O artigo 1º, inciso II, da Lei 8.137/90, tipifica o crime de sonegação fiscal pela inserção de elementos inexatos ou omissão de operações em documentos ou livros fiscais, como fito de suprimir ou reduzir tributos:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(...)
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
A questão que se coloca é se pratica o crime de sonegação fiscal do artigo 1°, II, da Lei 8.137/90 o contribuinte que apresenta Guias de Informação de ICMS com dados inexatos, mas precedidas de notas fiscais eletrônicas corretamente emitidas.
Obviamente que o objetivo deste breve estudo não é estimular a prática de infrações fiscais, mas desde já adiantamos que, se as notas fiscais eletrônicas foram corretamente emitidas, com o lançamento regular do ICMS devido, a hipótese é de crime impossível.
Para uma melhor exposição do nosso posicionamento, é indispensável discorrermos sobre a sistemática da Nota Fiscal Eletrônica, adotada pelas empresas contribuintes desde os idos de 2005.
A Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) e a Nota Fiscal de Consumidor Eletrônica (NFC-e) foram desenvolvidas de forma integrada, pelas Secretarias de Fazenda dos Estados e Secretaria da Receita Federal do Brasil, a partir da assinatura do Protocolo ENAT 03/2005 (27/08/2005), que atribui ao Encontro Nacional de Coordenadores e Administradores Tributários Estaduais (ENCAT) a coordenação e a responsabilidade pelo desenvolvimento e implantação do Projeto NF-e.
Para instituir a NF-e, modelo 55, foi celebrado o Ajuste SINIEF 07/2005, pelos Estados, Distrito Federal e União, o qual sofreu diversos ajustes e atualizações até a presente data. No entanto, desde a sua redação original é possível extrair o conceito da NF-e:
§ 1º Considera-se Nota Fiscal Eletrônica - NF-e o documento emitido e armazenado eletronicamente, de existência apenas digital, com o intuito de documentar operações e prestações, cuja validade jurídica é garantida pela assinatura digital do emitente e autorização de uso pela administração tributária da unidade federada do contribuinte, antes da ocorrência do fato gerador. (redação original do Ajuste SINIEF 07/2005)
Por força da Cláusula Segunda-A do Ajuste SINIEF 07/2005 foi delegado à Comissão Técnica Permanente do ICMS (COTEPE), órgão do Conselho Nacional de Política Fazendária, a atribuição de instituir o Manual de Orientação do Contribuinte (MOC) com critérios técnicos para a integração dos dados da NF-e entre os órgãos fazendários dos Estados e as empresas emitentes das Notas. Veja-se:
Cláusula segunda-A Ato COTEPE publicará o “Manual de Orientação do Contribuinte - MOC”, disciplinando a definição das especificações e critérios técnicos necessários para a integração entre os Portais das Secretarias de Fazendas dos Estados e os sistemas de informações das empresas emissoras de NF-e.
(https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/ajustes/2005/AJ007_05)
Em cumprimento, em 2005 a Comissão Técnica Permanente do ICMS editou o Ato COTEPE 72/05, de 22/12/2005, instituindo o referido Manual de Orientação do Contribuinte (MOC), o qual, atualmente, está em sua versão 7.0, de onde se verifica, mais uma vez, que a NF-e propicia a integração eletrônica de informações entre as Fazendas Estaduais e as empresas contribuintes:
Este documento tem por objetivo a definição das especificações e critérios técnicos necessários para a integração entre os sistemas das Secretarias de Fazendas dos Estados e os sistemas de informações das empresas emissoras de Nota Fiscal Eletrônica – NF-e e de Nota Fiscal do Consumidor Eletrônica – NFC-e.
https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/arquivo-manuais/moc7-visao-geral.pdf
No Estado de São Paulo, por exemplo, a Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) está disciplinada pela Portaria da Coordenadoria de Administração Tributária da Fazenda do Estado de São Paulo (CAT) nº 162, de 29/12/2008, colhendo-se do parágrafo único do seu art. 1º, na linha das normativas nacionais, que a NF-e consiste em:
“(...) documento emitido e armazenado eletronicamente por contribuinte credenciado pela Secretaria da Fazenda, de existência apenas digital, cuja validade jurídica é garantida pela assinatura digital do emitente e pela Autorização de Uso concedida pela Secretaria da Fazenda, com o intuito de documentar operações, prestações e outros eventos fiscais relativos ao imposto”.
Do Portal da Secretaria da Fazenda de São Paulo, apanha-se ainda que:
“A Nota Fiscal Eletrônica é um documento de existência apenas digital, emitido e armazenado eletronicamente, com o intuito de documentar, para fins fiscais, uma operação de circulação de mercadorias ou uma prestação de serviços, ocorrida entre as partes. Sua validade jurídica é garantida pela assinatura digital do remetente (garantia de autoria e de integridade) e pela recepção, pelo Fisco, do documento eletrônico, antes da ocorrência do Fato Gerador.
Finalidade: alteração da sistemática atual de emissão da nota fiscal em papel Modelo 1 ou 1A, por nota fiscal eletrônica com validade jurídica para todos os fins, simplificando as obrigações acessórias dos contribuintes e permitindo, ao mesmo tempo, o acompanhamento em tempo real das operações comerciais pelo Fisco.”
Por fim, o projeto da Nota Fiscal Eletrônica evoluiu a ponto de hoje estarem integrados no sistema a Receita Federal do Brasil e as Fazendas dos Estados, todos integrados com as empresas contribuintes, de tal modo que os dados das operações tributáveis são inseridas no sistema, num portal nacional, inclusive com a necessidade de uma pré-validação do arquivo da NF-e, sem o qual sequer a mercadoria poderá transitar. O portal nacional da NF-e é acessado aqui.
Por sinal, o processo da NF-e é bem mais detalhado no portal nacional. Veja-se:
Descrição do Processo
De maneira simplificada, a empresa emissora de NF-e gerará um arquivo eletrônico contendo as informações fiscais da operação comercial, o qual deverá ser assinado digitalmente, de maneira a garantir a integridade dos dados e a autoria do emissor. Este arquivo eletrônico, que corresponderá à Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), será então transmitido pela Internet para a Secretaria da Fazenda de jurisdição do contribuinte que fará uma pré-validação do arquivo e devolverá um protocolo de recebimento (Autorização de Uso), sem o qual não poderá haver o trânsito da mercadoria.
A NF-e também será transmitida para a Receita Federal, que será repositório nacional de todas as NF-e emitidas (Ambiente Nacional) e, no caso de operação interestadual, para a Secretaria de Fazenda de destino da operação e Suframa, no caso de mercadorias destinadas às áreas incentivadas. As Secretarias de Fazenda e a RFB (Ambiente Ncaional), disponibilizarão consulta, através Internet, para o destinatário e outros legítimos interessados, que detenham a chave de acesso do documento eletrônico.
Para acompanhar o trânsito da mercadoria será impressa uma representação gráfica simplificada da Nota Fiscal Eletrônica, intitulado DANFE (Documento Auxiliar da Nota Fiscal Eletrônica), em papel comum, em única via, que conterá impressa, em destaque, a chave de acesso para consulta da NF-e na Internet e um código de barras bi-dimensional que facilitará a captura e a confirmação de informações da NF-e pelas unidades fiscais.
O DANFE não é uma nota fiscal, nem substitui uma nota fiscal, servindo apenas como instrumento auxiliar para consulta da NF-e, pois contém a chave de acesso da NF-e, que permite ao detentor desse documento confirmar a efetiva existência da NF-e através do Ambiente Nacional (RFB) ou site da SEFAZ na Internet.
O contribuinte destinatário, não emissor de NF-e, poderá escriturar os dados contidos no DANFE para a escrituração da NF-e, sendo que sua validade ficará vinculada à efetiva existência da NF-e nos arquivos das administrações tributárias envolvidas no processo, comprovada através da emissão da Autorização de Uso. O contribuinte emitente da NF-e, realizará a escrituração a partir das NF-e emitidas e recebidas.
http://www.nfe.fazenda.gov.br/portal/sobreNFe.aspx?tipoConteudo=PEhYdxncZBE=
Portanto, como se vê, a Nota Fiscal Eletrônica é emitida antes da ocorrência do fato gerador do ICMS (saída da mercadoria), diretamente no portal nacional da NF-e, com acompanhamento em tempo real das operações tributáveis ou não tributáveis dos contribuintes emissores do documento eletrônico.
Com isso, as Administrações Tributárias exercem controle em tempo real do cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes, controlando todas as suas operações de emissão e recebimento de notas fiscais, bem como detectando, também em tempo real e automaticamente quaisquer inconsistências.
Aliás, este é um dos principais objetivos esperados pelo projeto da NF-e. É o que consta do portal nacional:
Benefícios Esperados
O Projeto NF-e instituirá mudanças significativas no processo de emissão e gestão das informações fiscais, trazendo grandes benefícios para os contribuintes e as administrações tributárias, conforme descrito a seguir:
Benefícios para as Administrações Tributárias:
• Aumento na confiabilidade da Nota Fiscal;
• Melhoria no processo de controle fiscal, possibilitando um melhor intercâmbio e compartilhamento de informações entre os fiscos;
• Redução de custos no processo de controle das notas fiscais capturadas pela fiscalização de mercadorias em trânsito;
• Diminuição da sonegação e aumento da arrecadação;
• Suporte aos projetos de escrituração eletrônica contábil e fiscal da Secretaria da RFB (Sistema Público de Escrituração Digital - SPED).
Benefícios para a Sociedade:
• Redução do consumo de papel, com impacto positivo no meio ambiente;
• Incentivo ao comércio eletrônico e ao uso de novas tecnologias;
• Padronização dos relacionamentos eletrônicos entre empresas;
• Surgimento de oportunidades de negócios e empregos na prestação de serviços ligados à Nota Fiscal Eletrônica.
Benefícios para o Contribuinte Comprador (Receptor da NF-e):
• Eliminação de digitação de notas fiscais na recepção de mercadorias;
• Planejamento de logística de entrega pela recepção antecipada da informação da NF-e;
• Redução de erros de escrituração devido a erros de digitação de notas fiscais;
• Incentivo ao uso de relacionamentos eletrônicos com fornecedores (B2B);
Benefícios para o Contribuinte Vendedor( Emissor de NF-e):
• Redução de custos de impressão;
• Redução de custos de aquisição de papel;
• Redução de custos de envio do documento fiscal;
• Redução de custos de armazenagem de documentos fiscais;
• Simplificação de obrigações acessórias, como dispensa de AIDF;
• Redução de tempo de parada de caminhões em Postos Fiscais de Fronteira;
• Incentivo a uso de relacionamentos eletrônicos com clientes (B2B);
http://www.nfe.fazenda.gov.br/portal/sobreNFe.aspx?tipoConteudo=PEhYdxncZBE=
Como se percebe, a Nota Fiscal Eletrônica é emitida antes da ocorrência do fato gerador do ICMS (saída da mercadoria), diretamente no portal integrado das Administrações Tributárias, com pré-validação do documento pela Fazenda Estadual do domicílio do contribuinte emitente, sem o qual sequer a mercadoria poderá transitar, permitindo um acompanhamento em tempo real de todas as operações do contribuinte, e detectando automaticamente quaisquer inconsistências.
Assim sendo, num cenário em que o contribuinte, tenha apresentado as Guias Mensais de Informação e Apuração do ICMS com saldos de tributo a recolher igual a zero ou menor que o devido, mas precedidas da emissão correta das Notas Fiscais Eletrônicas, corretamente, as quais provariam a ocorrência das operações tributáveis, é impossível ao réu ter praticado o crime do artigo 1º, inciso II, da Lei 8.137/90, porquanto o tipo penal em questão, que refere “fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal” se completa com o intento de “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório”, consoante a leitura sistemática do caput do dispositivo.
É de se ver que núcleo da conduta perseguida pelo tipo penal é a fraude, a qual, na espécie, por evidente, se constitui na utilização de uma forma jurídica ardilosa, artificial ou falsa, com o intuito de mascarar a ocorrência de um fato gerador, para furtar-se ao pagamento do tributo devido, ludibriando a Administração Tributária.
Ora, a sistemática da Nota Fiscal Eletrônica, com emissão dependente de pré-validação pelo Fisco, diretamente no portal nacional mantido pelas Administrações Tributárias, com acompanhamento em tempo real das operações tributáveis, torna ineficaz qualquer intento de se furtar ao pagamento dos tributos, mediante envio (que também é eletrônico) de Guia de Informação com omissão de dados ou dados inexatos, visto que seria impossível mascarar, ludibriar, enganar, ou, enfim, fraudar a fiscalização tributária diante de um controle eletrônico tão eficaz, como o implantado pelo projeto da Nota Fiscal Eletrônica.
Deste modo, nestes casos, atrai-se o disposto no artigo 17 do Código Penal:
Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.
Com efeito, a emissão da Nota Fiscal Eletrônica, com dados corretos, induz à ineficácia do meio (envio de Guias de Informação mensais inexatas) uma vez que todas as informações relativas às operações realizadas pelo contribuinte já estão no sistema eletrônico da Administração Tributária, o qual irá cruzar os dados e automaticamente detectar a inconsistência, gerando a automática fiscalização ao contribuinte e imposição de autuação ao contribuinte faltoso.
Para sedimentar o que aqui é afirmado, vale conferir o que leciona FERNANDO CAPEZ sobre a figura do crime impossível: “(...) é aquele que, pela ineficácia total do meio empregado ou pela impropriedade absoluta do objeto material é impossível de se consumar”. (Curso de Direito Penal, vol. 1, parte geral – 11ª Edição revisada e atualizada - São Paulo: Saraiva, 2007, p. 256).
Na mesma linha, ANTONIO JOSÉ MIGUEL FEU ROSA ensina que crime impossível é: “(...) a atitude do agente, quando o objeto pretendido não pode ser alcançado dada a ineficácia absoluta do meio, ou pela absoluta impropriedade do objeto”. (Direito Penal, parte geral. São Paulo: Revista dos tribunais, 1995).
Tudo levando à conclusão que, na hipótese em exame, não há de se falar no tipo do artigo 1º, inciso II, da Lei 8.137/90, em razão da absoluta impropriedade do objeto e ineficácia do meio, a saber, Guias eletrônicas de Informação Mensal cujos dados são cruzados com Notas Fiscais Eletrônicas (emitidas pelo contribuinte e para o contribuinte).
Não existindo nenhum outro elemento que caracterize ilicitude penal, a hipótese será, tão somente, de infração regulamentar, não caracterizando o crime de sonegação fiscal do art. 1º, II, da Lei 8.137/90.
Havendo denúncia em casos de tais naturezas, o juiz terá que proferir decisão de absolvição sumária.
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(*) Miguel Teixeira Filho é advogado em Joinville, sócio fundador da Teixeira Filho Advogados.