A abertura judicial da falência e o artigo 73 da Lei 11.101/05

06/04/2023 às 11:53
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A ABERTURA JUDICIAL DA FALÊNCIA E O ARTIGO 73 DA LEI 11.101/05

Carlos Roberto Claro1

Esto brevis et placebis - Horácio

Retorno a um tema deveras importante, qual seja, a regra do art. 73 da Lei 11.1101/05 – hipóteses taxativas de convolação da recuperação judicial em falência2 (escrevi a respeito em agosto/20083). Reputo necessário traçar mais algumas linhas acerca do enunciado legal, considerando, inclusive, a recente decisão proferida pelo e. Superior Tribunal de Justiça. Assim decidiu a Terceira Turma, com voto condutor do Min. Marco Aurélio Bellizze:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA. ROL LEGAL TAXATIVO. AMPLIAÇÃO DO ALCANCE DE DISPOSITIVO LEGAL. DESCABIMENTO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO CONSTANTE DO PLANO. CONJECTURA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO.

1. O propósito recursal consiste em definir, além da negativa de prestação jurisdicional, a possibilidade de convolação da recuperação judicial em falência após o transcurso do prazo bienal de supervisão judicial, mas sem que tenha havido decisão judicial de encerramento da recuperação, com base apenas em pedido da recuperanda de realização de nova assembleia geral de credores para modificação do plano de soerguimento, ante a alegada inviabilidade de consecução do plano vigente.

2. As hipóteses de convolação da recuperação judicial em falência arroladas no art. 73 da Lei n. 11.101/2005 são taxativas, em virtude da consequência gravosa que dela decorre, equivalendo-se a uma penalidade legalmente imposta ao devedor em soerguimento, sendo suscetível, por isso, de interpretação restritiva.

3. Não cabe ao Juízo da recuperação antecipar-se no decreto falimentar, antevendo uma possível (mas incerta) inexecução das obrigações constantes do plano, a pretexto de incidência do art. 61, § 1º e, por conseguinte, do art. 73, IV, ambos da Lei n. 11.101/2005, sem que efetivamente tenha ocorrido o descumprimento, pois tal proceder caracteriza uma ampliação indevida do alcance da norma, conferindo interpretação extensiva a dispositivo legal que só

comporta interpretação restritiva.

4. Inexistindo notícia nos autos acerca do efetivo cumprimento das obrigações do plano, a fim de subsidiar a sentença de encerramento da recuperação ou, caso contrário, de convolação em falência, impõe-se a devolução dos autos à origem para diligenciar nesse sentido e decidir conforme o entendimento ora delineado.

5. Recurso especial provido4

A Lei 14.112/2020 incluiu os incisos V e VI, excluiu o parágrafo único e acrescentou os parágrafos primeiro, segundo e terceiro ao art. 73.

Ao analisar a petição inicial da ação de recuperação judicial ajuizada pelo devedor mergulhado em crise econômico-financeira, poderá o magistrado:

  1. Indeferir de plano a petição inicial (CPC, art. 330);

  2. Determinar o regular processamento (art. 52 da Lei 11.101/05);

  3. Deliberar pela realização da perícia prévia (art. 51-A), deferindo ou não o processamento da recuperação após a entrega do laudo5;

  4. Determinar a emenda da petição inicial (CPC, art. 321) e depois poderá indeferir a petição inicial ou observar o art. 52 da Lei 11.101/05, ou seja, deferirá o processamento da reestruturação judicial

As hipóteses que autorizam a abertura judicial da falência são apenas as constantes do art. 73 da lei de regência, de modo que não pode o magistrado retirar o devedor do mercado ao apreciar a petição inicial.

O pedido constante da petição inicial delimita o efetivo alcance da prestação jurisdicional (CPC, arts. 322 e 324), ou seja, traça os limites da pretensão esposada, não cabendo olvidar da regra do art. 242, bem como daquelas previstas nos artigos 141 e 492, do Código de Processo Civil6.

A regra do inciso I do art. 73 é no sentido de que pode ser aberta a falência se a assembleia-geral de credores assim deliberar7. Acerca do tema, disserta Fábio Ulhoa Coelho: claro está que essa hipótese de convolação verifica-se durante as fases de postulação e deliberação. Depois de homologação ou aprovado o plano pelo juiz, sendo este cumprido pelo beneficiado, não têm mais os credores competência para, em Assembleia, votar a convolação em falência8.

Na fase de análise da petição inicial nem sequer existe relação jurídico-processual instaurada e muito menos há este órgão da reestruturação – assembleia-geral de credores, de modo que tal inciso não tem aplicação.

Quanto ao inciso II, o não cumprimento da obrigação legal por parte do devedor – apresentação do plano de reestruturação dentro do prazo – art. 53 [a depender da análise do caso concreto, poderá haver prorrogação9]- demonstra, em tese, a situação de crise patrimonial do devedor ou mesmo “desistência” da reestruturação [dentre outras possibilidades], cabendo abertura judicial da falência.

No que se refere ao inciso III, em resumo, havendo rejeição do plano apresentado pelos credores, haverá abertura da falência.

O v. acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça tratou da hipótese prevista no inc. IV do art. 73, qual seja, permitida a abertura judicial da falência do devedor em caso de descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de reestruturação (art. 61, §1º). Consta do seu teor:

Extrai-se, assim, que a convolação da recuperação em falência equivale a

uma sanção legalmente imposta ao devedor em soerguimento, haja vista a gravidade das consequências que dela resultam, devendo, portanto, ser objeto de interpretação estrita as hipóteses arroladas no art. 73 da Lei Falimentar. Como consabido, as regras que imponham penalidade deverão ser objeto de interpretação restritiva, do que se conclui ser taxativo o rol desse dispositivo legal

[...]

Quanto à hipótese específica debatida nestes autos, de convolação da recuperação em falência fundada no inciso IV do art. 73, em que há o descumprimento das obrigações do plano pelo devedor dentro do biênio legal de supervisão judicial, a despeito do interesse público da recuperação, o que se discute na realidade são as relações particulares do negócio estabelecido entre a sociedade recuperanda e os credores, afigurando-se recomendável ao juiz que, nesse caso, aguarde a manifestação da parte interessada, descurando-se de decretar a falência de ofício (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo – 14ª ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 254).

Na hipótese, o Juízo da recuperação convolou a recuperação da recorrente em falência, com base nos arts. 61, § 1º, e 73, IV, da Lei n. 11.101/2005, considerando como situação caracaterizadora do descumprimento das obrigações do plano a confissão da recuperanda de impossibilidade de continuar adimplindo o plano aprovado e homologado, na oportunidade em que a sociedade devedora requereu àquele Juízo a realização de nova assembleia com o propósito de modificação do plano vigente.

Tal situação, contudo, não configura o real descumprimento das obrigações do plano ensejador da convolação em falência, mas uma mera conjectura, que pode, inclusive, nem ocorrer, a ampliar indevidamente o alcance do texto legal. Não cabe ao Juízo da recuperação, nesse contexto, antecipar-se no decreto falimentar, antevendo uma possível (mas incerta) inexecução das obrigações constantes do plano, a pretexto de incidência do art. 61, § 1º e, por conseguinte, do art. 73, IV, ambos da Lei n. 11.101/2005, sem que efetivamente tenha ocorrido o descumprimento, pois tal proceder caracteriza uma ampliação indevida do alcance da norma, conferindo interpretação extensiva a dispositivo legal que só comporta interpretação restritiva.

Tal o quadro delineado, seria de rigor, em princípio, a reforma do acórdão recorrido e, por conseguinte, da decisão de primeira instância agravada, para decretar o encerramento da recuperação judicial com fundamento no art. 63 da Lei n. 11.101/2005, ao invés da convolação em falência

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Inexistindo o cumprimento de obrigações relativas a parcelamento de débito fiscal (art. 68) ou transação prevista na Lei 10.522/2002 (art. 10-C), também poderá haver a imediata retirada do mercado (inc. V, do art. 73).

A nova hipótese tratada no inc. VI da art. 73, em síntese, é no sentido de que, havendo esvaziamento de patrimônio do devedor que leve à substancial liquidação da “empresa”, prejudicando o universo de credores não adstritos ao regime recuperatório, poderá haver a falência. O §3º complementa o dispositivo, esclarecendo o que é “substancial liquidação”.

Diz o texto que é substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade. No momento de análise da petição inicial da ação de recuperação judicial, quer-se crer, inaplicável tal hipótese, até porque ainda não existe processo judicial propriamente dito, de modo que não há falar em “credores não sujeitos” à reestruturação. Demais, o cumprimento das obrigações somente deverá ser observado após a decisão que determinar o processamento da recuperação judicial (art. 52). Por outro, em tese, poderá ocorrer o aludido esvaziamento no decorrer do processo de reestruturação, permitindo-se a abertura judicial da falência.

A identificação do esvaziamento patrimonial há de estar robustamente provada, sem descuidar da necessidade de ouvir a entidade recuperada, colocando-se em prática o princípio do contraditório e direito à produção de provas (ampla defesa). Cabe considerar, como insistido, nos efeitos gravosos da retirada do devedor do mercado e a repercussão, inclusive social.

Finalizando, não é em todo e qualquer momento processual que poderá haverá a abertura judicial da falência; é de se interpretar o art. 73 da Lei 11.101/05 sob os métodos hermenêuticos de interpretação sistemático, axiológico e teleológico; o art. 73 jamais poderá ser interpretado sob o enfoque literal, gramatical, sob pena de desvirtuamento do instituto da recuperação empresarial; a análise da petição inicial permite, no máximo, que ocorra o indeferimento por parte do magistrado, sem qualquer possibilidade de decretação imediata da falência, até porque tal hipótese não vem elencada no aludido art. 73 da lei.

As situações que autorização a convolação, por assim dizer, em falência só ocorrem após o juiz determinar o processamento do favor legal, nos termos do art. 52. A decretação [ou convolação] da falência fora de tais hipóteses se constitui em equívoco, com prejuízos [gravames] ainda maiores ao devedor, e, em consequência, ao universo de credores (inclusive o fisco) e à própria coletividade na qual se insere a entidade mergulhada em crise.


  1. Advogado desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

    http://lattes.cnpq.br/5264249545377944

    http://orcid.org/0000-0002-6589-9761

  2. No ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45 havia hipóteses taxativas para a convolação da concordata preventiva em falência (arts. 162 e 175). A aplicação do art. 73, em qualquer de suas hipóteses, deve sempre ser prudente, criteriosa, considerando que o escopo da lei é a (tentativa de) busca pela mantença do devedor do mercado, preservando a entidade, postos de trabalho etc., de modo que a falência é de ser aberta somente quando impossível a superação da crise, considerada momentânea. O norte estabelecido pelo art. 47 é este: tentativa de preservação da entidade empresarial. Sobre a função social da empresa: CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009. Interessante notar que a regra do art. 175, §8º do Dec.-Lei 7.661/45 permitia a abertura judicial de falência de ofício pelo juiz, decisão contra a qual cabia agravo de instrumento sem efeito suspensivo. O regime atual não permite a convolação da recuperação em falência ex officio.

  3. A convolação da recuperação judicial em falência. Jornal O Estado do Paraná, caderno Direito e Justiça, p. 04, de 03/08/2008.

  4. STJ, Terceira Turma, REsp. 1707468-RS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 25/10/2022.

  5. Observe-se a regra do art. 51-A, §6º da Lei 11.101/05.

  6. Princípio da demanda (ou da demanda ou da adstrição); princípio da congruência entre o pedido e a sentença. A respeito, Humberto Theodoro Júnior escreve: Note-se, ainda, que o princípio da demanda vincula o juiz não apenas ao pedido, mas igualmente aos seus fundamentos (causa de pedir) de modo que não lhe é permitido solucionar o litígio por meio de razões ou motivos diferentes daqueles regularmente formulados pelos litigantes. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 58ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1092. E prossegue, quanto ao princípio da congruência: o juiz deverá ficar limitado ao adstrito pedido da parte, de maneira que apreciará e julgará a lide ‘nos termos em que foi proposta’, sendo-lhe vedado conhecer questões não suscitadas pelos litigantes (art. 141). Prevalece, portanto, o princípio dispositivo na instituição da relação processual e na definição do objeto sobre o qual recairá a prestação jurisdicional. Justifica-se a prevalência do princípio dispositivo nesses momentos cruciais do processo também pela necessidade de prese4rvar a neutralidade do juiz diante do conflito travado entre os litigantes. Cabe-lhe receber e solucionar o litígio, tal qual deduzido pelas partes, em juízo, sem ampliações ou derivações para temas por elas não cogitados. Op. cit., p. 73. Destaques no original.

  7. Art. 58-A. Rejeitado o plano de recuperação proposto pelo devedor ou pelos credores e não preenchidos os requisitos estabelecidos no § 1º do art. 58 desta Lei, o juiz convolará a recuperação judicial em falência.

  8. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 189.

  9. Em tese, pode a entidade recuperada ter relevantes motivos para a não apresentação do plano dentro do prazo legal, competindo ao magistrado apreciar a fundamentação para conceder eventual dilação do prazo, improrrogável. Fosse correto seguir a letra fria da lei, e observando que o devedor não apresentou o plano, o magistrado convolaria imediatamente a recuperação judicial em falência. Cabe interpretação sistemática, axiológica e teleológica da Lei 11.101/05, de modo que a prudência aconselha que a recuperanda, verificando [eventualmente] que não poderá cumprir o prazo para a juntada do plano, imediatamente protocole pedido dilação. O que não pode [e não deve] é ficar inerte, posto que, daí sim, poderá sofrer ainda maiores prejuízos, inclusive a possibilidade, agora real, de ser decretada a sua falência. Considerando que o Código de Processo Civil é aplicável de forma subsidiária à Lei 11.101/05 (art. 189), pode haver dilação de prazo para a juntada do plano de reestruturação, observada, repita-se, a situação concreta.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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