A patrimonialização dos terreiros de religiões afro-brasileiras

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As religiões de matriz afro-brasileira têm sido alvo do racismo estrutural ao longo do processo histórico brasileiro. As expressões religiosas, assim como outras manifestações culturais das populações negras e dos povos originários, foram rechaçadas por meio de estruturas normativas proibitivas ou ideologias deslegitimadoras.

A miscigenação dos povos africanos, a luta pelo direito de (r)existir em meio à opressão eurocêntrica e o contato com a cultura indígena, proporcionou, no Brasil, o surgimento de expressões de religiosidade de diversos matizes. O candomblé se destaca entre as religiões afro-brasileiras, sua gênese está em povos distintos, tais como iorubás, bantos e jeje, que cultuam um panteão de entidades, respectivamente, orixás, inquices e voduns.

Os terreiros, nome genérico dado aos espaços de culto dessas tradições, expressam a luta contra o colonizador, integram o legado nacional e africano para a identidade brasileira. Estão por todo o Brasil, com suas peculiaridades locais e entre essa diversidade de expressões é possível citar o tambor-de-mina no Maranhão, o xangô em Pernambuco, e os candomblés e umbandas que, ainda usando esse mesmo nome, organizam-se com suas particularidades em vários estados.

Assim, os terreiros constituem um universo envolto de tradições, danças, cantos, poesias, mitos e rituais. Toda essa representatividade, com seus simbolismos, fazeres e saberes, sagrados, festas e celebrações constituem um patrimônio cultural, com dimensões materiais e imateriais, que podem e devem ser protegidas e fomentadas.

A Constituição Federal de 1988 ampliou o entendimento de patrimônio cultural, saindo do espectro apenas material, que trazia a dicotomia de bens móveis e imóveis. A figura do Tombamento, instrumento de proteção do patrimônio material, deixou de ser única, passando a coexistir com outros instrumentos como os registros, inventários, entre outras formas de proteção e acautelamento possíveis de serem desenvolvidas.

O Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, localizado em Salvador-BA, foi o primeiro terreiro tombado pelo Iphan, inscrito nos livros do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1984. Em seguida, vieram outros, entre eles, Axé Opô Afonjá; Ilê Iyá Omim; Gantois; Alaketu; Bate-Folha; Ilê Axé Oxumaré; Casa das Minas Jeje, em São Luiz do Maranhão, entre outros.

O tombamento é o instrumento de proteção mais antigo, passa de oitenta anos. O Decreto-Lei nº 25/37, estrutura normativa que o regulamenta, foi recepcionado pela constituição democrática de 1988, em seu artigo 216, que prevê a participação cidadã em sua aplicação. Esse instrumento jurídico também pode ser usado em nível estadual e municipal, se previsto em lei. É preciso ressaltar que a figura do tombamento não é o único instrumento para a proteção do patrimônio cultural, nem o mais adequado quando se pensa nos bens imateriais.

O tombamento implica em restrições administrativas sobre o direito de propriedade e se assenta na conservação do bem, proibindo expressamente qualquer intervenção que vise demolir, destruir ou modificar o bem. Além disso, qualquer obra para manutenção com fins de conservar as características originais, exige aprovação do órgão que realizou o tombamento.

No caso dos Terreiros, Roças e Ilès Axés de um modo geral, essas exigências podem ser delicadas, uma vez que a natureza dessas manifestações implica em alterações em seu espaço físico. São casas que abrigam famílias e que, por isso, muitas vezes precisam passar por adaptações de suas estruturas.

Outro instrumento possível de aplicação é o registro para salvaguardar o patrimônio imaterial, previsto no Decreto nº 3.551 de 2000. A aplicação desse instrumento aos terreiros teria o objetivo de proteger a prática existente nesses lugares. Ambos os instrumentos, tombamento e registro, parecem ser adequados, basta observar os casos específicos, sem pensar em uma ação padrão. É preciso uma investigação, em diálogo com a comunidade, para verificar qual o instrumento se adequa melhor, ou se é possível e adequado o uso de ambos.

Também não se pode esquecer dos inventários, com igual previsão constitucional. Podendo ser aplicados de forma complementar ou como instrumento de proteção em si. Entre os anos de 2013 e 2015, o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana estabeleceu, entre suas metas, o acompanhamento de processos de tombamento dos terreiros existentes no Brasil, associado à produção do Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC.

Além disso, é possível pensar em outras formas de acautelamento conforme prevê o texto constitucional, no artigo 216. Também é possível pensar na criação de instrumentos mais adequados à realidade local, como previsto no texto constitucional sobre as competências dos Estados e Municípios. Aliado aos instrumentos citados, é fundamental a implementação de uma educação patrimonial, antirracista e antielitista em instituições educacionais formais, ou não, para a formação cidadã que garanta a participação efetiva dos povos minoritários nos processos decisórios para a manutenção e preservação dos bens culturais.

Referências:

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 07 abr. 2023.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Terreiros Tombados. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1312/. Acesso em: 16 07 abr. 2023.

Museu Afro Brasil. Roteiro de visita ao acervo. São Paulo: 2007, p. 18-20. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/religioes-afro-brasileiras Acesso em: 02. abr. 2023.

SANT’ANNA, Márcia. Escravidão no Brasil: os terreiros de candomblé e a resistência cultural dos povos negros. IPHAN.

WATANABE, Elisabete Mitiko; CRUZ, Heloisa de Faria. O reconhecimento do patrimônio cultural de matriz africana – tombamento e registro de territórios tradicionais em São Paulo. USJT. Arq.Urb. número 26 | setembro - dezembro de 2019.

Sobre os autores
José Olímpio Ferreira

Advogado, professor, mestre em Ensino e Formação Docente, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza, Capoeirista, Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), membro da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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