Poder de requisição do Ministério Público do Trabalho à luz da Lei Geral de Proteção de Dados

05/05/2023 às 17:52
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Resumo informativo: O presente trabalho tem por objeto a investigação científica acerca do poder de requisição do Ministério Público do Trabalho à luz da Lei Geral de Proteção de Dados, com a consequente análise e apresentação de conclusões acerca da existência – ou não -, de alteração do cenário prático da expedição de requisições após o advento da LGPD.

Palavras-chave: Poder de requisição; Ministério Público do Trabalho; LGPD.

  • Introdução


A Constituição da República de 1988, inspirada pela Carta de Curitiba, alocou o Ministério Público do Trabalho em posição de destaque na arquitetura do Estado, posicionando-o dentre as funções essenciais à Justiça. A instituição foi desatrelada de todos os três poderes constituídos da República. Ao lado dessa autonomia, foi confiada a missão de defender o regime democrático, o ordenamento jurídico e os direitos e interesses sociais e individuais indisponíveis ou com relevância social, nos termos dos artigos 127 e 129, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Para consecução dessas relevantes atribuições, o parquet foi municionado com vasto arsenal de instrumentos de atuação judicial e extrajudicial, a exemplo do poder requisitório, o qual conta com amparo constitucional (art. 129, VI e VIII, da CF) e legal (arts. 8º, II, IV e 84, III, da Lei Complementar 75/1993; 8º, § 1º, da Lei 7347/1985; e 26, I, “b”, da Lei 8625/1993).

À luz desse quadro jurídico constitucional e legal, o presente estudo se propõe a realizar uma análise técnica em relação à existência – ou não -, de alteração do cenário prático da expedição de requisições pelo Ministério Público do Trabalho após o advento da Lei Geral de Proteção de Dados.

  • Poder de requisição

O poder de requisição consiste na prerrogativa de requisitar documentos e demais elementos probatórios que estejam em posse de pessoas naturais ou jurídicas e que sejam úteis à formação do convencimento do membro sobre determinado fato sob investigação.

Uma vez expedida regular requisição por membro do Ministério Público do Trabalho no bojo de um inquérito civil, a parte destinatária da ordem não pode se escusar do seu cumprimento. Referida conclusão tem por base a regra da inoponibilidade da exceção do sigilo ao Ministério Público, conforme disposição contida no art. 8º, § 2º, da Lei Complementar 75/1993.

Essa inoponibilidade da exceção do sigilo é ampla, encontrando ressalva apenas nos casos em que há reserva jurisdicional, ou seja, quando a próprio Constituição da República prevê que o acesso a determinados dados pressupõe autorização judicial. Consoante jurisprudência majoritária, a quebra do sigilo bancário é um exemplo de circunstância para a qual se aplica a reserva jurisdicional. No entanto, mesmo em tais casos, a jurisprudência passou a mitigar esse entendimento para admitir a aplicação da inoponibilidade da exceção do sigilo quando se tratar de contas públicas. Eis alguns julgados que exemplificam essa posição jurisprudencial:

HABEAS CORPUS. DENÚNCIA RECEBIDA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO CEARÁ. CRIMES, EM TESE, PRATICADOS POR AGENTES PÚBLICOS CONTRA A ADMINISTRAÇÃO (QUADRILHA, LICITAÇÕES, E DECRETO LEI N. 201/1967). ALEGAÇÃO DE ILICITUDE DA PROVA. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ENTE PÚBLICO. DESNECESSIDADE. PROTEÇÃO À INTIMIDADE/PRIVACIDADE. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA MORALIDADE PÚBLICA. REQUISIÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DE MOVIMENTAÇÃO DA CONTA-CORRENTE DO MUNICÍPIO DE POTENGI/CE. POSSIBILIDADE.
1. Encontra-se pacificada na doutrina pátria e na jurisprudência dos Tribunais Superiores que o sigilo bancário constitui espécie do direito à intimidade/privacidade, consagrado no art. 5º, X e XII, da Constituição Federal.
2. No entanto, as contas públicas, ante os princípios da publicidade e da moralidade (art. 37 da CF), não possuem, em regra, proteção do direito à intimidade/privacidade, e, em consequência, não são protegidas pelo sigilo bancário. Na verdade, a intimidade e a vida privada de que trata a Lei Maior referem-se à pessoa humana, aos indivíduos que compõem a sociedade, e às pessoas jurídicas de Direito privado, inaplicáveis tais conceitos aos entes públicos.
3. Assim, conta-corrente de titularidade de Prefeitura Municipal não goza de proteção à intimidade/privacidade, tampouco do sigilo bancário, garantia constitucional das pessoas naturais e aos entes particulares.
4. Nessa linha de raciocínio, lícita a requisição pelo Ministério Público de informações bancárias (emissão de cheques e movimentação financeira) de titularidade da Prefeitura Municipal de Potengi/CE, com o fim de proteger o patrimônio público, não se podendo falar em quebra ilegal de sigilo bancário.
5. "Operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal" (MS-33.340/STF, Relator Ministro LUIZ FUX, 1ª Turma, DJe de 3/8/2015).
6. Habeas corpus denegado.
(HC 308.493/CE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 26/10/2015)


EMENTA Recurso ordinário em habeas corpus. Ação penal. Associação criminosa, fraude a licitação, lavagem de dinheiro e peculato (arts. 288 e 313-A, CP; art. 90 da Lei nº 8.666/93; art. 1º da Lei nº 9.613/98 e art. 1º, I e II, do DL nº 201/67). Trancamento. Descabimento. Sigilo bancário. Inexistência. Conta corrente de titularidade da municipalidade. Operações financeiras que envolvem recursos públicos. Requisição de dados bancários diretamente pelo Ministério Público. Admissibilidade. Precedentes. Extensão aos registros de operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. Princípio da publicidade (art. 37, caput, CF). Prova lícita. Recurso não provido. 1. Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, ao tratar de requisição, pelo Tribunal de Contas da União, de registros de operações financeiras, “o sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos” (MS nº 33.340/DF, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 3/8/15). 2. Assentou-se nesse julgado que as “operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal (…)”. 3. O Supremo Tribunal Federal reconheceu ao Ministério Público Federal o poder de requisitar informações bancárias relativas a empréstimos subsidiados pelo Tesouro Nacional, ao fundamento de que “se se trata de operação em que há dinheiro público, a publicidade deve ser nota característica dessa operação” (MS nº 21.729/DF, Pleno, Relator para o acórdão o Ministro Néri da Silveira, DJ 19/10/01). 4. Na espécie, diante da existência de indícios da prática de ilícitos penais com verbas públicas, o Ministério Público solicitou diretamente à instituição financeira cópias de extratos bancários e microfilmagens da conta corrente da municipalidade, além de fitas de caixa, para a apuração do real destino das verbas. 5. O poder do Ministério Público de requisitar informações bancárias de conta corrente de titularidade da prefeitura municipal compreende, por extensão, o acesso aos registros das operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. 6. De nada adiantaria permitir ao Ministério Público requisitar diretamente os registros das operações feitas na conta bancária da municipalidade e negar-lhe o principal: o acesso ao real destino dos recursos públicos, a partir do exame de operações bancárias sucessivas (v.g., desconto de cheque emitido pela Municipalidade na boca do caixa, seguido de transferência a particular do valor sacado). 7. Entendimento em sentido diverso implicaria o esvaziamento da própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas. 8. Inexistência de prova ilícita capaz de conduzir ao trancamento da ação penal. 9. Recurso não provido.
(RHC 133118, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 26/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 08-03-2018 PUBLIC 09-03-2018)”

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Diante desse contexto, sobretudo a partir da tendência de alargamento dos efeitos da inoponibilidade da exceção do sigilo, será analisado nos próximos capítulos a existência – ou não -, de alteração do cenário prático da expedição de requisições pelo Ministério Público do Trabalho após o advento da Lei Geral de Proteção de Dados.

  • Lei Geral de Proteção de Dados


A proteção de dados foi alçada à categoria de direito fundamental, consoante expressa previsão contida no art. 5º, LXXIX, da CF. Essa disposição é densificada pela Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), a qual, nos termos do seu art. 1º, “dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”.

A referida novel legislação protege, dentre outros, o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis. A primeira categoria corresponde à “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”, conforme art. 5º, I, da LGPD. A segunda categoria, por outro lado, consiste no “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”, a teor do art. 5º, II, da LGPD.

À luz desse cenário protetivo, as partes destinatárias das ordens de requisição do Ministério Público de Trabalho têm usualmente se valido dessas previsões legais como subterfúgio para justificar negativas de fornecimento de informações ao parquet.

Entretanto, esse comportamento recalcitrante esbarra em diversas disposições constitucionais e legais, representando uma postura ilícita, que inclusive pode ensejar a responsabilização criminal, consoante se analisará no tópico seguinte.

  • Leitura sistemática da LGPD e impossibilidade de negativa de fornecimento de informações ao MPT

Como não poderia deixar de ser, a LGPD deve ser lida à luz da Constituição da República, notadamente de forma sistemática com a expressa previsão que dispõe sobre o amplo poder requisitório do Ministério Público. Dessa forma, a necessidade de postura diligente na proteção dos dados pessoais não justifica qualquer oposição de óbice à requisição ministerial, ainda que se trata de dados pessoais sensíveis ou sigilosos, na medida em que é sempre possível a decretação de sigilo nos autos do inquérito civil. Haveria, assim, simples transferência de sigilo ao parquet.

A conclusão supra assegura máxima efetividade às prerrogativas institucionais do Ministério Público, evitando que a LGPD seja utilizada de forma a transgredir o postulado da “proibição de excesso”, corolário do critério hermenêutico da proporcionalidade. Portanto, essa harmonização prestigia o princípio constitucional da unidade, impedindo interpretações colidentes dos arts. 5º, LXXIX, da CF com o art. 129, VI e VIII, da CF.

Importante registrar, ainda, que na própria LGPD constam hipóteses em que os dados, inclusive os sensíveis, podem ser tratados por parte do Ministério Público do Trabalho. É o caso, por exemplo, da situação indicada no art. 7º, II, da LGPD, segundo o qual os dados podem ser tratados para cumprimento de obrigação legal, que é justamente a hipótese de atuação do MPT. Igualmente, há semelhante hipótese no art. 11, II, “a”, da LGPD, dispositivo que disciplina o tratamento de dados sensíveis.

  • Conclusão


À luz de todas as premissas assentadas no presente trabalho, é impositiva a conclusão no sentido de que a LGPD não pode ser utilizada como subterfúgio para justificar negativas de fornecimento de informações ao parquet. Esse comportamento recalcitrante, além de desrespeitar expressa disposição constitucional (art. 129, VI e VIII, da CF) e legal (arts. 7º, II e 11, II, “a”, da LGPD), configura crime de desobediência.

  • Referências bibliográficas

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho / Maurício Godinho Delgado. - 17. ed. rev. atual. e amp..- São Paulo : LTr, 2018.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista / Vólia Bomfim Cassar. - 16. ed., rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018.

RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas. Convenções da OIT e outros instrumentos de direito internacional público e privado relevantes ao direito do trabalho / Edson Beas Rodrigues Jr., organizador. - 4. ed. ampl. - São Paulo : LTr, 2019.

Sobre o autor
Igor Oliveira Costa

Pós graduado em direito material e processual do Trabalho pela ESA/PB. Analista Judiciário do TRT da 2ª Região. Assessor de Desembargador

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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