Teoria da divisão dos poderes do Estado: breves apontamentos sobre suas origens, evolução e aspectos atuais

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Neste artigo são abordados aspectos da teoria da divisão dos poderes do Estado, com: breves apontamentos sobre suas origens, evolução e aspectos atuais.

1. Nascimento e escopos de igualdade

A questão do exercício do poder pelo Estado sempre despertou as mais ardentes discussões entre teóricos e pensadores ao longo da história da humanidade. Tais debates travaram-se e verificam-se, ainda hoje, devido às tentativas de limitação do arbítrio por parte dos detentores do poder e de reconhecimento da igualdade entre os componentes sociais.

Neste sentido, preocuparam-se ou sugeriram o tema Aristóteles1, Platão e Políbio, que propuseram formas de governo que ambicionavam alcançar o equilíbrio político com a limitação do poder; também Heródoto e Xenofonte2 e, anos depois, John Lock3, Rousseau4, Maquiavel e Althusius5, citando-se apenas alguns dos que enfrentaram instigante assunto.

As sociedades, até um certo momento de seu desenvolvimento, conviviam com o poder exercido por um único centro de comando, ou por centros de comando pulverizados ao longo dos territórios, com nomes e configurações diversos, mas exercentes de várias ou mesmo de todas as atribuições que lhes eram intrínsecas, sem qualquer especialização na distribuição dessas tarefas.

Ilustrem-se tais apontamentos com a menção ao Império Romano, onde o monarca ou imperador concentrava todo o poder, embora buscando opinião do Conselho de Anciães e, depois, do Senado. Posteriormente, alumia-se com o período medieval, em que se desenvolve o feudalismo6, sinônimo de concentração de poder nas mãos dos senhores feudais. Com o renascimento comercial e urbano e o com fim do feudalismo7, o Estado acaba por unificar-se8, estando o poder enfeixado na figura do monarca, absoluto9.

A reunião, numa mesma pessoa, ou num mesmo organismo público, das funções de elaboração ou reconhecimento e aplicação das regras sociais, fossem as mesmas costumeiras ou escritas, bem como das funções de direcionamento das ações estatais, ocasionava desmandos e abusos por parte dos responsáveis pela sua concretização.

Destarte, pouco a pouco, as sociedades tiveram tais atribuições identificadas e estudadas, vislumbrando-se, afinal, como sustentáculo ao desenvolvimento de um Estado menos opressivo, a necessidade da distribuição do exercício das principais funções estatais, quais sejam – legislativa, judiciária e executiva - entre diversos órgãos ou divisões, ilações fundadas na denominada teoria da separação ou da tripartição dos poderes, ou teoria dos freios e contrapesos, que teve como compilador Montesquieu10, em sua conhecida obra “O Espírito das Leis”, de 1.747.

Além da ideia de salvaguardar os direitos individuais reduzindo os desmandos do Estado, a identificação entre a tripartição do poder e os postulados de igualdade entre os cidadãos foi impulsionada, em linhas gerais: pelos anseios econômicos do nascente liberalismo, que necessitava de segurança nas relações jurídicas para a expansão do comércio; pela ascensão ao poder político pelos novos detentores do poder econômico – os burgueses; pelo Iluminismo, que se espraiou na Europa e, depois, em todo o mundo, reconhecendo, justamente, direitos intangíveis dos indivíduos.

Sobre a importância da eclosão da teoria dos três poderes para o liberalismo tem-se que a mesma significou verdadeiro “[...] penhor dos recém-adquiridos direitos políticos da burguesia frente ao antigo poder das realezas absolutas11”. Acrescente-se que o liberalismo também serviu de alicerce à concepção política do Estado de Direito e do constitucionalismo, diante da já apontada busca pela segurança jurídica dos cidadãos contra o Estado.

Com a consolidação da burguesia e com a adesão da Igreja Católica ao novo paradigma liberal, já não havia motivos para dar continuidade à concentração de poderes nas monarquias absolutistas. Então passou a florescer a filosofia iluminista propriamente dita, que, no aspecto político, se centrou no liberalismo e na efetiva limitação dos poderes estatais, e que, no aspecto jurídico, se configurou no constitucionalismo12.

Neste contexto, a teoria da tripartição dos poderes encontra justificação teórica em John Locke, ambientada em uma visão contratualista do poder do Estado, em seu livro Segundo Tratado sobre o Governo Civil13. Locke descreveu quatro poderes: legislativo, executivo, federativo e discricionário, que poderiam resumir-se em dois, já que o executivo e o federativo deveriam unir-se num só, e o discricionário também ligar-se ao executivo14. Locke não abordou o judiciário15.

Entretanto, foi Montesquieu, influenciado pelas ideias políticas inglesas, o grande nome associado à formulação de tal teoria, afirmando que:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares16.

Sobre a contribuição de Montesquieu nesta seara, pode-se dizer que:

Montesquieu, entretanto, foi aquele que, por primeiro, de forma translúcida, afirmou que a tais funções devem corresponder órgãos distintos e autônomos. Em outras palavras, para Montesquieu, à divisão funcional deve corresponder uma divisão orgânica. Os órgãos que dispõem de forma genérica e abstrata, que legislam, enfim, não podem segundo ele, ser os mesmos que executam, assim como nenhum destes pode ser encarregado de decidir as controvérsias. Há que existir um órgão (usualmente denominado poder) incumbido do desempenho de cada uma dessas funções, da mesma forma que entre eles não poderá ocorrer qualquer vínculo de subordinação. Um não deve receber ordens do outro, mas cingir-se ao exercício da função que lhe empresta o nome17.

Deste modo, a partir do século XVIII as Constituições e diversos diplomas legais de muitos Estados já começaram a consagrar a teoria da tripartição dos poderes. Pode-se citar a Constituição Federal dos Estados Unidos da América do Norte de 1.787, lembrando-se que tais postulados já haviam obtido previsão nas Constituições das ex-colônias inglesas da América18; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1.789, que chegou até a mencionar que “Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não possui Constituição” (artigo 16)19 e a Constituição de 1.791, ambas verificadas na França, alçando a teoria da divisão dos poderes ao patamar de dogma constitucional20.

Distribuindo-se as funções do Estado entre diversos órgãos, percebemos uma vinculação maior das autoridades à lei, dado que o órgão responsável pela sua aplicação não tem competência, via de regra, para sua elaboração, e, deste modo, não pode alterá-la ao seu alvedrio. Também só pode emitir comandos em consonância com a lei ou nos limites discricionários que a mesma permitir. Qualquer desvirtuamento nesse processo é coibido por um terceiro órgão, encarregado de verificá-lo e extirpá-lo. Pode-se dizer, portanto, que a divisão de poderes espelha uma “especialização funcional21”, no sentido de que as funções são exercidas por órgãos que, especificamente, desempenham cada uma das funções estatais como atividade principal22.

A garantia se reforça quando nem aos elaboradores da lei é dada a faculdade de mudar essa divisão de poder, o que se perfaz com a colocação da teoria da divisão dos poderes na Constituição:

De outro lado, essa separação não pode ser mudada pelo legislador, através de lei, pois, do contrário, bastar-lhe-ia exercer sua atividade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz. Também, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Estado se este pudesse suprimi-los através de lei. Em suma, deve haver uma norma superior à lei (e, em consequência, superior ao Estado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo direitos aos indivíduos. A essa norma chamamos Constituição23.

Pode-se inferir, dessarte, que além da ressaltada importância da adoção da teoria da tripartição de poderes, há de existir um documento capaz de sustentá-la de modo a não gerar interferências e desencadear abusos no exercício do poder. Tal documento é a Constituição de um país, que irá delinear a atuação dos órgãos exercentes das funções legislativas, executivas e judiciárias e coibir tentativas de supressão das prerrogativas de cada um desses órgãos. O Estado constituído por um pacto constitucional, calcado em elementos de democracia e igualdade, significa garantia da divisão dos poderes e, em última análise, garantia do próprio cidadão.

O Estado constitucional é “mais” do que Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para “travar” o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power)24.

Para atingir-se a igualdade entre os membros sociais, propugnada pela teoria da tripartição dos poderes tem-se, ainda, de se aventar para dois fatores. O primeiro refere-se ao próprio exercício dessas funções, que vão dar ensejo à manifestação das minorias, dentro do âmbito da função legislativa: “[...] o Poder Legislativo abraça representantes das minorias, o que lhes garante o direito de expressar os mais diversos ideários, quando não de objetar e impedir a aprovação de matérias contrárias aos seus interesses25”.

O segundo, à necessidade de harmonia e independência entre os órgãos realizadores das funções legislativa, judiciária e executiva; aquela se busca atingir com o respeito recíproco, entre os respectivos órgãos, no exercício das funções estatais, e esta, ante a liberdade na organização e no desempenho dos serviços afetos a cada órgão. Entrementes, para que tais premissas sejam garantidas, requerer-se até uma certa interferência de um órgão na função própria de outro, como se verifica com o veto presidencial no processo legislativo26. Paradoxal a princípio, tais perspectivas têm o condão de frear ou de controlar o exercício das atribuições de cada Poder, a fim de que qualquer tentativa de extrapolação nessas atribuições, tentando aniquilar ou reduzir o escopo de atuação dos outros Poderes seja coibida, buscando manter-se o equilíbrio social27.

2. Caracterização das funções legislativa, judiciária e executiva e desenvolvimento da teoria e prática dos poderes

Eis as palavras de Montesquieu sobre as funções desempenhadas pelo Estado:

Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil.

Com o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado28.

Aristóteles, por sua vez, também já nos legava traços destas funções:

O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado.

O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las.

O terceiro abrange os cargos de jurisdição29.

Identifica-se, partindo-se dos apontamentos de Aristóteles e Montesquieu e desenvolvendo-os com base em conceitos já apresentados pela doutrina30, que há três principais funções desempenhadas pelo Estado, quais sejam, legislativa, executiva e judiciária, e que, muitas vezes, encontramos as expressões poderes e funções como sinônimas, devendo-se entender que, ao ser utilizada esta última expressão, enfocam-se as diversas atribuições do poder, considerado, inicialmente, indivisível31.

A função legislativa origina normas gerais e abstratas, prevendo direitos e obrigações aos cidadãos e às pessoas físicas e jurídicas (estatais ou não) em geral32. A função judicial aplica os comandos normativos proferidos pelo órgão legislativo às diferentes situações fáticas que lhe são apresentadas, decidindo os conflitos de interpretação sobre o conteúdo e o alcance das leis e de submissão às mesmas33. A função executiva, por sua vez, espelha as ações no sentido de concretizar os objetivos estatais fixados na Constituição ou no programa de governo, bem como a prestação de serviços públicos à população34.

Com relação a esta última função, registre-se que alguns doutrinadores35 objetam que as medidas de cunho organizacional e direcional atinentes ao Governo seriam, na realidade, próprias de uma função sui generis do Estado, destacadas da função executiva. Considerando-a ou não na mesma categoria da função executiva, o fato é que tais ações ficam ainda mais evidentes na evolução da teoria clássica da tripartição dos poderes, como espelhado no tópico a seguir deste trabalho.

As funções do estado são bastante complexas, já que o mesmo deve atender às expectativas da sociedade, cujas demandas se irradiam sob as mais variadas perspectivas. Desta feita, é imperativo enfatizar a função de dirigir e implantar as ações que determinam o rumo do Estado, cujo exercício pressupõe decisões de cunho exclusivamente político, distintas, por natureza, das de cunho legislativo, judiciário e administrativo.

Da experiência constitucional dos mais diversos Estados, conforme deflui da doutrina estrangeira, é fácil verificar a existência de uma função que substancialmente não se enquadra nos lindes da legislativa, judicial ou administrativa36.

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É importante abordar, contudo, que as três funções contavam com algumas peculiaridades na ótica da obra clássica de Montesquieu que são diferentes da concepção hodierna. O autor preconizava, por exemplo, que o poder de julgar haveria de ser exercido pelo povo, e não por um corpo de agentes dos poderes constituídos, já que isso poderia levar à destruição de cada cidadão com a exacerbação das vontades particulares dos governantes37, devendo, ainda, ser transitório, situações que conflitam com a institucionalização e a permanência que se afirmou ao longo do desenvolvimento das sociedades:

O poder de julgar não deve ser dado a um senado permanente, mas deve ser exercido por pessoas tiradas do seio do povo em certos momentos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um tribunal que só dure o tempo que a necessidade requer.

Desta forma, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, como não está ligado nem a certo estado, nem a certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se têm continuamente juízes sob os olhos; e teme-se a magistratura, e não os magistrados.

[...]

Os dois outros poderes poderiam ser dados antes a magistrados ou a corpos permanentes, porque não são exercidos sobre nenhum particular; sendo um apenas a vontade geral do Estado, e o outro a execução desta vontade geral38.

Dessume-se, assim, que a função judicial padecia de importância face às demais na visão de Montesquieu. Sobre as funções executiva e legislativa, respectivamente, o autor aludia que

O poder executivo deve estar entre as mãos de um monarca, porque esta parte do governo, que precisa quase sempre de uma ação instantânea, é mais bem administrada por um do que por vários; ao passo que o que depende do poder legislativo é com frequência mais bem ordenado por muitos do que por um só. 39

[...]

O corpo representante tampouco deve ser escolhido para tomar alguma decisão ativa, coisa que não faria direito, mas para fazer leis, ou para ver se foram bem executadas aquelas que fez, coisa que pode muito bem fazer e, até mesmo, só ele pode fazer bem40.

Verifica-se que a função de legislar era tipicamente exercida pelo legislativo, característica que também sofreu transformações ao longo do tempo, já que o executivo também passou a desempenhar atividades normatizantes, como resultado da própria adaptação da teoria dos três poderes às mudanças jurídicas e sociais. Dentre estas, pode-se citar, primeiramente, que um dos alicerces da teoria da divisão dos poderes, o Estado de Direito com a vertente liberal, garantindo um mínimo de direitos aos cidadãos e propugnando pela livre atuação das forças sociais e econômicas em sociedade, o que lhe traria o equilíbrio, não mais atendia, com seus postulados, aos anseios de subsistência de sua população e de democracia e igualdade entre os extratos sociais. Exsurge, destarte, um modelo de Estado democrático e social, que, em termos gerais, assim delineou-se:

[...] a) criado e regulado por uma Constituição;

b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres;

c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros;

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes;

e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos e sociais, podem opô-los ao próprio Estado;

f) o Estado tem o dever de atuar positivamente para gerar desenvolvimento e justiça social.

Em termos sintéticos, o Estado Social e Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade, direitos (individuais, políticos e sociais), desenvolvimento e justiça social. 41

Prosseguindo-se, tem-se que a solidificação do sufrágio universal e da representatividade indireta podem abalar o intuito de segurança e igualdade da teoria da tripartição dos poderes, ao conjecturar-se que um mesmo partido pode vir a controlar o Executivo e ter maioria no Legislativo, reunindo-se, num só organismo, as decisões de dois órgãos. Tal fato pode verificar-se mormente se as eleições para o Executivo e o Legislativo ocorrem na mesma ocasião, já que tendem a espelhar a mesma consciência dos representados espelhada num dado momento social e político. Na mesma linha de raciocínio, vislumbra-se a ação integrativa entre Executivo e Legislativo perpetrada pelo sistema parlamentarista42.

Por outro lado, o exercício da função de julgar, diante da formação do Judiciário brasileiro, contando com julgadores indicados por representantes de outros órgãos para ocuparem alguns de seus principais cargos também pode ter sua natureza de imparcialidade descaracterizada.

Emergem, assim, novas formas de relacionamento entre os órgãos, pelo que se pode até falar, atualmente, em “colaboração de poderes”, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes43. Já Montesquieu, no “Espírito das Leis”, deixava transparecer apenas certo controle entre os poderes para espreitarem-se os abusos recíprocos44.

No novo modelo estatal, o Legislativo exerce a atividade legislativa e também controla atos e órgãos do Governo45; a lei não é mais somente aquele comando normativo estatal genérico proveniente do Legislativo, podendo ser emitida pelo Executivo; confere-se a criação de atos normativos a outros órgãos, como se vislumbra com a atividade de elaboração dos Regimentos Internos dos Tribunais por eles mesmos46; bem como se proporciona aos representantes sociais a negociação e o estabelecimento de regras diretamente, sem intervenção de um órgão público, como ocorre, no caso brasileiro, na negociação de acordos e convenções coletivas de trabalho47.

Explorando-se mais o tema da atividade legislativa do Executivo aduz-se que, hodiernamente, diante da gama de relações sociais que pautam as realidades dos mais diferentes pontos do território dos Estados, da complexidade das relações dos Estados entre si, e do progresso de tecnologias diversas, é praticamente impossível ao Legislativo, através de suas normas, regular toda e qualquer situação fática. E, mesmo quando tenta fazê-lo, apresenta respostas através de um processo legislativo, que é vagaroso pela amplitude dos debates naturalmente travados entre seus membros, devendo ser disponibilizada uma maneira mais célere de normatizar um maior número de situações.

Esta via pode concretizar-se, justamente, com o exercício da função legislativa pelo Poder Executivo, já que a normatização seria fruto da atuação de um órgão unipessoal e não colegiado (como ocorre no Legislativo).

[...] o Poder Legislativo não foi nem é estruturado para produzir respostas imediatas. Dada a necessidade de conferir segurança jurídica à própria sociedade, as leis precisam ser pensadas, refletidas, discutidas e revistas com parcimônia pelos mais variados setores representativos, o que exige largo lapso temporal. Em oposição, o Poder Executivo é quem reúne capacidade de oferecer posições com agilidade, mesmo porque os atos do Presidente da República não precisam ser debatidos com quem quer que seja48.

Tem-se, como exemplo de veículos de tal atuação do Executivo, as leis delegadas e as medidas provisórias49. Tal atribuição, porém, há de pautar-se por determinados limites pré-concebidos para impedir-se a usurpação do poder50.

O Poder Executivo, de maneira muito mais evidente nos dias atuais, em razão dos novos objetivos estatais, portanto, demonstra sua presença de forma marcante na atividade legislativa. Até mesmo no regime parlamentarista, verifica-se que o Governo influencia fortemente o Parlamento em razão da fidelidade da maioria parlamentar às diretrizes impostas pelo partido no Governo.

Pode-se começar a discorrer sobre tal questão a partir da iniciativa das leis. No Brasil, por exemplo, em todas as constituições o Executivo teve para si o direito de iniciativa legislativa. Há de se falar, também, das atribuições de sanção ou veto, que não são adotadas por todos os Estados, perdendo este último importância, mormente, nos regimes parlamentaristas, já que o órgão Legislativo tem a confiança do Presidente ou Rei. No Brasil, constituem tradição e, mesmo com a possibilidade da derrubada do veto prevista pela atual Constituição, em seu artigo 66, § 4°, ainda remanesce firme a influência do Executivo, já que se exige, para tanto, maioria qualificada51. O Chefe do Executivo, ainda, promulga e faz publicar as leis, como regra52 .

Outrossim, o Executivo elabora leis, através de uma das três principais maneiras, conforme se dessume a partir de várias fórmulas vislumbradas no direito comparado:

[...] a) A norma primária é elaborada pelo Executivo, por competência legislativa condicionada à prévia autorização formal do Legislativo. Temos uma competência legislativa delegada.

b) A norma primária é elaborada pelo Executivo, por competência regulamentar que lhe é atribuída de forma incondicionada nos limites fixados pela Constituição. Temos uma competência regulamentar autônoma.

c) A norma primária é elaborada pelo Executivo, por competência legislativa condicionada à verificação de determinados pressupostos de fato e sujeita à ratificação pelo Legislativo. Temos uma competência legislativa de urgência53.

O primeiro caso exprime a norma elaborada pelo Chefe do Executivo que, inicialmente, faz um pedido ao Legislativo, e, no caso de autorização deste, emite a norma, observados os parâmetros fixados naquela. Nos países cujo direito segue a tradição romano-germânica, as normas editadas deste modo são, em regra, normas primárias, ou seja, têm a mesma hierarquia da lei54. Como exemplo, pode-se citar, no Brasil, as leis delegadas, e, em Portugal, os “decretos-leis”, que podem ser emitidos em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta. Nos países cujo sistema jurídico é inspirado na Common law, tais normas assumem caráter de normas secundárias, subordinadas à lei.

O segundo, refere-se à emissão dos atos regulamentares autônomos. Na França, estabeleceu-se um sistema em que foram transcritas na Constituição vigente as matérias submetidas à lei, e se especificou, com clareza, que todas as matérias não submetidas à reserva da lei revestem caráter regulamentar, pelo que se infere que tais regulamentos autônomos são, por natureza, lei, já que não são emitidos com conteúdo condicionado ao da lei, mas tem um campo de atuação a eles totalmente reservado55. Neste passo, cumpre elucidarmos os seguintes conceitos, que já apareceram no parágrafo anterior ao presente:

Normas primárias são os atos equiparados à lei formal, como as medidas provisórias, enquanto as normas secundárias são atos hierarquicamente inferiores à lei formal, como os regulamentos subordinados – o adjetivo vai para distingui-los dos regulamentos autônomos, que, diferentemente, são normas primárias nos sistemas jurídicos que os admitem56.

As normas secundárias, diferentemente das normas primárias do direito francês, não se constituem em adequações atuais do princípio da tripartição dos poderes, já que são atos destinados à execução dos comandos superiores ditados pela lei. No direito brasileiro, os decretos regulamentares ou regulamentos, recebem o nome de decretos57 e ocupam, efetivamente, posição inferior às leis, em razão do princípio da legalidade que pauta toda a Administração Pública58, com exceção, apenas, da regra trazida pela Emenda Constitucional 32/2001, no sentido de que ao Presidente da República compete, privativamente, dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, e sobre a extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos59. No direito comparado, pode-se citar o exemplo português, que prevê a possibilidade de edição, pelo Executivo, de decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam60.

O terceiro modo de elaboração de leis pelo Executivo subdivide-se no exercício de atividade legislativa em situação de crise, como, por exemplo, nos casos de estado de defesa ou estado de sítio, e em situações de normalidade constitucional.

Chamamos de atribuição constitucional sem delegação àquele poder conferido, pelo Constituinte, ao Executivo para, diretamente, produzir ato normativo com ou sem força de lei. O poder Executivo, neste caso, pode exercer atividade normativa seja para atender a (i) situações ordinárias (embora graves), seja, ainda, para atender a situações (ii) que chamaremos de extraordinárias; situações de crise que expõem a risco o sistema constitucional61.

Sobre o exercício da atribuição constitucional de legislar em situações de normalidade, podem ser citadas diversas vertentes encontradas no direito comparado, tal como ocorre com os chamados “decretos-leis”, previstos no artigo 201 da Constituição Portuguesa de 1.976, que podem ser emitidos em matérias não reservadas à Assembleia da República e com relação à matéria respeitante à organização e funcionamento do Governo. No Brasil, podem ser citados, no passado, os decretos-leis, atos dotados do mesmo padrão hierárquico da lei votada pelo Legislativo, previstos nas Constituições de 1937, 1967 e na Emenda Constitucional de 1969, e, atualmente, as medidas provisórias. Sobre tal interferência do Executivo, em suma, é cabível colacionar as seguintes palavras:

O mundo contemporâneo, além da delegação legislativa, passou a exigir que o Executivo pudesse, em certas circunstâncias, legislar diretamente sobre determinadas matérias. Fortalecidas as formas de controle político e jurídico sobre essa atividade do Poder Executivo, resta evidente sua compatibilidade com a democracia. O que não se pode admitir, todavia, é o desmesurado fortalecimento do executivo sem a previsão de mecanismos de censura ou contraste de sua atividade62.

Desse modo, pensar-se numa divisão rígida de poderes não mais atenderia aos anseios sociais contemporâneos, já que aos governantes cumpre muito mais do que, simplesmente, realizar as três funções básicas estatais.

Hoje, ‘governar significa prover de maneira direta ou indireta quase todas as necessidades materiais e culturais, acumuladas por distintos grupos, com distintos interesses, num grau que sem dúvida faria dantes estalar todo o ordenamento liberal, caracterizado por ausências e omissões’ 63.

Porém, a par de toda a explanação sobre a nova ótica da teoria da tripartição dos poderes, cumpre aduzir-se às distorções práticas que esta teoria sofreu e ainda sofre no tocante ao escopo do exercício das três funções clássicas, que nem sempre se traduz, exatamente, no interesse público. Interesses outros estão a rodeá-lo e a influenciá-lo fortemente, destinando-se ao benefício de estratos sociais determinados, tais como os pertencentes às classes economicamente hegemônicas, às entidades representativas de categorias profissionais e econômicas, aos militares, às camadas sociais atuantes nas áreas técnicas e científicas, dentre outros64. A existência de tais “poderes clandestinos”65 faz com que principalmente as atividades executivas e legislativas não se realizem de modo completamente puro.

De todo modo, sempre estaremos examinando pressões sofridas pelos poderes legislativo e executivo, as quais acabaram resultando em inovações no campo da normatividade jurídica66.

Citem-se como exemplos a pressão sobre o Executivo exercida pelos Bancos e Instituições Financeiras que culminou com o Decreto-lei 911, de 01/10/1969, que tratou da alienação fiduciária67, e o receio da classe média com a criminalidade que se traduziu na inclusão do homicídio qualificado e o praticado em atividade típica de grupo de extermínio como crimes hediondos, através da Lei 8.930, de 06/09/199468.

Eis por que as origens das leis, que podem apresentar resultados mais ou menos acertados, são motivos de estranheza em nosso contexto. A impressão que fica é a de pouca (às vezes quase nenhuma) auscultação das urgências e necessidades da sociocultura e, por outro lado, ações pressionadoras de setores privilegiados da sociedade sobre decisões legislativas (ainda que na época dos decretos-leis)69.

Deste modo, é preciso ter-se ciência de que a tripartição dos poderes idealizada por Montesquieu e antecessores sofreu mutações não só com relação aos órgãos de desempenho das mesmas, mas, também, com relação às fontes a partir das quais se abeberam para impor-se socialmente, ainda que tais origens reflitam anseios de parcela da coletividade.

3. Evolução constitucional brasileira da teoria da tripartição dos poderes e da interferência do executivo na função de legislar

As Constituições brasileiras sempre buscaram adotar a teoria da tripartição dos poderes, bem como a atividade legislativa a ser desenvolvida pelo Executivo. José Afonso da Silva esclarece que “[...] O princípio da divisão e harmonia dos poderes políticos foi adotado como “princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece70. A Constituição de 1824 previu a forma de governo monárquica, e quatro poderes71, sendo que ao imperador, executor das atribuições dos Poderes Moderador e Executivo, não era emprestada a função de legislar.

A Constituição de 1891 instituiu a república como forma de governo e não mais aludia ao Poder Moderador, mas, apenas, aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário72, não sendo atribuição do Executivo legislar, assim como ocorria na vigência da Constituição de 1934 que, contudo, aduzia serem os três Poderes independentes e coordenados entre si, cabendo a execução de tal coordenação ao Senado73.

A Constituição 1937 fortalecia o Poder Executivo, em detrimento do Legislativo no que concerne à sua função legislativa74, mas não chegou a ser, propriamente, aplicada, em razão do estabelecimento do regime militar ditatorial, não tendo sido instalado o Legislativo.

[...] não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo75.

Previu a figura do decreto-lei, como forma do Presidente da República legislar, mas em linhas diversas dos decretos-leis previstos nas Constituições que lhe sucederam, como será comentado posteriormente neste subitem.

A Constituição de 1946 inspirou-se, para sua formação, nas Constituições de 1891 e 193476, tendo previsto, portanto, a tripartição dos poderes, independentes e harmônicos entre si, e não fazendo menção à faculdade do Executivo legislar77. Adentrando nos fatos da história brasileira, vale lembrar-se que, após a renúncia do então presidente Jânio Quadros, vota-se uma emenda constitucional parlamentarista (EC n. 4, de 2/9/61, denominada Ato Adicional)78, que foi sucedida por um plebiscito que propugnou pela volta ao presidencialismo, pelo que o Congresso aprova a EC n. 6, de 23/1/63, revogando o Ato Adicional. Em 1º de abril de 1964, o Presidente João Goulart é deposto, instituindo-se o regime militar, que edita vários Atos Institucionais. Dentre estes, pode-se citar o AI 4, regulando o procedimento a ser obedecido pelo Congresso Nacional, para votar uma nova Constituição, cujo projeto o governo apresentou, o originando a sexta Constituição brasileira.

A 24.1.67, fora ela promulgada, o que veio resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso Nacional com base em seu art. 217, e o impacto de quatro atos institucionais e trinta e sete atos complementares, que tornaram incompulsável o Direito Constitucional positivo então vigente79.

Tal Carta conferiu maiores poderes à União e ao Presidente da República80, tendo mantido a tripartição do poder81 e trazendo as figuras da lei delegada e do decreto-lei como atividade legislativa do Executivo.

Contudo, em 13/12/68 foi editado o AI n. 5, seguido por diversos atos complementares e decretos-leis, e, em 17/10/69 foi promulgada e EC n. 1 à Constituição de 67, entrando em vigor em 30/10/69.

Teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil82.

A norma em tela continuou prevendo a existência dos três Poderes, independentes e harmônicos entre si83, e a possibilidade do Presidente da República legislar através de leis delegadas e decretos-leis.

Posteriormente, tem-se a Emenda Constitucional n. 26, promulgada em 27/11/85, convocando os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para se reunirem, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1/2/87, na sede do Congresso Nacional. Emergiu, a partir dos trabalhos desta Constituinte, o texto da atual Constituição, promulgada em 05/10/88. Nesta, como já se aludiu neste trabalho, houve a previsão dos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) independentes e harmônicos entre si, no artigo 2º do texto constitucional. Como instrumentos legislativos a serem editados pelo Executivo foram previstas as leis delegadas e introduzidas as medidas provisórias.

Adentrando-se nas peculiaridades dos instrumentos que o executivo vem utilizando para legislar, aborda-se, primeiramente, as leis delegadas, que despontaram, formalmente, no texto da Constituição de 1937, mas com o nome decretos-leis, como se infere a partir da leitura de seu artigo 12: “O Presidente da República pode ser autorizado pelo Parlamento a expedir decretos-leis, mediante as condições e nos limites fixados pelo ato de autorização”. Foram proibidas expressamente pela Constituição de 1946, que vedava, a qualquer dos Poderes, delegarem atribuições, tendo retornado com a Emenda Constitucional no. 4, de 1961 (Ato Adicional), ocasião em que foram emitidas onze leis delegadas84. A Constituição de 1967 previu que as mesmas seriam elaboradas pelo Presidente da República, por Comissão do Congresso Nacional, ou de qualquer de suas Casas85. Foram mantidas na Emenda Constitucional n. 1, de 1969, com alterações somente no que tange às matérias às quais se vedou a sua emissão86.

No cenário da Constituição vigente, pode-se dizer que as leis delegadas constituem-se em atos normativos elaborados e editados pelo Presidente da República, em razão de autorização do Poder Legislativo. A delegação pode ser típica ou própria, ou atípica ou imprópria – neste último caso, exige-se ratificação do projeto de lei delegada por parte do Poder Legislativo, mesmo considerando-se que a delegação já fora autorizada em Resolução expedida pelo Congresso Nacional (artigo 68, § 3º). Nem todos os assuntos de competência legislativa da União podem ser objeto de leis delegadas, sendo vedadas as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, e a legislação sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos87.

Desde a promulgação do atual texto constitucional, foram emitidas apenas duas leis delegadas, podendo-se dizer, desta forma, que não houve abuso no exercício da função de legislar, neste particular, por parte dos Chefes do Executivo88.

Já os decretos-leis emergiram, inicialmente, na Constituição de 1937, que, contudo, utilizava tal expressão para designar espécies diferentes de atos legislativos: a) instrumentos a serem emitidos pelo Presidente da República, quando autorizado pelo Parlamento e nos exatos limites fixados por este (art. 12); b) instrumentos expedidos nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, com exceção de algumas matérias (art. 13); c) instrumentos de livre expedição no que tange à organização do Governo e da Administração Federal, o comando supremo e a organização das Forças Armadas (art. 14); d) instrumentos expedidos sobre todas as matérias da competência legislativa da União, somente enquanto o Parlamento Nacional não se reunisse (art. 180)89. Contudo, pode asseverar-se que

O texto constitucional só foi aplicado na medida em que ia ao encontro dos interesses do Governo. Assim, das modalidades de decretos-lei citadas, apenas a prevista no art. 180 teve utilização, aliás intensa: foram editados cerca de 9.908 decretos-leis, dentre eles textos de importância como o Código Penal, o Código de Processo Penal e quase toda a legislação trabalhista posteriormente reunida na Consolidação das Leis do Trabalho90.

Outra roupagem, diversa da constante da Constituição de 1937 e em Atos Institucionais editados após 196491, fora emprestada aos decretos-leis na Constituição de 1.967:

O decreto-lei da Carta Constitucional de 1937 e o instrumento identicamente designado pelos atos institucionais II e IV, posteriores a 64, nada, absolutamente nada, têm a ver com o decreto-lei de que cuida o texto constitucional vigente, no seu art. 58.

[...]

O decreto-lei do regime da Carta de 37 foi sucedâneo universal e completo da lei. O que dele se disse é inaproveitável para o estudo do instrumento a que se refere o sistema vigente.

Por sua vez, o decreto-lei previsto nos atos institucionais tinha tratamento mais amplo e essencialmente diferente do atual, além de filiar-se a um sistema informado por princípios diversos dos consagrados pelo texto da Carta Constitucional de 196792.

Com efeito, o artigo 58 da Constituição de 1967 dispunha que, em caso de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resultasse em aumento de despesa, poderia o Presidente da República expedir decretos com força de lei sobre segurança nacional e finanças públicas. O decreto-lei tinha vigência imediata; contudo, deveria ser submetido à aprovação do Congresso Nacional, num prazo de sessenta dias, sem direito à modificação do seu texto. Na ausência de deliberação do Congresso Nacional em tal interregno, o texto era considerado tacitamente aprovado. No lapso de aplicação deste diploma constitucional, foram emitidos trinta e dois decretos-leis93.

A Emenda Constitucional n.1, de 1969, operou algumas mudanças na disciplina aduzida, tendo acrescentado as possibilidades de edição de decretos-leis sobre normas tributárias, criação de cargos públicos e fixação de vencimentos, bem como tendo dito que a rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência.

Na seara dos decretos-leis, já não se pode falar que houve comedimento na sua expedição pelo Presidente da República, já que diversos decretos-leis foram emitidos pelos Chefes do Executivo nos períodos em que tais diplomas legais tiveram previsão constitucional. Tal quadro acentuou-se, em muito, em razão das posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal no que concerne à verificação da existência dos pressupostos de edição, quais sejam, urgência ou interesse público relevante, que deveriam ficar, segundo o Pretório Excelso, tão-somente a cargo de avaliação discricionária do Presidente da República94, e à observância dos limites materiais à edição dos decretos-leis que, apesar de previstos constitucionalmente, suscitaram dúvidas quanto à sua extensão. Sobre esta última circunstância, tem-se, como exemplo, a interpretação ampla que foi dada ao termo “segurança nacional”.

Atualmente, a Constituição prevê as leis delegadas, como já salientado, e as medidas provisórias como formas do Executivo legislar, tendo sido extinta a figura do decreto-lei.

Quanto às medidas provisórias, alumia-se que desde a sua instituição na Constituição Federal de 1988 houve grandes abusos por parte dos Chefes do Executivo. Entre 05/10/88 a 10/09/2001, portanto, antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional 32, de 11 de setembro de 2001, que alterou a sistemática das medidas provisórias, foram editadas 619 medidas provisórias e reeditadas 5.491, por quatro Presidentes da República diferentes95. Ressalte-se que ao Chefe do Executivo é possível, antes de adotar uma medida provisória, solicitar urgência na análise dos projetos de lei de sua iniciativa96, o que poderia traduzir-se numa alternativa precedente à utilização das medidas provisórias.

Quanto à algumas de suas principais características, aduz-se que são atos normativos primários97 emitidos pelo Chefe do Poder Executivo98, mediante a verificação dos pressupostos de urgência e relevância, com força de lei, devendo ser submetidos ao Legislativo. Com efeito, eis o disposto no caput do artigo 62 da Constituição Federal: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”99.

Dentre as novidades trazidas pela Emenda Constitucional 32/2001 e introduzidas no art. 62 da Constituição Federal, destacam-se a instauração do regime de urgência constitucional para a apreciação das medidas provisórias (§ 6°); a prorrogação, por uma só vez, do prazo de vigência inicial das medidas provisórias (§ 7°); a vedação de reedições numa mesma sessão legislativa de medida provisória rejeitada ou cuja eficácia tenha se exaurido por decurso do prazo (§ 10); o regramento para o caso de morosidade por parte do Legislativo na emissão de decretos legislativos (§ 11) e as vedações materiais à edição de medida provisórias (§ 1°100).

Pode-se dizer, portanto, à luz do que foi aqui exarado, que o conceito de lei para várias das Constituições brasileiras, inclusive a atual, já não corresponde mais somente à lei emanada do Legislativo.

Seguindo a tendência universal, não adota, a Constituição Brasileira, um conceito material de lei. Terão força e forma de lei, para o Constituinte brasileiro, todos os atos elencados no art. 59 da Lei Fundamental.

(...)

No Brasil, lei no sentido restrito é todo ato em forma de lei votado pelo Parlamento (leis ordinárias, leis complementares, resoluções e decretos legislativos), nas três esferas da Federação. Lei no sentido restritíssimo é toda ato em forma de lei ordinária ou de lei complementar votado pelo Parlamento nas três esferas da Federação. E, finalmente, a partir sempre do critério formal, lei no sentido amplo, é todo ato com força de lei proveniente do Executivo (leis delegadas ou medidas provisórias) ou do Legislativo (leis ordinárias, leis complementares, decretos legislativos e resoluções)101.

Sobre a autora
Cristiane Leonel Moreira da Silva

Auditora-Fiscal do Trabalho. Mestre em Direito Processual Civil e Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/Campinas. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica de Santos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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