Recurso extraordinário per saltum: Até onde se quer chegar com os negócios processuais?

29/04/2023 às 01:25

Resumo:


  • O Código de Processo Civil de 2015 introduziu uma cláusula geral de negociação processual, permitindo que as partes ajustem o procedimento e os ônus do processo.

  • A discussão sobre acordos de ultrapassagem de instância, como o recurso extraordinário per saltum, tem sido retomada pela doutrina, mas enfrenta obstáculos para sua viabilidade.

  • A possibilidade de recurso extraordinário per saltum é questionada devido à necessidade de respeitar requisitos de admissibilidade e à importância de não sobrecarregar o Supremo Tribunal Federal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O advento do Código de Processo Civil de 2015 trouxe a proscênio a mais diversa sorte de assuntos que, sob a égide do diploma anterior, não recebiam tanta atenção. A título exemplificativo, afigura-se viável colacionar o artigo 190, cuja intelecção é a seguinte:

Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

O dispositivo em comento consagrou uma legítima cláusula geral de negociação processual, estampando o que se convencionou chamar de “princípio do respeito ao autorregramento da vontade”, e, por via reflexa, um subprincípio de atipicidade dos negócios processuais (DIDIER, 2019, p. 119). Bem vistas as coisas, é de clareza meridiana a tentativa do legislador de prestigiar a autonomia da vontade no bojo do processo, consolidando um modelo cooperativo (CUNHA, 2019, p. 65).

A doutrina, animada pelo fôlego que o tema recebeu com o Código, retomou a produção sobre negócios processuais em espécie. Dentre eles, cumpre destacar a discussão que gravita em torno dos acordos de ultrapassagem de instância- competência recursal per saltum-, por intermédio do qual seria permitido que “as partes convencionassem suprimir uma instância na cadeia recursal” (CABRAL, 2017, p. 58). Ainda mais especificamente, debate-se acerca do recurso extraordinário per saltum1. Antes de adentrar no mérito, peço licença para fazer uma breve revisita à Teoria dos Recursos, comentando, ainda que en passant, a que se presta o recurso extraordinário.

Previsto no inciso III do artigo 102 da Constituição da República, o recurso extraordinário, direcionado ao Supremo Tribunal Federal, busca tutelar o respeito ao texto constitucional. Em razão disso, prevê o indigitado artigo o seu cabimento quando a decisão vergastada, decidida em última ou única instância, “contrariar dispositivo desta Constituição”, “declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”, “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição”, ou, ainda, “julgar válida lei local contestada em face de lei federal”.

Trata-se, pois, de espécie do gênero “recurso extraordinário”, na medida em que tem como “objeto imediato a proteção e a preservação da boa aplicação do Direito” (NEVES, 2019, p. 1557). À vista disso, e diante da existência de filtros recursais, sua interposição não deve ser encarada como direito subjetivo da parte (MITIDIERO, 2022, p. 54).

Como ora mencionado, o recurso extraordinário uma miríade de requisitos de admissibilidade. Num esforço de síntese, para além daqueles comuns aos denominados recursos ordinários, vislumbra-se a necessidade de demonstração de repercussão geral, de esgotamento das instâncias ordinárias e de prequestionamento.

Superadas estas questões preliminares, é chegada a hora, enfim, de discutir a possibilidade de recurso extraordinário per saltum. O primeiro argumento que se arvora em seu favor é uma interpretação literal da redação constitucional: o alhures citado artigo 105, III, apenas faz menção a causas decididas em única ou última instância, sem se referir, em específico, a tribunais. O segundo é o de que a convenção processual não transfere custos ao Judiciário. O terceiro é o de que não há uma “clara intenção de reduzir o acesso ao STF pelo recurso extraordinário” (CABRAL, 2017, p. 61).

Com o devido respeito ao coro dos que sustentam entendimento contrário, o recurso extraordinário per saltum negocial não me parece ser cabível. Os negócios jurídicos processuais se deparam com obstáculos, não sendo irrestrita a margem para sua celebração, em que pese o amplo espaço que podem ocupar. Tanto é assim que o parágrafo único do artigo 190 pontifica seu controle judicial de validade2.

Ora, em que pese o silêncio constitucional em relação aos tribunais, fazer uma interpretação literal revela-se demasiadamente deficiente. Parafraseando Bobbio, é preciso olhar não para a árvore, mas para a floresta. Trocando em miúdos, uma interpretação sistemática é medida que se impõe. Lembro, aqui, da metáfora da pupila:

A expressão filtros, utilizada quando se aborda o tema da admissibilidade de recurso de natureza extraordinária- Recursos Especial, Especial Eleitoral, de Revista, Extraordinário-, retoma, em larga medida, a metáfora da pupila: a partir das constantes notícias de que há quantia elevada de processos endereçada às Cortes Superiores, os numerosos feitos são comparados a um feixe de luz muito intenso e brilhante, que é capaz de ofuscar a visão, talvez até mesmo de danificá-la (a ideia de desvirtuamento da função institucional, acima referenciada), razão pela qual o estreitamento do acesso à luz é reputado uma proteção, ou blindagem preventiva (MUNDIM, 2019, p. 81).

A imposição de diversos requisitos de admissibilidade específicos não parece não pretender reduzir o acesso ao STF, como argumentado pela outra corrente. Se assim fosse, v.g., não haveria a necessidade de demonstração da repercussão geral. Afinal, e conforme dito anteriormente, os recursos de natureza extraordinária não correspondem, em uma acepção estrita, a direitos subjetivos das partes, mas a mecanismos de tutela do direito objetivo. Essa lente harmoniza-se, inclusive, com a função de Corte de Vértice assumida pelo STF, incumbido da guarda da Constituição.

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De mais a mais, a decisão vergastada deve ser de “única ou instância”. Não quer me parecer acertada a conclusão de que “a decisão de primeiro grau passa a ser de última instância, o que permitiria o cabimento de recurso extraordinário para reforma ou invalidação desta decisão” (OLIVEIRA, 2014, p. 507). Trata-se, a meu ver, de malabarismo argumentativo para sustentar o cabimento de acordo de ultrapassagem de instância. O recurso per saltum desborda de matérias exclusivamente afetas aos interesses das partes, atingindo a própria organização judiciária, e, portanto, alcançando o interesse da coletividade- daí porque se representa um limite à negociação processual. Nem se diga que não há transferências de custos para o Judiciário: cobre-se um santo, mas despindo o outro. “Desafoga-se” o Tribunal de segunda instância, mas acaba se abarrotar o STF3, em nítido descompasso com sua função de Corte de Vértice. Isso porque o órgão, na racionalidade instaurada pelo Código de Processo Civil de 2015, é encarregado de realizar o juízo de admissibilidade, consoante fazem prova os artigos 1.010, §3° e 1.028, §3°.

Neste diapasão, ainda no que diz com a necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias, aduzem Didier e Cunha (2016, p. 313): “Enquanto houver recurso na instância de origem, ainda não houve decisão de única ou última instância. É necessário, como se percebe, o prévio esgotamento das instâncias ordinárias para que se possa intentar os recursos extraordinário e especial”. Amoldando-se a esta perspectiva, calha salientar o verbete sumular n° 281 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber, na Justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”.

Como preencher, ademais, o requisito do prequestionamento, com um recurso que não passa pelos tribunais locais? “Antes de levá-la [a questão constitucional] ao conhecimento dos tribunais superiores cabe ao recorrente provocar o exame da questão pelo tribunal local” (ALMEIDA, 2020, p. 309).

Em face do que foi exposto, não se mostra razoável, em meu sentir, permitir a celebração de acordo de ultrapassagem de instância, viabilizando um recurso extraordinário per saltum. Quando se trata de negócios processuais, força é que alguns limites sejam observados, sob pena de malferimento de princípios estruturantes do ordenamento jurídico.


  1. Reputo inválido, desde logo, e com amparo em francamente majoritária doutrina, o recurso especial per saltum, por interpretação literal constitucional. O inciso III do artigo 105 da Lei Maior de 88 assevera ser competência do Superior Tribunal de Justiça o processo e julgamento das causas decididas, em última ou única instância, por tribunais, que, grosso modo, viole direito infraconstitucional federal.

  2. Demais disso, não se mostra intempestivo destacar o enunciado n° 20 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “(art. 190) Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da primeira instância. (Grupo: Negócio Processual) ”.

  3. Também se tenta empregar o argumento de direito comparado de que outros ordenamentos jurídicos viabilizam o recurso per saltum. Inobstante, “diferentemente de outros sistemas, como, por exemplo, o alemão (§566 da ZPO), o italiano (art. 360, 2, do CPC italiano) e o português (art. 671 do CPC português), o direito processual brasileiro não conhece a figura do recurso per saltum” (ROSSONI, 2019, p. 183).

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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