Disciplinado nos artigos 534 até o 537, o contrato estimatório (também conhecido como venda em consignação) se caracteriza pelo fato de o proprietário (consignante) entregar bens móveis a outro (consignatário), ficando este segundo autorizado a vende-los e obrigando-se a pagar um preço ajustado ou, se preferir, restituir a coisa consignada dentro do prazo convencionado.
O instituto é tratado como obrigação alternativa, pois a autorização para venda não se mostra obrigatória, vez que o consignatário pode optar por adquirir a coisa para ou simplesmente restituí-la (GONÇALVES, 2021, P. 87).
Caso não seja fixado o prazo para ajuste de contas, prevalecerá a regra geral do direito obrigacional, o consignante deverá notificar o consignatário para que em prazo razoável e de acordo com as circunstâncias do caso, escolha entre pagar o preço ou restituir os bens móveis consignados.
O Enunciado nº 32 da I Jornada de Direito Civil do CJF aduz que:
“No contrato estimatório (art. 534), o consignante transfere ao consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada com opção de pagamento do preço de estima ou sua restituição ao final do prazo ajustado”.
Trata-se de contrato real, se formando com a efetiva entrega da coisa com preço estimado ao consignatário. Ainda que permaneça o consignante como proprietário, a posse imediata é transferida e essa transferência é da essência do contrato real, divergindo do contrato consensual.
O contrato estimatório apresenta exceção ao princípio consagrado no Direito Civil, qual seja, “res perit domino” (a coisa perece para o dono), no qual antes da tradição, a coisa certa se mantém na propriedade do vendedor e, na qualidade de dono, ele é quem suporta a perda. Assim, se a coisa se perde sem culpa do devedor, a obrigação se extingue e as partes voltam ao estado anterior - statu quo ante (SCHEREIBER, 2021, p. 167).
Portanto, por sua peculiaridade, o contrato estimatório não se caracteriza como “res perit domino” (até o consignatário pagar o preço), mas vale-se do “res perit emptoris” (a coisa perece para o comprador), mesmo não sendo o consignatário o comprador final. Sendo assim o consignatário é possuidor direto e o consignante possuidor indireto. Destarte que o consignatário assume o risco da perda ou deterioração da coisa, não se eximindo da obrigação de pagar o preço, ainda que a restituição se impossibilite sem culpa sua, conforme artigo 535 do Código Civil.
Destaca-se no seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul o rigor técnico do artigo em comento:
[...] como bem salientou o Desembargador Paulo Roberto Lessa Franz aqui se trata de contrato estimatório. A parte deixou o veículo para venda, em consignação na loja. Nesse caso, a regra específica do negócio jurídico afirma a responsabilidade do consignatário, mesmo pelo fato de terceiro.
Logo, em faze da regra do art. 535 do CC a responsabilidade do demandado deve ser chancelada e afastada a alegação de caso fortuito ou fato de terceiro.
Eis a determinação legal: Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável.
A responsabilidade está presente apesar do crime de roubo.
Essa é a solução legal, de maneira expressa, a qual tem sido acolhida na doutrina e em alguns precedentes dos tribunais. (TJ-RS - AC: 70076562420 RS, Relator: Marcelo Cezar Muller, Data de Julgamento: 24/05/2018, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 29/05/2018)
Mesmo destaque merece julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Assim, se o consignatário não obteve êxito na venda, era seu dever legal e contratual restituir a coisa consignada no mesmo estado em que a recebeu, mormente porque objetiva sua responsabilidade nesse aspecto, conforme se extrai do art. 535 do CC, a saber: “Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável”.
[...] Daí porque, comprovado pela vistoria inicial que a consignatária recebeu o veículo do consignante em bom estado (fls. 15/16), mas o restituiu com o seu “envelopamento” danificado (fls. 17/18), responde pelos danos materiais ocorridos com o bem recebido durante sua posse. (TJ-SP - AC: 10416353520188260576 SP 1041635-35.2018.8.26.0576, Relator: Adilson de Araujo, Data de Julgamento: 10/12/2019, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/12/2019)
Elucida Nelson Rosenvald (2013, pág. 574) que:
“[...] com a transmissão da posse direta, o consignatário assume o risco pela destruição ou perda dos objetos consignados. Em outras palavras, mesmo não sendo proprietário, pelo fato de receber a guarda da coisa para o exercício de uma atividade de seu estrito interesse, assumirá a responsabilidade objetiva da coisa perante o consignante, na modalidade do risco agravado (integral), eis que não será exonerado nem mesmo pelo fortuito. Enfim, trata-se de norma cogente, eis que as partes não podem lhe dar configuração diversa”.
A dicção do artigo 536 do Código Civil estabelece que “a coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou sequestro pelos credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço”. Reforçando a ideia de que enquanto o consignatário não exercer a opção de pagar o preço convencionado, esta se encontra em propriedade do consignante.
Marco Aurélio Bezerra de Melo destaca que, caso o bem seja objeto constrição por dívida do consignatário, poderá o consignante opor embargos de terceiro, para que se retire da constrição judicial o que lhe pertence. Mesmo direito se configura se for arrolado no inventário do consignatário bem que fora objeto de contrato estimatório.
Enquanto perdurar o contrato, o consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição (art. 537, CC). Em suma, durante a fluência do lapso temporal do contrato, o consignante não poderá perturbar a posse direta do consignatário, sob pena de sujeitar-se aos interditos proibitórios.
Somente ficará autorizado legal e contratualmente a tanto após regular comunicação do consignatário, manifestando-se pela restituição da coisa ou efetivamente no momento da restituição. Caso ocorra alienação diversa reputar-se-á ineficaz perante o consignatário, respondendo o consignante perante terceiro pelos prejuízos experimentados.
Resolvido o contrato e, caso o consignatário não pague o preço, deverá restituir a coisa. Ocorrendo retardo indevido da restituição, haverá esbulho, haja vista o fim do contrato e a quebra da boa-fé.
Na prática, situação peculiar se torna recorrente. Por vezes o bem móvel fica na posse do consignatário que, celebra contrato de compra e venda com terceiro de boa-fé, mas não cumpre sua obrigação junto ao consignante, qual seja, pagar o preço.
A jurisprudência entende que, nestes casos, não pode o terceiro de boa-fé ser privado do bem nem responder de qualquer forma por este fato, pois extrínseco à sua vontade. Sendo certo que o negócio eventualmente celebrado entre o consignatário e o terceiro adquirente de boa-fé não está condicionado ao adimplemento da obrigação assumida por aquele perante o consignante, de modo que não se excogita invalidade ou ineficácia da alienação em razão do inadimplemento do consignatário.
Ante o exposto, confira- se os seguintes julgados:
APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM REINTEGRAÇAO DE POSSE. CONTRATO ESTIMATÓRIO. INADIMPLÊNCIA DA CONSIGNATÁRIA QUE NÃO MACULA A VENDA DO VEÍCULO A TERCEIRO DE BOA-FÉ. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. Extrai-se dos autos que a autora firmou contrato estimatório com a empresa especializada em comércio de veículos, regulado pelos arts. 534 e seguintes do CC, pelo qual entregou o bem que lhe pertencia para comercialização, na expectativa de venda ou de recebimento oportuno do valor ajustado com a consignatária. O réu adquiriu de boa-fé o veículo negociado pela empresa consignatária e pagou integralmente o preço, operando-se a compra e venda de forma válida e eficaz, de modo que a inadimplência da consignatária com a apelante repercute apenas no contrato estimatório, sem macular o contrato de compra e venda celebrado como apelado. Bem por isso, não há se falar na "busca e apreensão" do bem ou condenação do réu a pagar novamente o preço, pois não tem qualquer responsabilidade pela conduta da consignatária contratada pela apelante que não lhe repassou o produto da venda. Daí o acerto da r. sentença em julgar improcedentes os pedidos formulados pela autora e acolher o pleito reconvencional para determinar a transferência da titularidade do veículo ao reconvinte. (TJ-SP 10090690820168260510 SP 1009069-08.2016.8.26.0510, Relator: Adilson de Araujo, Data de Julgamento: 16/07/2018, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/07/2018)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL E INDENIZAÇÃO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONSIGNAÇÃO DE VEÍCULO. CONTRATO ESTIMATÓRIO. NULIDADE CONTRATUAL. NÃO OCORRÊNCIA. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. 1. Se o veículo foi deixado em loja para ser vendido em consignação, havendo com ela firmado negócio jurídico, o consignante não pode, diante da concretização da alienação a terceiro, que adquiriu de boa-fé o veículo, pleitear restituição do status quo ante em razão de inadimplemento somente da loja consignatária. 2. O inadimplemento de obrigação contratual, em regra, não é suficiente para caracterizar o dano moral, tendo em vista que é caso de dissabor/aborrecimento inerente a este tipo de situação. 3. Apelações conhecidas e não providas. (TJ-DF 07019913420198070001 DF 0701991-34.2019.8.07.0001, Relator: ANA CANTARINO, Data de Julgamento: 06/05/2020, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 19/05/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Referências:
BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 23/04/2023.
Código Civil Comentado, Coordenador: Ministro CEZAR PELUSO, Editora Manole, 2013, 7ª ed., Barueri.
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. I Jornada de Direito Civil– Brasília: CJF. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/681. Acesso em: 23/04/2023.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil: contratos em espécie – direito das coisas -v2/ coord. Pedro Lenza. – 9. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
SCHEREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência– 3.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.