A juridicidade dos atos praticado pelo MST

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A juridicidade dos atos praticado pelo MST

Introdução

Recentemente, a CNA- A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, que é a maior representação dos produtores rurais do Brasil, acionou o STF contra atos praticados pelo MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que é o movimento social mais conhecido do país, bem como recentemente houve a abertura de uma CPI para investigar os atos praticados pelo MST1.

Desse modo, claro está que existe em curso uma tentativa de criminalizar os atos praticados pelo MST.

Assim, o presente artigo pretende demonstrar, por meio de uma metodologia descritiva e exploratória, que a tentativa de criminalização de movimentos sociais não se justifica.

1.Da autotutela

O grande questionamento que surge em relação aos atos praticados pelo MST é se o movimento estaria de forma legítima ou ilegítima praticando a autotutela.

Pois bem, o prefixo auto, em tradução livre, significa “aquilo que funciona por si mesmo” e o sufixo “tutela” significa “proteção”. Assim, a autotutela ou autodefesa como forma de resolução de conflitos seria quando a pessoa age por conta própria, a chamada justiça realizada pelas próprias mãos, seria a prevalência da lei do mais forte2, com a aniquilação do outro3, forma de litígio típica do direito primitivo4 e da ausência estatal5, sendo, como regra, considerada um meio de justiça precário e aleatório de resolução dos conflitos, pois acaba vindo a ser uma injustiça com a parte mais fraca, incapaz de se defender6. Cândido Rangel Dinamarco afirma ser a autotutela uma: “espécie egoísta de autocomposição unilateral, é antissocial e incivilizada” 7.

Além disso, a autotutela pode vir a colocar fim ao litígio, com o término na discussão, porém sem acabar com a animosidade entre as partes envolvidas, mantendo-se, assim, a desarmonia do meio social8, o que acaba vindo por não atender o interesse público primário, sendo por isso que Jean Jacques Rousseau afirmava não enxergar moralidade em um ato de força física e concluía que ela não fazia Direito, devendo as pessoas só obedecerem aos poderes legítimos, o que não se conquista por intermédio da força física 9.

Desse modo, com o tempo, a sociedade começou a ter uma formação ética que tornou ultrapassada os conceitos mais primitivos, trazendo a necessidade de se delimitar a atuação dos mais fortes na resolução dos litígios10, com a busca de outras formas mais justas de pacificação e que dessem oportunidade também aos mais vulneráveis de efetivarem a busca pelos seus direitos.

Assim, com a evolução da sociedade, a autotutela passou, salvo em hipótese excepcionais, a ser vedada na maioria dos Estados, cabendo apenas ao Poder Público o uso “legítimo da violência11, tal como acontece, como regra, no ordenamento brasileiro, onde a justiça pelas próprias mãos é tipificada como crime12.

Entretanto, como toda questão envolvendo o Direito, existem exceções, como no caso de cortar as raízes que ultrapassam o muro do vizinho13 ou ainda no caso de legítima defesa e no caso de estado de necessidade14, situações que se inserem no chamado direito de resistência, previsto na Constituição Portuguesa para as situações nas quais os particulares efetivamente precisam por conta própria repelir uma ofensa que estão sofrendo em um contexto no qual não seja possível recorrer ao Poder Público15, o que se alinha ao direito de resistência do indivíduo contra o próprio Estado defendido por John Locke quando o príncipe era o responsável pela prática de um ato de tirania16.

Outra situação existente no Brasil da possibilidade excepcional da autotutela são as ocupações de propriedades improdutivas pelos movimentos sociais em benefício justamente de pessoas vulneráveis, o que também é feito com amparo no ordenamento jurídico, conforme será visto no tópico que segue.

2.A juridicidade dos atos praticados pelo MST

Não podemos confundir ocupação com invasão. Invadir é adentrar de forma forçada em um imóvel que cumpre a sua função social, o que pode sim implicar no crime de exercício arbitrário das próprias razões e nas sanções previstas pela lei 8629/9317, responsável por regulamentar no aspecto normativo a reforma agrária.

Entretanto, a lei acima mencionada fala em sanções no caso de invasão e não no caso de ocupação e a diferença entre os referidos institutos não é meramente terminológica, mas sim jurídica.

Invadir é quando você entra sem permissão em uma casa que cumpre sua função social. Assim, se alguém mora em uma casa ou produz em sua terra, nenhum movimento social vai entrar na referida propriedade.

O que o movimento social faz é uma ocupação. E o que é ocupar? É quando se entra em uma casa, prédio ou terreno que não cumpre sua função social, que está abandonado. Assim, o movimento dá uma função social, seja moradia ou produção, para um bem abandonado.

Frise-se que o artigo 5º da Constituição 1988, seguindo a linha existente desde a Constituição de 196718, prevê: “XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.

Desse modo, no mesmo momento em que assegura o direito de propriedade, a Constituição de 1988 afirma que ela deverá ter uma função social, com a possibilidade de o Poder Público desapropriar as propriedades improdutivas19, não sendo o Direito de Propriedade um direito absoluto, mas sim relativo e condicionado20, exigindo que os proprietários deem alguma utilidade para suas propriedades. Assim, quem comete um ilícito não é quem ocupa uma terra improdutiva para produzir, mas sim quem abandona uma terra sem morar ou produzir nela, sendo o Brasil um dos países que mais possui terras improdutivas no mundo21.

Logo, os movimentos sociais de moradia cumprem um papel importantíssimo para a nossa sociedade garantido teto e trabalho para as pessoas, que é, como afirma Jorge Miranda, uma das dimensões da dignidade humana22, sendo muito melhor para todas e todos um terreno abandonado virar uma moradia ou um local de trabalho produtivo do que continuar como foco de doenças e de outras mazelas.

No mais, sempre que nosso ordenamento jurídico quer mencionar um apossamento ilícito, menciona-se o termo invasão, tal como acontece na mencionada lei 8629/93. Já o termo ocupação é usado justamente quando se adentra de forma lícita na propriedade de alguém, tal como acontece no caso do decreto-lei 3365/41, que prevê o instituto da ocupação temporária nos seguintes termos: “Art. 36.  É permitida a ocupação temporária, que será indenizada, afinal, por ação própria, de terrenos não edificados, vizinhos às obras e necessários à sua realização” (Grifos Nossos).

A ocupação temporária acima mencionada é um poder da Administração Pública de intervenção do Estado na propriedade privada, mas o nosso ordenamento jurídico reconhece também efeitos jurídicos para a ocupação de terras privadas, o que ocorre, por exemplo, no caso do conhecido instituto da usucapião, que permite ao possuidor, passado algum tempo e preenchidos alguns requisitos legais, torna-se proprietário da terra de outrem23.

Desse modo, a licitude dos apossamentos do MST se justifica principalmente por dois motivos: os atos são praticados em imóveis que não cumprem sua função social e o objetivo do movimento social é garantir uma reforma agrária com a transformação de terras improdutivas em produtivas, garantido trabalho e alimentação para as pessoas.

Nesse sentido, Carol Proner, Doutora em Direito Internacional pela Universidade Pablo de Olavide e Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma:

"Ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não degrade o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou análogo e que seja produtiva. A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos camponeses chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade de que a propriedade venha acompanhada de uma função social. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses"24.

Diante dessa realidade, o Poder Judiciário já começa a ver a necessidade de proteger juridicamente as ocupações do MST, tal como já o fez o STJ ao impedir intervenção federal em estado-membro que não viabilizava a desocupação de assentamento do MST com 56 famílias em decisão judicial na qual o saudoso Ministro Gilson Dipp afirmou que deveria se: “respeitar a afetação pública do imóvel produzida pela ocupação de terceiros sobre o bem particular com o intuito de ocupá-lo para distribuí-lo"25.

Desta feita, não há como se negar que o interesse público primário do Poder Público seja manter famílias que estão produzindo em uma propriedade ocupada e não as retirar para as deixarem ao desalento e para fazer com que um bem volte a ser improdutivo, uma vez que o interesse público primário é a junção dos interesses privados que as pessoas têm como membros da sociedade, ou seja, como afirma Erick Menezes de Oliveira Junior, “o somatório dos interesses privados em sua dimensão coletiva26. Desse modo, a Administração Pública deve preferir um uso coletivo da propriedade ao seu uso meramente egoístico.

Conclusão

Infelizmente, desde à Lei de Terra de 1850, o nosso ordenamento jurídico vem fazendo prevalecer os latifúndios improdutivos e não a pequena propriedade rural produtiva27.

Entretanto, a referida realidade não se amolda mais aos preceitos da nossa Constituição, que afirma se fazer necessário o cumprimento da função social de toda propriedade, o que torna legal e legítima a pressão pacífica dos movimentos sociais por meio de ocupações de propriedades improdutivas.

Criminalizar os atos do MST não é o caminho para se evitar os conflitos fundiários, mas sim a realização de uma verdadeira reforma agrária no nosso país.

REFERÊNCIAS

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  1. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/lira-anuncia-instalacao-de-cpi-do-mst-e-outras-2-na-camara.shtml

  2. SILVA, Adriana dos Santos. Acesso à Justiça e Arbitragem: um caminho para a crise do Judiciário. Barueri: Manole, 2005. p.4

  3. SPENGLER, Fabiana Marion; WRASSE, Helena Pacheco. A (im) possibilidade da (auto) composição em conflitos envolvendo a administração pública: do conflito à posição do terceiro, Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. V 18, N 3 (2017), pp.69-93. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/30729. p.83.

  4. KELSEN, Hans. A paz pelo Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.4.

  5. CATHARINA, Alexandre - A mediação como política pública e sua contribuição para construção de uma nova dimensão do princípio do acesso à justiça. Direito das Políticas Públicas: revista do programa de pós-graduação em Direito da Unirio, V 1, N2 (2019), pp.130-147. p.138.

  6. COSTA, Nilton César Antunes da Costa. Poderes do árbitro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.36.

  7. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I. São Paulo: Malheiros, 2020.p.155.

  8. SCHLICHTING, Arno Melo. Teoria Geral do Processo. Livro 1, 3ªed, Florianópolis: Momento Atual, 2007. p.27

  9. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Paulo Neves, Porto Alegre: L&M, 2008. p.26/27.

  10. NINGELISKI, Adriane de Oliveira. Acesso à justiça pelos caminhos da mediação. Florianópolis: Empório do Direito. 2017. p.38

  11. TOMAZETTE, Marlon. Internacionalização do direito além do Estado: a nova lex mercatoria e sua aplicação. Revista de Direito Internacional, V 9 (2012), pp.93-121. Disponível em https://www.publicaco

    esacademicas.uniceub.br/rdi/article/view/2122. p.97.

  12. Código Penal Brasileiro: Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

  13. BRITO, Wladimir. Teoria Geral do Processo. Coimbra: Almedina, 2019. p.34.

  14. DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Inahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32ªed. São Paulo: JusPodivm/Malheiros, 2020. p.53.

  15. Constituição Portuguesa: Art.21º Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

  16. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Trad.Júlio Fischer, Martins Fontes: São Paulo, 1998. p.560/570.

  17. A referida lei prevê o seguinte: Art. 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais.   (...)

    § 7o  Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.(Grifos Nossos).     

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  18. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.168.

  19. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ªed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.194.

  20. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2020. p.847

  21. Fonte: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/latifundio-brasil-tem-maiores-indices-de-concentracao-de-terra-no-mundo.htm

  22. MIRANDA, Jorge. Direito Fundamentais, 2ªed. Coimbra: Almedina, 2018. p238

  23. Código Civil: Da UsucapiãoArt. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

  24. PRONER, Carol. Ocupação não é invasão: entenda o que é o uso social da terra. Blog na Rede: Rede Brasil Atual. 2003. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/ocupacao-nao-e-invasao-entenda-o-que-e-o-uso-social-da-terra/

  25. Fonte: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/19062022-Desobediencia-as-ordens-da-Justica-em-conflitos-pela-terra-a-posicao-do-STJ-diante-da-intervencao-federal.aspx

  26. OLIVEIRA JUNIOR, Erick Menezes de. A administração pública e a interpretação principiológica: uma forma de solução adequada de conflitos, In MATOS, Taysa; GOSTINSKI, Aline. Meios Adequados de resolução de conflitos, Florianópolis: Empório do Direito, 2017. pp. 15-31. p.24

  27. WESTIN, Ricardo. Questão Agrária. Arquivo S. Edição 71, 2020.

Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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