantes fundamentais no processo de “trial and error”, de descoberta e de obtenção do direito”. 128
Nesse cenário, Hartmann129 trata da preocupação na escolha de melhores formas de se regular a internet para a garantia dos direitos dos cidadãos nos espaços virtuais, essencialmente, no que se refere à privacidade, a liberdade de expressão e aos direitos consumeiristas e que diante destes fatores, em certos casos, agentes públicos e privados podem se aproveitar deste ambiente de incertezas, seja por falta de regulação específica em determinadas circunstâncias, seja pela opção escolhida de interpretação da norma que privilegiem mecanismos de norteamento de condutas alinhados à lógica de manutenção do poder político ou de mercado por algumas empresas de tecnologia, utilizando-se demagogicamente dos procedimentos democráticos on-line, inclusive com a captura das entidades de controle, contaminando a esfera pública virtual, consequentemente, enfraquecendo a democracia digital.
Fiorillo130 ensina que o uso da internet no Brasil, entendido como forma, processo, ou veículo destinado a realizar a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação deverá ser interpretado estruturalmente em face dos princípios fundamentais, presentes nos artigos 1º ao 4º, das garantias e direitos fundamentais, presentes nos artigos 5º ao 17, das regras constitucionais que definem as relações no plano da comunicação social, conforme os artigos 220 a 224 e dos deveres fixados na Constituição Federal.131 Dessa forma, os diversos métodos e princípios hermenêuticos aplicados de forma integrada e complementar, conforme ensina Canotilho, 132 mostra-se adequado para a obtenção do substrato normativo necessário à solução dos conflitos virtuais, para a estabilização das relações cibernéticas e para a garantia da democracia digital, com a consecução de soluções às crises do cotidiano virtual e a manutenção da ordem legal. A composição das colisões entre direitos fundamentais exteriorizados no ambiente digital através do juízo de ponderação de direitos e da eficiente aplicação dos métodos hermenêuticos e dos princípios de interpretação constitucional para a extração da melhor norma, conforme ensina Mendes,133 constitui instrumento essencial à garantia e ao desenvolvimento das potencialidades da “vida digital”, propiciado pela virtualização das “coisas”, em grande medida, pelo elevado grau de influência e de diversidade de conteúdo, pela simultaneidade das interações, pela ultraterritoriedade, pelas múltiplas funções de seus agentes emissores e receptores, assim como pela capacidade do Estado de realizar a prevenção de riscos no sistema cibernético.
3.5. Fake News e os desafios para a democracia digital
Nesse cenário complexo, observa-se com interesse as informações advindas do inquérito das “fake news” ou do “fim do mundo”, inquérito 4781 de relatoria do Ministro Alexandre de Morais, peça controversa criada pela Suprema Corte para investigar supostas condutas ilícitas na rede. A controvérsia apresenta-se na dúvida suscitada pela comunidade jurídica sobre a possível promoção de uma censura prévia ou, em contrapartida, de justiça, dúvida a ser solucionada com a publicidade dos detalhes do inquérito, a constatação ou não dos indícios suficientes de crimes praticados no ambiente digital e de suas autorias, assim como dos procedimentos adotados pela Corte.134
Sobre esse tema, apresentam-se inúmeras solicitações de agentes políticos à Justiça, pleiteando a suspensão de postagens em redes sociais contrárias aos mesmos, essencialmente, junto ao Twitter, ao Instagram, ao YouTube e ao Facebook, identificadas, inicialmente, como fake news. O citado juízo de valor realizado pelos “juízes robôs” através dos provedores de aplicações e das demais espécies de plataformas digitais, promovendo uma espécie de censura prévia ou, em sentido contrário, um controle e adequação de condutas, conforme previsão contratual padrão firmada entre empresas e usuários, apresenta-se como questão controvertida e que está sendo amplamente debatida, essencialmente, no que se refere à legalidade e à neutralidade da rede frente supostas motivações ideológicas e políticas promovidas por grupos majoritários pertencentes a uma elite historicamente dominante e motivador do controle de conteúdo. O paradigma provoca reflexões no que se refere a qualidade de controle preventivo ou repressivo realizado no sistema cibernético, motivando-se o debate sobre o modelo de internet que se deseja ter, de uma “internet das coisas” ou de uma “internet das pessoas”.
Especial preocupação se apresenta em períodos excepcionais, como são as eleições, evento que mobiliza esforços do Estado, de empresas e da sociedade para a realização do controle de condutas no sistema virtual, tendo em vista o amplo impulsionamento de notícias em massa por humanos e não humanos, podendo influir no equilíbrio e na paridade de armas entre os atores políticos, justamente, dada a amplitude de seu impacto. Estas condutas estão sendo acompanhados pela Justiça Eleitoral, assim como por diversos órgãos e entidades públicas e privadas, apurando-se a licitude e as responsabilidades de agentes nacionais ou internacionais, inclusive governamentais.
Reafirma-se, como notório, que cabe ao Judiciário, através do exercício da jurisdição, a tarefa de apresentar respostas para as demandas, proporcionando uma solução final aos conflitos, em última instância, compete aos tribunais superiores, essencialmente, como guardião da Constituição, ao Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, o Tribunal Superior Eleitoral editou a resolução n. 23.610. de 2019 que trata, pela primeira vez, sobre o tema “fake news” em eleições, trazendo a responsabilidade não só para os autores da conduta nociva, mas também para os candidatos e para os partidos políticos.135
Por fim, entende-se que a democracia, assim como o conhecimento solidariamente compartilhado são as forças motrizes ou matrizes energéticas da sociedade da informação, em contraste aos conflitos e as condutas maliciosas ou ilícitas que, embora sejam inerentes da própria natureza humana, virtual ou tradicional, agravam disputas e desembocam no incremento da crise de segurança e de confiança, fragmentando o interesse coletivo, atraindo a exploração sem regras de todas as coisas, a seletividade excludente e o uso das hierarquias empobrecedoras das oportunidades proporcionadas pelo caos sistêmico.
3.6. Cibercrimes e os desafios para a democracia digital
Sem objetivar o estudo aprofundado sobre as inúmeras legislações e teses jurídicas, aponta-se para alguns dos principais paradigmas jurídicos que normatizam as interações no ambiente digital, assim como as condutas nocivas mais presentes que ensejam desafios, suficientes para o comprometimento da harmonia e da vocação humanística do sistema complexo virtual, entendido e idealizado como uma “arena pública” de propagação de inclusão social, de cidadania e de exercício de uma ampla democracia. No entanto, visões de cunho penalista exteriorizam grande preocupação frente às novas “faces” do crime e as dificuldades para a persecução penal, paradigmas antagônicos frente as imensuráveis potencialidades e as inúmeras agregações de valor para a sociedade global nas mais diversas áreas da vida.
Crespo136 disserta que a sociedade contemporânea está profundamente mudada com o advento das novas tecnologias, mesmo com o abismo entre as diversas classes sociais, as variadas aplicações do sistema fizeram com que as atividades do cotidiano em sociedade sofressem mutações, tradicionais ou mesmo virtualizadas. Cita que “Uma nova sociedade se formou, a sociedade da informação, com características como a ausência de fronteiras e as diferenciadas formas de comunicação que transformaram os direitos” e que esta sociedade conectada “está formada desde uma nova concepção do binômio desenvolvimento-riscos, passando a doutrina a referir-se como a “sociedade de risco”, com uma nova ótica sobre os problemas trazidos pela evolução tecnológica.” Tratando-se de “riscos” indica qual entende ser a melhor classificação de crimes digitais, identificando qual seria a mais objetiva para enquadrar às condutas ilícitas modernas, citando a classificação proposta por Ivete Senise Ferreira e Vicente Greco Filho, que os divide em condutas perpetradas contra um sistema informático, definindo-os como delitos de risco informático ou crimes digitais próprios e condutas perpetradas contra outros bens jurídicos, definindo-os como delitos vinculados à informática ou crimes digitais impróprios.
Barreto137 indica que a prática de condutas nocivas configuradas como ilícitos cíveis, criminais ou atos antissociais são, muitas vezes, incorporados no ambiente digital através do anonimato ou do uso de programas de inteligência artificial. Cita as informações do Cert.br de 2015, indicando que as condutas nocivas podem circular no sistema virtual através da indução de ações da própria vítima, em grande medida, pelas worms, denial of services, invasões, web, scan e fraude. Estas são algumas indicações do modus operandi cibernético e de incidentes reportados às empresas de segurança tecnológica de condutas criminosas, muitas vezes, contando com a ajuda inconsciente das vítimas e do aviso dos dispositivos particulares. Nesse cenário, informações prestadas pela SaferNet de 2014 apontam para a incidência massiva de neonazismo, intolerância religiosa, homofobia, maus tratos contra animais, tráfico de pessoas, xenofobia, apologia e incitação de crimes contra vida, pornografia infantil e racismo, este último, o mais propagado delito em páginas denunciadas em 2014. Acrescenta, indicando que a diminuição das distâncias, a multilocalidade baseada na extinção das fronteiras, a multiplicidade de receptores, a instantaneidade, o anonimato ou o uso de robôs, além da super valorização da informação acabou por estimular a migração de antigos criminosos “que muitas vezes abandonam os assaltos a bancos para praticar fraudes pela internet, cujas penas, no processo penal, são bem mais brandas.” Cita que:
“os cibercriminosos brasileiros aproveitam a legislação vaga, que não pune esses criminosos de forma eficaz, com bandidos virtuais passando pouco ou nenhum tempo presos. Afirma que, por conta dessa percepção de impunidade, os cibercriminosos brasileiros ostentam seus lucros e vendem seus produtos e serviços despreocupadamente, como se estivessem dentro da lei, inclusive com promoções chamativas em redes sociais e sites.”138
Sob esse prisma, Cassanti disserta sobre os principais meios utilizados para ataques de cibercriminosos aos usuários no ambiente cibernético, muitas vezes, realizando as condutas na forma indireta, explorando as vulnerabilidades em falhas nos softwares, configurações incorretas ou sistemas desprovidos de firewall. Na forma direta, o criminoso utiliza-se da implantação de programas maliciosos como malwares, vírus, cavalos de tróia, spywares, adwares, worms e engenharia social, forma em que o golpista se faz passar por outra pessoa, instituição ou profissional de determinada área para desenvolver a conduta criminosa, além do phishing, sendo uma das técnicas mais incidentes, utilizando-se do e-mail ou do mensageiro instantâneo, como o Messenger, o WhatsApp, as redes sociais, os sistemas de compartilhamento de arquivos, os sites fakes e os arquivos PDF, estimulando assim, o acesso às páginas fraudulentas e aos formulários fakes. Lembra que:
“O Judiciário vem coibindo diariamente a sensação de impunidade que reina no ambiente virtual e combatendo a criminalidade cibernética com a aplicação do Código Penal, do Código Civil e de legislações específicas como a Lei n. 9.296/96 – que trata das interceptações de comunicação em sistemas de telefonia, informática e telemática – e a Lei n. 9.609/98 – que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programas de computador. Para o Judiciário, 95% dos delitos cometidos eletronicamente já estão tipificados no Código Penal brasileiro por caracterizarem como crimes comuns praticados através da internet. Outros 5% para as quais faltaria enquadramento jurídico”.139
Barreto140 disserta sobre algumas espécies de cibercrimes presentes, em grande parte, no código penal brasileiro, classificando-os como puros ou próprios, sendo aqueles em que os sistemas informatizados, bancos de dados, arquivos ou terminais são atacados por criminosos através de programas maliciosos ou engenharia social, nestes casos, o dispositivo tecnológico e o seu conteúdo são os alvos do ataque, prevalecendo-se das vulnerabilidades, citando alguns destes crimes: crime de invasão de dispositivo informático, conduta de invadir e-mail, páginas de redes sociais, sites, blogs, etc., para instalar programas maliciosos no computador alheio, conforme o art. 154-A; de dano, conduta de enviar um vírus pela internet que destrua equipamento ou dados armazenados, conforme art. 163; de interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública, conduta de ataque de negação de serviço, por exemplo, conforme art. 266; de inserção de dados falsos em sistema de informações, conduta de entrar na rede computadorizada de uma instituição da Administração Pública e realizar alterações, conforme art. 313-A; de modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações, conduta de entrar na rede computadorizada de uma instituição da Administração Pública e realizar alterações, conforme art. 313-B.
Acrescenta, indicando alguns crimes classificados como impuros ou impróprios, sendo aqueles onde o dispositivo tecnológico é utilizado como meio para a prática do crime, possibilitando a execução e o resultado. Nesta espécie, apenas o veículo em que o crime é praticado utiliza-se da tecnologia. Apresenta como exemplos o crime de induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio, conforme art. 122; de calúnia, conforme art. 138; de difamação, conforme art.139; de injúria, conforme art.140; de ameaça, conforme art. 147; de divulgação de conteúdo de documento particular ou correspondência confidencial em que é destinatário ou detentor, cuja divulgação possa produzir dano, conforme art.153; de furto mediante fraude, conforme art. 155, § 4º, II; de extorsão, conforme art. 158; de estelionato, conforme art. 171; de receptação, conforme art.180; de violação de direito autoral, conforme art. 184; de ato obsceno, conforme art. 233; de incitação ao crime, conforme art. 286; de apologia ao crime ou ao criminoso, conforme art. 287; de falsificação de documento particular, conforme art. 298; de falsa identidade, conforme art. 307; de exercício arbitrário das próprias razões, conforme art. 345; de preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, etc., conforme art. 20. da lei n. 7.716. de 1989; de pedofilia, conforme art. 241. do Estatuto da Criança e do Adolescente; de organização criminosa, conforme art. 2º da lei n. 12.850. de 2013; de crime contra a propriedade industrial, conforme art. 195. da lei n. 9.279. de 1996; de interceptação de comunicações de informática, conforme art. 10. da lei n. 9.296. de 1996; de pirataria, conforme art.12 da lei n. 9.609. de 1998, dentre outros crimes presentes no ambiente digital e previstos na legislação especial.141 Por fim, aponta para o tipo penal que representa especial ameaça para a democracia, o crime de acesso não autorizado ao sistema eletrônico de serviço eleitoral, conforme art. 72, I, II e III da lei n. 9.504. de 1997, conhecida como a Lei das Eleições, que prevê pena de reclusão de 5 a 10 anos para quem obtiver acesso à sistema de tratamento automático de dados usado pelo serviço eleitoral a fim de alterar a apuração ou a contagem de votos.142 Previsão essencial para a manutenção da lisura eleitoral e do sistema democrático brasileiro.
Tratando-se de engenharia social, Ferrari143, em reportagem da CNN Brasil Tecnologia, apresentou estudo, realizada junto à Psafe, indicando que 90% dos usuários de smartphones utilizavam o WhatsApp como o principal aplicativo de comunicação e que os usuários do aplicativo estão entre os principais alvos dos cibercriminosos que praticam golpes, como a clonagem de contas de usuários, utilizando-se da própria vítima para a ativação do dispositivo, induzindo o acesso ao código de liberação enviado por SMS, realizando o crime de extorsão, a posteriori. Acrescenta que pelo menos 8.5 milhões de usuários já tiveram suas contas de WhatsApp clonadas e, nesse cenário, um novo levantamento realizado pela CNN, junto à PSafe,144 em setembro deste ano de 2020, durante o auge do período de pandemia da COVID-19, indicou que no citado mês foram registradas 473 mil vítimas de clonagem de WhatsApp, um aumento na ordem de 25% em relação ao mês anterior, apontando ainda, que estes golpes afetam 15 mil pessoas por dia no Brasil.
No enfrentamento destas práticas delituosas, Wendt indica as inovações trazidas pela Lei Carolina Dieckmann, lei n. 12.737. de 2012, dispondo sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, alterando o código penal e introduzindo uma série de artigos, atualizando assim o sistema penal, com a previsão de condutas nocivas habituais dentro do sistema complexo virtual, como a conduta prevista no art. 154-A:
“invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena: detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática de conduta definida no caput. § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo: Pena: reclusão de seis meses a dois anos e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. § 4º Na hipótese do §3º, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidas”.145
Nessa esteira, aponta para novas modificações promovidas pela Lei Carolina Dieckmann nos artigos 266 e 298 do Código Penal. Versam sobre a interrupção ou a perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático ou de informação de utilidade pública, com pena de detenção de 1 a 3 anos e multa. Na sequência, a conduta de falsificação de documento particular, inclusive, indicando no parágrafo único, a previsão da falsificação de cartão de crédito ou de débito, equiparando-os a documento particular, com pena prevista de reclusão de 1 a 5 anos e multa.146
Nesse contexto, Cassanti147 aponta para a pesquisa realizada pela Kaspersky Lab, indicando que 21% dos links maliciosos presentes na internet estão hospedados em redes sociais, 14% estão disponibilizados em sites de conteúdo adulto. Indica que o YouTube apresenta 31% do total de malware (links maliciosos) e o Google 22%, ambientes estes onde são realizadas a manipulação de resultados de buscas para o redirecionamento aos citados links. Apresenta ainda, a pesquisa realizada pela Symantec onde 15% dos entrevistados tinham sido vítimas de crimes no “mundo físico”, enquanto 44% dos entrevistados tinham sido vítimas de crimes no “mundo digital”, além disso, apenas 21% destas vítimas relataram o crime à polícia. Lembra que a responsabilidade dos pais também é cabível, por negligência, conduta de deixar seus filhos passar tempo excessivo no computador sem supervisão, sem criar regras para o uso consciente da internet, mesmo fora de casa, conforme art. 932, I e IV, art. 1.634, I e V do Código Civil e arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, a pesquisa mostra que 86% das crianças tinham fotos do rosto postadas, 69% divulgaram seu sobrenome, 28% informaram suas escolas nas redes sociais e que 23% dos jovens já tiveram contato com desconhecidos por meio da internet ou já tiveram encontro real. Quanto aos meios mais utilizados para o cometimento de crimes pelos cibercriminosos, figuram o phishing, conduta nociva que tenta despertar a curiosidade da vítima, enviando mensagens na caixa postal pessoal, instalando-se trojans ao ser clicada, além da conduta de maior crescimento contemporaneamente, o sexting, que consiste no envio de conteúdos sexuais, vídeos ou fotos produzidos, geralmente, pela própria vítima ou com o seu consentimento para outras pessoas ou grupos de redes sociais, convertendo-se em extorsão em 59% dos casos, o cyberbullying em 45%, os danos à honra em 42%, a pornografia infantil em 36%, sendo que 88% destas imagens e vídeos de conteúdo erótico ou sexual são captadas e republicadas, sem permissão, em outros sites, conforme estudo da Internet Watch Foundation.
Cassanti148 complementa, apresentando algumas das ações mais comuns quando da invasão de um computador, indicando que o objetivo não seria prejudicar a máquina, mas sim causar prejuízo ao usuário com a captura de informações para a obtenção de vantagem financeira. Aponta que a fraude eletrônica no Brasil, conforme indica a Federação Brasileira dos Bancos, supera o valor que circula no narcotráfico, através do sequestro de dados, como fotos, vídeos e mensagens, com a posterior exigência de resgate ou a negociação com terceiros.
Barreto recorre ao direito comparado, apresentando a lei complementar n. 109. de 2009, conhecida como a Lei do Cibercrime de Portugal, exemplo da evolução do direito no combate à criminalidade cibernética, tratando, ainda, da importância da aplicação adequada dos métodos de hermenêutica, referindo-se à interpretação teleológica, para a extração da melhor norma ao tema:
“Nos crimes praticados no ciberespaço, faz imprescindível a interpretação constitucional teleológica do Código de Processo Penal, priorizando-se a celeridade, a economia processual e a busca da verdade real, devendo se entender por competente o juízo em que for facilitada a escorreita produção probatória, proporcionando o adequado processamento dos criminosos cibernéticos”.149
Nesse cenário, célebre exemplo de ameaça ao sistema cibernético, apresenta-se no caso dos hackers que invadiram os celulares do Presidente da República Jair Bolsonaro, assim como de diversas outras autoridades em 2019. A conduta motivou a operação “Spoofing” da polícia federal, resultando na prisão de vários suspeitos. Outro notório exemplo de sequestro de dados confidenciais, este com motivação ideológica, foi protagonizado por Julian Assange em 2012, criador do site Wikileaks, resultando na sua prisão, após 7 anos exilado na embaixada do Equador em Londres.
Por fim, Barreto, sobre as ameaças cibernéticas, Estado e legislação:
“Nesse contexto de supervalorização de informação e do conhecimento, surge à necessidade de regulação jurídica das novas relações advindas da tecnologia. Como fica, então, a regulação legal no Brasil das relações no ambiente virtual?”150
3.7. Democracia Digital e o Marco Civil da Internet – Lei n. 12.965. de 2014
A modificação na concepção de cultura digital foi promovida pelos diversos atores do cenário cibernético, oportunizada, estruturalmente, pelas empresas de tecnologia que produziram uma interface gráfica amigável e intuitiva, lideradas pela Microsoft e pelas empresas que facilitaram e intermediaram o desenvolvimento do sistema complexo virtual, possibilitando o trânsito para as interações sociais e negociais na rede, desde as idealizadoras dos hardwares e dos softwares, provedores de acesso, provedores de aplicação, dentre outros agentes. Sob esse prisma, o Marco Civil da Internet, lei n. 11.965. de 2014,151 foi criada para proporcionar a esperada contribuição na específica normatização do ambiente virtual, sob a égide da Carta da República.
Souza indica que “o Marco Civil da Internet foi concebido como uma lei que pudesse preservar as bases para a promoção das liberdades e dos direitos na internet no Brasil, distanciando-se de uma regulação repressiva da rede”, criando um instrumento legal que exerça o papel de “fio condutor” aos direitos humanos. Acrescenta que a ideia de “internet livre” não estaria ligada à ausência de leis, pelo contrário, trata-se da necessidade da presença “de leis que possam garantir e preservar as liberdades que são usufruídas por todos”.152
Fiorillo153 disserta que o MCI, além de reproduzir uma série de princípios, de direitos e de deveres para o uso da internet no Brasil, determinou as diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria, pretendendo estabelecer os parâmetros jurídicos aplicáveis ao sistema, como a tutela jurídica do meio ambiente cultural da sociedade da informação, contribuindo para o processo seguro de inclusão digital e de democrática substancial, conforme consta no artigo 1º da lei. No que se refere à democracia digital, o artigo 2º trata da liberdade de expressão, um dos pilares da dignidade humana, assim como exteriorizam-se em seus incisos, outros fundamentos constitucionais de elevada importância em nosso Estado Democrático de Direito, como a garantia aos direitos humanos, ao desenvolvimento da personalidade, ao exercício da cidadania em meios digitais, a pluralidade e a diversidade, a livre-iniciativa, a livre concorrência, a defesa do consumidor e a finalidade social da internet.154
Souza155 observa que o MCI contempla a estrutura constitucional e institui o regime de liberdade de iniciativa para as atividades econômicas desenvolvidas na internet, conforme o exposto no artigo 3º, VIII, versando sobre a “liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos na lei. O artigo traz novos princípios integrantes do sistema democrático, como o da garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, na forma prevista pela Carta Magna, da proteção à privacidade, da proteção aos dados pessoais, este último, objeto nuclear da Lei Geral de Proteção de Dados,156 da preservação da neutralidade, da preservação da estabilidade, da segurança, da funcionalidade da rede, da responsabilização dos agentes de acordo com as suas atividades e da preservação do ambiente colaborativo.
Fiorillo157 versa sobre o artigo 7º do MCI, que exterioriza, amplamente, o propósito democrático, desenvolvimentista e garantista de direitos, afirmando-se que o acesso à internet seria uma ferramenta essencial ao exercício da cidadania, assegurando ao usuário o direito à intimidade e à vida privada, a inviolabilidade, o sigilo das comunicações, respeitando-se eventual ordem judicial, o sigilo dos dados armazenados, às informações claras e completas nas diversas relações constantes no sistema complexo virtual, dentre outros direitos. Oportuno realçar que as citadas normas seguem os fundamentos constitucionais dos artigos 1º e 3º e os direitos e deveres individuais e coletivos expressos nos artigos 5º, 6º e seguintes.158
Aponta-se ainda, para a influência do Código de Defesa do Consumidor, que mantém sua extrema relevância nas relações de consumo estabelecidas dentro ou fora do ambiente digital, sendo inspiração para diversas normas do MCI. Importante paradigma jurídico, incidindo, conforme estipula a especialidade, da mesma forma que as demais legislações e códigos competentes ao tema, tratando-se de dispositivos fundamentais para a consolidação de um ambiente cibernético seguro e transparente, paradigmas salvaguardas da pluralidade de ideias e da democracia. Nesse contexto, observa-se que o Marco Civil da Internet apresenta algumas diferenças frente ao Código de Defesa do Consumidor, como no controvertido tema da não responsabilidade dos provedores de acesso, conforme consta no artigo 18 do MCI,159 motivado pelas especificidades do ambiente virtual e pela “galáctica” extensão de interações e de serviços prestados pelas empresas de tecnologia, obstaculizando o previsto no CDC que considera, em regra, toda a cadeia negocial como de responsabilidade solidária e objetiva.
O Marco Civil da Internet oferece um importante conjunto normativo para o enfrentamento dos atos ilícitos cíveis, ilícitos criminais ou atos antissociais como a fake news, hate speech, revenge porn, ciberbullying, stalker, dentre outras condutas virtualizadas que podem ser tipificadas como delitos, a partir da análise de suas circunstâncias e elementos. Sobre o tema, nova controvérsia instaura-se no art. 19. que trata da responsabilidade dos provedores, inserindo a condição específica da prévia notificação judicial para a responsabilização subjetiva dos provedores de aplicação, sobestada a não retirada do conteúdo ofensivo, dentro do prazo determinado pela Justiça. Como exceções, apenas os temas referentes aos direitos autorais e a divulgação de vídeos, imagens e outros materiais de nudez ou de atos sexuais de caráter privado. Engloba-se a “revenge porn and sexting”, ou seja, a pornografia de vingança, podendo ser atribuída responsabilidade ao provedor de aplicação, bastando à notificação extrajudicial dos interessados, a inércia ou a negativa da empresa na retirada do conteúdo, além da comprovação da materialidade da conduta, respondendo na forma subjetiva e subsidiária, conforme os arts.19, 20 e 21 da lei.160
Sobre novas polemicas e disfunções no sistema complexo virtual, Magrini161 disserta sobre a falta ou o excesso da filtragem realizada pelas empresas de tecnologia, pela Justiça ou mesmo pelos usuários, que acabam por se afastarem de pontos de vista divergentes, empobrecendo o debate na esfera virtual, com uma predição algorítmica que resulta, muitas vezes, em obstáculos ao acesso às informações que deveriam ou precisariam ser vistas para o enriquecimento do debate democrático. Indica que a internet seria plástica e mutável, e que o excesso de filtragem poderia tornar o usuário, involuntariamente, refém dos algoritmos e inserido dentro de “bolhas” através do fenômeno do “filter bubble”, espaços onde não há a decisão por parte do usuário. Complementa que a manipulação da informação seria um novo problema, com a ação de robôs no ambiente digital que criam, por exemplo, a falsa sensação de amplo apoio político a certa proposta, ideia ou figura pública, modificando o rumo de políticas públicas, interferindo no mercado de ações, disseminando rumores, notícias falsas e teorias conspiratórias, gerando desinformação e poluição de conteúdo, além de atrair usuários para links maliciosos que roubam dados pessoais, intervindo em debates nas redes sociais, atingindo diretamente os processos políticos e democráticos através da influência da opinião pública.
Nesse cenário, conforme exposto na análise crítica de Magrini, foi instaurado o polêmico e controverso inquérito 4781 do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Alexandre de Morais e de constitucionalidade confirmada na ADPF 572, o chamado inquérito da “fake news” ou inquérito do “fim do mundo”, termo presente no voto do Ministro Marco Aurélio. Apresenta como objeto notícias fraudulentas, assim como outras condutas ilícitas, conforme trata o relator:
“(...) falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que tem o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito. Diante dos fatos expostos, o relator do inquérito, Ministro Alexandre de Moraes, determinou uma série de medidas como a busca e apreensão de bens móveis, o bloqueio de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados, o afastamento do sigilo bancário e fiscal de investigados, dentro outras medidas, conforme relatório do inquérito (...)”. 162
Sobre polêmicas formas de controle, Fiorillo, não obstante a constatação de que o Marco Civil da Internet represente um instrumento de grandes qualidades, disserta que a lei induz em erro o intérprete, apontando para a forma equivocada de interpretação, com o seguinte argumento:
“(...) invocando direitos constitucionais deslocados de sua adequada interpretação sistemática (“com intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”), procura o artigo 19 e seus parágrafos estabelecer condicionamentos infraconstitucionais aos direitos constitucionais do usuário na internet no Brasil, direitos já apontados na presente obra, e mesmo indevida orientação ao Poder Judiciário (§3), violadora dos dispositivos constitucionais definidores da atuação de referido Poder (arts. 92. a 126 da Carta Magna)”.163
Nesse sentido, Fiorillo164 critica o afastamento, em alguma medida, dos conflitos inerentes às relações de consumo no ambiente virtual pela especialidade do Marco Civil da Internet frente ao Código de Defesa do Consumidor, lei n. 8.078. de 1990, apontando para a importância de se aplicar a referida norma, essencialmente, os arts. 6º, 18, 19 e 81, no que se refere ao uso das disposições protetivas do usuário consumidor digital, com a observância integral do direito processual constitucional, assim como do subsistema processual do CDC, o direito à efetiva prevenção e à reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos, o direito ao acesso aos órgãos judiciários e administrativos, direito à facilitação da defesa dos direitos, com a inversão do ônus da prova quando verossímil a alegação, além da responsabilidade solidária e objetiva do usuário fornecedor do ambiente digital,165 referindo-se ainda ao art. 5º, XXXV da Carta Magna,166 que trata do direito à garantia de proteção jurídica efetiva, no que consiste na proteção da dignidade humana por meio do processo e do procedimento administrativo. Propõe uma ampla divergência frente aos arts.18, 19 e 21 do Marco Civil da Internet.167
Sob esse prisma, Wendt168 apresenta algumas disposições previstas no Código de Defesa do Consumidor essenciais às relações consumeristas do ambiente digital, como o art. 6º, que trata da publicidade transparente e o art. 49, que trata do direito ao arrependimento, podendo o consumidor desistir da compra realizada online, sem qualquer ônus, dentro do prazo de sete dias. Complementa, indicando as regras para a realização do comércio eletrônico presentes no decreto n. 7.962. de 2013, que regulamenta o CDC, dispondo sobre a contratação no comércio eletrônico. Os artigos da norma tratam dos sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo que devem disponibilizar diversas informações, garantir o atendimento facilitado, observar o cumprimento das condições da oferta, entrega, prazos, quantidade e qualidade, inclusive, prevendo frente a não observação do disposto na norma, as sanções do art. 56. do referido dispositivo.169
Nesse contexto, Souza170 aponta para os intensos debates, no advento da tramitação legislativa do MCI, sobre questões como privacidade, proteção de dados, neutralidade da rede, responsabilidade dos provedores e direitos autorais. Acrescenta que o tema da responsabilidade dos provedores de aplicação foi um dos mais divergentes. Havia àqueles que defendiam o sistema de notificação e retirada e os que defendiam a necessidade da condição de prévia ordem judicial para responsabilizar os provedores e obrigar a retirada do conteúdo, tese consolidada no art. 19. do MCI. Nesse sentido, as controvérsias repercutem nos juízos e nos tribunais do Brasil. Antes da entrada em vigor do MCI, os tribunais aplicavam a lógica da ”notificação e retirada”, advindo do direito norte-americano, “notice and take down”, no sentido da possibilidade de se responsabilizar os provedores de aplicações, excluindo-se os provedores de infraestrutura, os chamados “backbones” e os provedores de acesso à rede, não detendo responsabilidade jurídica sobre os conteúdos disseminados pelos usuários, quando da identificação de conteúdo ilícito e de sua não remoção, conforme consta no art.18. No entanto, já existiam julgados em sentido contrário ao paradigma anterior do MCI, ou seja, afastando-se a incidência do CDC, nos julgados do Superior Tribunal de Justiça, preconizando o previsto no art. 19. do Marco Civil da Internet,171 conforme as decisões nos REsps. 1.193.764/SP, j. em 14.12.2010, 1.308.830/RS, j. em 08.05.2012, 1.316.921/RJ, j. em 26.06.2012, 1.407271/SP, j. em 21.11.2013, todos de relatoria da Ministra Nancy Andrighi.172
Sobre o tema, referente à necessidade da condição específica de notificação judicial para a responsabilização das empresas provedoras de aplicações, objeto dos citados debates e das controvérsias na doutrina e na jurisprudência, Fiorillo173 aponta para o fato da questão ter sido levada ao STF, tratado no tema 987 de repercussão geral, tendo como objeto, justamente, a análise da constitucionalidade do referido art.19 do MCI, leading case RE 1037396/SP interposto pelo Facebook e de relatoria do Ministro Dias Toffoli, atualmente na fase de convocação de audiência pública. Segue a ementa:
“Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19. da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Relator: Ministro Dias Tofolli. Leading Case: 1037396. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 5º, incs. II, IV, IX, XIV e XXXVI e XXXVI, e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição da República, a constitucionalidade do art. 19. da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que impõe condição para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos de terceiros”.174
Souza, sobre a questão, apresenta que:
“(...) reside talvez uma das mais acesas controvérsias da Lei, já que o Marco Civil apenas considera que os provedores poderiam ser responsabilizados se não cumprissem ordem judicial para a retirada do conteúdo”.175
Dessa forma, Magrini176 aponta para o fato de que antes da vigência do Marco Civil da Internet restava claro que a ausência de disposições sobre direitos fundamentais básicos, como a liberdade de expressão e o direito à privacidade, dificultava a aplicação da legislação em vigor e geravam inúmeras decisões judiciais conflitantes para as mais diversas controvérsias envolvendo o uso da internet. Dessa forma, o MCI seria como a “Constituição da Internet” no Brasil, que salvaguardou diversos princípios e direitos fundamentais espelhados na Constituição Federal, estando à proteção da privacidade, dos dados pessoais e da liberdade de expressão, expressamente previstas na referida lei, representando um grande avanço frente ao cenário anterior ao diploma, fator que motivava uma quantidade maior de abusos e de violações de direitos. Complementa que o MCI, apesar de ser uma lei recente e atenta ao potencial que a internet representa ao sistema democrático, não é capaz de garantir sozinho, uma proteção plena diante deste “novo mundo”, considerando-se o potencial de riscos aos direitos fundamentais.
Nesse cenário, apesar de todas as previsões do Marco Civil da Internet que visam tutelar a privacidade e a segurança dos usuários da internet, os dispositivos existentes não são suficientes para garantir, integralmente, a segurança jurídica dos usuários. Sob esse prisma, surge a Lei Geral de Proteção de Dados, como um novo paradigma normativo, integrando o arcabouço jurídico necessário para a garantia dos direitos da sociedade conectada e para a estabilização harmônica do ambiente digital, por sua vocação desenvolvimentista, pluralista, integradora e humanística.
3.8. Democracia Digital e a Lei Geral de Proteção de Dados – Lei n. 13.709. de 2018
A internet, como um potente instrumento de inclusão social e de potencialização de democracia, apesar de não ter sido caracterizada como de esfera pública, entende-se que deveria ser incluída, formalmente, nesse conceito, por sua relevância para a sociedade do conhecimento, sendo extensivamente utilizada em múltiplas frentes de agregações de valor e de consecução do interesse público. Nesse sentido, as tecnologias da informação têm transformado indivíduos em fonte de ativa atuação expandida de cidadania, de instrumento de controle do poder público, de integração nacional e transnacional, dentre outras oportunidades para consolidar o cidadão como um importante agente protagonista do processo de transformação social, consequentemente, proporcionando maior legitimidade política à coletividade, essencialmente, através da integração dos hipossuficientes e das classes minoritárias nos debates públicos que, outrora, pertenciam as classes mais privilegiadas, habitualmente mediadas por grupos pertencentes a elite historicamente dominante, como os conglomerados da mídia tradicional, classe corporativa, política ou estatal.
Nesse contexto, entende-se que a internet, instrumentalmente, pertence a esfera pública através do seu potencial propagador de realizações substancialmente democráticas, significativamente igualitárias, distinguindo-se, em grande medida, das demais mídias pelo seu caráter integrador, participativo, neutro, colaborativo, simultâneo, inovador, dinâmico e global. Dessa forma, a inclusão digital estabelece-se como um direito fundamental, refletindo a vontade da norma presente no artigo 5º, XIV da Constituição Federal,177 justamente, de acordo com o preconizado no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,178 paradigma global da dignidade humana.
A Lei Geral da Proteção de Dados, lei n. 13.709. de 2018, sancionada em 14 de agosto de 2018 após anos de discussões, estando em vigor, parcialmente, desde setembro deste ano de 2020, vem a contribuir na solução dos diversos temas levantados no estudo, essencialmente, quanto ao tratamento de dados sensíveis, responsabilidades, privacidade e liberdade de expressão.179
Pinheiro180 ensina que a Lei de Proteção de Dados Pessoais é um novo marco legal brasileiro que traz princípios, direitos e obrigações relacionados ao uso de um dos mais valiosos ativos da sociedade da informação, as bases de dados pessoais. A lei inspirada no Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais (GDPR) tem como objetivo nuclear a proteção dos direitos fundamentais de liberdade, de privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, trazendo a premissa da boa-fé para todo o tipo de tratamento de dados pessoais, obrigando-se ao cumprimento de uma série de princípios, controles técnicos para governança da segurança das informações que identifique ou que possa identificar uma pessoa, incluindo a categoria de dados sensíveis.
Bioni181 disserta sobre a correlação realizada na LGDP entre proteção de dados pessoais e discriminação, com a criação de uma categoria especial de dados pessoais, os denominados dados sensíveis, tratando-se de informações sobre raça, credo, opção sexual, convicções políticas e filosóficas, filiações partidárias e sobre o estado de saúde, certamente por terem o potencial de ocasionar, isoladamente ou em conjunto, práticas discriminatórias. Representa uma iniciativa regulatória harmonicamente espelhada nos princípios fundamentais presentes no art. 3º, I e IV da Carta da República:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.182 (grifo nosso)
Nesta esteira, são grandes as expectativas com a aplicação das normas da Lei Geral de Dados Pessoais no cotidiano digital. A lei representa um novo, moderno e promissor instrumento normativo de propagação de segurança jurídica, de estabilização do sistema virtual, de garantia da aplicação substancial de democracia, de inclusão social, de pluralidade de ideias, de novas formas de exercício de cidadania e de incentivo as inovações e ao desenvolvimento socioeconômico, assim como humanístico, manifestando especial tutela aos dados pessoais, especialmente, aos dados sensíveis, com o objetivo de exortar condutas nocivas e repugnantes no ambiente digital, como são os atos discriminatórios em todas as suas formas. Sob esse prisma, a interferência estatal arquitetada faz-se oportuna para a defesa da privacidade, resguardando, como dito, os dados sensíveis de forma qualificada, realizando-se o controle do fluxo de manifestações discriminatórias que contaminam o “mundo digital”, como “bactérias” que contaminam o ar que respiramos no mundo físico tradicional.
3.9. Considerações finais do capítulo
Apresentou-se algumas normas originárias, como principais paradigmas jurídicos que incidem no cotidiano do ambiente cibernético, assim como a colisão entre direitos fundamentais, indicando-se como sugestão, a aplicação das modernas técnicas de ponderação de direitos como instrumentos eficientes para consolidar a harmonização e a composição destas colisões e dos conflitos entre as normas infraconstitucionais presentes no cotidiano digital, oportunizando a aplicação substancial dos direitos consagrados na Constituição, núcleo existencial do Estado Democrático de Direito.
Indicou-se que as técnicas de interpretação, sob o prisma dos princípios interpretativos e dos métodos hermenêuticos, são potentes instrumentos de composição de crises e para a consecução da extração da melhor norma possível aplicável aos temas presentes no espaço cibernético, como um ambiente propagador de liberdades públicas, de desenvolvimento social, de democracia digital substancial, possibilitada pela segurança das relações e nas interações, contribuindo assim, com a evolução, sem precedentes, das potencialidades da sociedade na “era digital”, em um ambiente norteado na interpretação dos juristas sob o eixo materialista, contudo, com a sugestão de alguns grandes pensadores de nossa época para que o povo seja, em alguma medida, protagonista do processo de interpretação da norma, tratando-se de modernos métodos de hermenêutica e da ideia de uma “sociedade aberta”.
Nos termos da referida premissa, o povo, razão da existência do Estado, é identificado como legítimo intérprete da Constituição, configurando-se agente ativo da hermenêutica constitucional democratizada, encontrando no ambiente digital a oportunidade, justamente, por suas características potencializadoras de integração, de participação, de inclusão de todas as classes, de ampliação de vozes sem mediação ou obstáculos geográficos e temporais, para o seu reconhecimento como intérprete indireto da Constituição, juntando-se aos intérpretes tradicionais, em grande medida, pertencentes as elites dos poderes do Estado que, por séculos, influenciam sobre os valores a serem extraídos da lei.
Concluiu-se, com o estudo das características e das controvérsias dos importantes parâmetros jurídicos aplicáveis ao sistema complexo digital, perpassando pelas leis especiais, analisando-se diversos aspectos dos novos marcos regulatórios como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, assim como na pesquisa das condutas nocivas e das respectivas responsabilidades, delitos que afetam a democracia no cotidiano cibernético, com o entendimento de que os institutos jurídicos apresentados refletem e resguardam os direitos fundamentais junto ao ambiente digital, necessário fenômeno para a expansão e o desenvolvimento das oportunidades protagonizadas pela sociedade conectada na “constelação” das relações virtuais, essencialmente, suficientes para a construção de uma democracia substancial, exortando o sentimento dos “direitos distantes” e da demagogia estruturada no formalismo sem sentido, construindo-se novos alicerces, por interações tradicionais ou virtualizadas, em um Estado Constitucional de grandes qualidades.